quinta-feira, 30 de maio de 2013

Domingo de manhã

O domingo amanheceu do jeito que muita gente aprecia: com um friozinho aconchegante que convida a todos a se prolongar mais um pouquinho na cama.
Não fosse por um compromisso assumido dias atrás, também eu me dedicaria ao prazeroso ato de não fazer nada e ficar mais um tiquinho de tempo rolando na cama com meus pensamentos.
Pensei na hora em cancelar o compromisso, mas o prazer em receber este amigo – um dos escritores mais produtivos do nosso Estado – me fez pular da cama.
Perdi a conta do número de livros publicados por ele. Um deles, inclusive, foi escolhido pela Escola de Samba de Mangueira para o seu enredo do carnaval, quando homenageou Cuiabá.
O grande sonho do cuiabano é a ligação da capital por ferrovia até ao Atlântico. A mente fértil do escritor desta terra, imaginou Cartola dirigindo o trem para Cuiabá. Todo o enredo é baseado no livro “Chegando o trem”.
Meu amigo chegou pontualmente na hora combinada. Nossa conversa, ou melhor, a minha, é aquela sem pé nem cabeça. Vai fluindo no decorrer do tempo e das brechas oferecidas em bate papo sem protocolos.
Passamos, sem a menor cerimônia, de um assunto a outro, para, mais à frente, voltar, como em um sanfonado oral.
Contei-lhe, entre outras coisas, casos sem a mínima importância, como do susto que levei na noite anterior quando ouvi um ruído estranho e encontrei um morcego em meu banheiro.
O nosso escritor já passou do meio dia da vida. Fez tudo certo. Investiu forte na sua formação acadêmica e cultural.
Deve ter sido, em outras encarnações, um nobre europeu. Divide o seu tempo entre a Universidade em Cuiabá e a Europa. Está recém-chegado da Europa, e me comunica que está voltando agora para uma temporada na Escandinávia. Sem que eu lhe perguntasse, disse-me que está viajando não sabe porque.
Ele mesmo duvida que haja motivos. Indaga-me se o ser humano não inventa situações para justificar vazios existenciais.
Como fui classificado pela medicina chinesa como pragmático e sofredor, disse-lhe que seria prioritário suspender essa viagem agora, e procurasse assistência psicológica.
Risadas de ambas as partes.
Mostrei a sua última encomenda sobre um livro que deseja lançar no próximo ano, com depoimento de brasileiros que foram para fora do Brasil.
Ele queria que eu embarcasse com um texto no seu trem do Cartola. Achei prudente ficar de fora dessa aventura.
O ser humano é essa maravilha que, quanto mais buscamos conhecê-lo, mais surpresas vão surgindo. E, nas palavras de uma colega, o melhor é entendê-lo como nos apresenta.
As imperfeições poderão ser uma invencionice, como bem colocou o escritor.
Viajar para tão distante, levado pelo inconsciente, é fantástico, não fosse também uma frase para reflexão.
O depósito de registros da nossa vida, desde a fase intrauterina, é o inconsciente. O pobre consciente não tem a mínima ideia daquilo que tem que ser eliminado, e procura se livrar dessa carga sentida nas formas mais estranhas possíveis.
Meu amigo vai fazer uma longa viagem, e confessa que não sabe porque deseja ir. Quantas vezes saímos pela aí, e encontramos não raramente, justificativas.
Na esfera afetiva, Caymmi, que cantou tão bem o amor, relata que um dia estava distraído e encontrou uma moça por acaso, e nascia dessa maneira um grande amor.
Não sei se criamos muitas coisas, mas que elas acontecem conosco sem o nosso consentimento, acontecem.
A conversa gostosa e descompromissada daquela manhã fria de domingo continuou até que, guiado pelo compromisso da razão, o meu amigo despede-se, surpreso com o tempo que falamos tudo de nada.

Gabriel Novis Neves
26-05-2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.