O
domingo amanheceu do jeito que muita gente aprecia: com um friozinho
aconchegante que convida a todos a se prolongar mais um pouquinho na cama.
Não
fosse por um compromisso assumido dias atrás, também eu me dedicaria ao
prazeroso ato de não fazer nada e ficar mais um tiquinho de tempo rolando na
cama com meus pensamentos.
Pensei
na hora em cancelar o compromisso, mas o prazer em receber este amigo – um dos
escritores mais produtivos do nosso Estado – me fez pular da cama.
Perdi
a conta do número de livros publicados por ele. Um deles, inclusive, foi
escolhido pela Escola de Samba de Mangueira para o seu enredo do carnaval,
quando homenageou Cuiabá.
O
grande sonho do cuiabano é a ligação da capital por ferrovia até ao Atlântico.
A mente fértil do escritor desta terra, imaginou Cartola dirigindo o trem para
Cuiabá. Todo o enredo é baseado no livro “Chegando o trem”.
Meu
amigo chegou pontualmente na hora combinada. Nossa conversa, ou melhor, a
minha, é aquela sem pé nem cabeça. Vai fluindo no decorrer do tempo e das
brechas oferecidas em bate papo sem protocolos.
Passamos,
sem a menor cerimônia, de um assunto a outro, para, mais à frente, voltar, como
em um sanfonado oral.
Contei-lhe,
entre outras coisas, casos sem a mínima importância, como do susto que levei na
noite anterior quando ouvi um ruído estranho e encontrei um morcego em meu
banheiro.
O
nosso escritor já passou do meio dia da vida. Fez tudo certo. Investiu forte na
sua formação acadêmica e cultural.
Deve
ter sido, em outras encarnações, um nobre europeu. Divide o seu tempo entre a
Universidade em Cuiabá e a Europa. Está recém-chegado da Europa, e me comunica
que está voltando agora para uma temporada na Escandinávia. Sem que eu lhe
perguntasse, disse-me que está viajando não sabe porque.
Ele
mesmo duvida que haja motivos. Indaga-me se o ser humano não inventa situações
para justificar vazios existenciais.
Como
fui classificado pela medicina chinesa como pragmático e sofredor, disse-lhe
que seria prioritário suspender essa viagem agora, e procurasse assistência
psicológica.
Risadas
de ambas as partes.
Mostrei
a sua última encomenda sobre um livro que deseja lançar no próximo ano, com
depoimento de brasileiros que foram para fora do Brasil.
Ele
queria que eu embarcasse com um texto no seu trem do Cartola. Achei prudente
ficar de fora dessa aventura.
O
ser humano é essa maravilha que, quanto mais buscamos conhecê-lo, mais
surpresas vão surgindo. E, nas palavras de uma colega, o melhor é entendê-lo
como nos apresenta.
As
imperfeições poderão ser uma invencionice, como bem colocou o escritor.
Viajar
para tão distante, levado pelo inconsciente, é fantástico, não fosse também uma
frase para reflexão.
O
depósito de registros da nossa vida, desde a fase intrauterina, é o
inconsciente. O pobre consciente não tem a mínima ideia daquilo que tem que ser
eliminado, e procura se livrar dessa carga sentida nas formas mais estranhas
possíveis.
Meu
amigo vai fazer uma longa viagem, e confessa que não sabe porque deseja ir.
Quantas vezes saímos pela aí, e encontramos não raramente, justificativas.
Na
esfera afetiva, Caymmi, que cantou tão bem o amor, relata que um dia estava
distraído e encontrou uma moça por acaso, e nascia dessa maneira um grande
amor.
Não
sei se criamos muitas coisas, mas que elas acontecem conosco sem o nosso
consentimento, acontecem.
A
conversa gostosa e descompromissada daquela manhã fria de domingo continuou até
que, guiado pelo compromisso da razão, o meu amigo despede-se, surpreso com o
tempo que falamos tudo de nada.
Gabriel
Novis Neves
26-05-2013
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