quinta-feira, 10 de julho de 2025

ESCREVER PARA NÃO ESQUECER

 

O melhor meio para não se esquecer de algo que presenciamos é escrevendo.

 

Por mais que sejamos atentos e espertos para memorizar os fatos, com o tempo acabamos esquecendo.

 

Imagine alguém com noventa anos e excelente memória: quanta coisa o tempo levou para o esquecimento?

 

Sou um armazém repleto de lembranças, mesmo sabendo dos inúmeros fatos que já esqueci.

 

Meu fraco são os nomes — esqueço-os com facilidade.

 

Mas qual a vantagem de lembrar tudo o que vivemos?

 

Mesmo os momentos alegres não permanecem para sempre, e os desagradáveis, quando esquecidos, funcionam como remédios — curam a alma.

 

Desde criança aprendi com os adultos a escrever sobre os principais acontecimentos do dia num caderno da capa dura, chamado ‘escrivães’.

 

Esses cadernos eram guardados ano após ano em imensos armários e consultados em ocasiões especiais.

 

Anos depois, eram queimados pelos herdeiros, como se o conteúdo interessasse apenas a quem os escreveu.

 

Uma pena! Parte da história da cidade se perdia em nome da modernidade.

 

Presenciei, com dor no coração, a fogueira das anotações do diário do meu avô.

 

Sinto falta dessas memórias.

 

Seriam de grande valor nas crônicas do cotidiano que publico no blog Bar do Bugre.

 

Quantos fatos importantes se perderam com a mudança dos costumes!

 

Participei dessa transformação em que o antigo passou a não ter valor.

 

Bibliotecas importantes de Cuiabá foram queimadas por herdeiros, inclusive as de órgãos públicos.

 

Os Anais Históricos de Cuiabá, verdadeiro atestado de nascimento da nossa cidade, só foram salvos das traças, graças à visão histórica do Padre Wanir Delphino César, da Academia Mato-Grossense de Letras.

 

Em 1968 ele mandou restaurá-los na Casa da Moeda, no Rio de Janeiro.

 

A professora Marília Cecília, microfilmou em Portugal e na Espanha, documentos fundamentais para a história da nossa terra, a serviço da Universidade Federal de Mato Grosso.

 

Com o advento das novas tecnologias e da internet, ficou mais fácil preservar nossa história — e o que escrevemos.

 

Gabriel Novis Neves

08-07-2025




quarta-feira, 9 de julho de 2025

PRESENTES

 

Sempre achei difícil dar presentes às pessoas nas suas datas festivas.

 

Quando atingi idade e autonomia para presentear os meus, nunca acertava suas expectativas.

 

Resolvi o problema de forma simples: passei a oferecer dinheiro como presente.

 

Assim foi com minha mulher, filhos e netos.

 

Minha esposa costumava escolher os próprios presentes, e na sua ausência, minha filha assumia essa tarefa.

 

Ontem foi o meu aniversário. Ganhei muitos presentes e um montão de carinhos e afetos.

 

Percebi o poder criativo da minha família quando se trata de presentear.

 

Um livro, sem dedicatória escrita, mas com palavras ditas pelos olhos. Flores — muitas! — em arranjos delicados.

 

Cremes de barbear e hidratantes para o corpo.

 

Camisetas e camisas de cores variadas. Meias para uso diário. Xícaras de café e leite com a estrela do Glorioso e a minha idade: 90 anos!

 

Pronto! Estou abastecido para o resto do ano.

 

Fui dormir com a cama repleta de presentes — e com a certeza da minha inabilidade em dá-los.

 

Mas o melhor presente que recebi foi a presença da família toda reunida em minha casa — inclusive os cinco bisnetos.

 

O português que ama Cuiabá veio da Europa para o meu aniversário.

 

Meus irmãos estiveram presentes, exceto o que mora em Niterói.

 

Alguns eu não via há muito tempo.

 

Senti-me profundamente amado por dois motivos: pela presença dos meus familiares e pelos quarenta anos de casamento da minha filha.

 

A alegria voltou a reinar em minha casa, agora pequena para abrigar tanta gente.

 

Acordei com uma doce ressaca de felicidade, já pensando nas festanças do meu centenário.

 

O mais difícil já passou —agora, tudo é lucro.

 

Tenho dez anos para me recuperar da festa de ontem, que foi de arromba.

 

A casa amanheceu muito florida.

 

Todos conhecem minha paixão por flores. E sigo recebendo orquídeas, que agora enfeitam minha sala de visitas.

 

Gabriel Novis Neves

07-07-2025






terça-feira, 8 de julho de 2025

SABOR DO TEMPO


O tempo tem sabor. Quem viveu muito sabe disso.

 

Na infância o tempo tinha gosto de manga chupada no pé, com o suco escorrendo pelo queixo. De pão com manteiga derretida no café da manhã. De geladinho de groselha comprado na porta da escola por moedas que sobravam do troco do armazém.

 

Na juventude, o tempo foi apressado, mas doce. Tinha o gosto do primeiro beijo, do primeiro baile, do primeiro emprego. O sabor das descobertas — umas amargas, outras apimentadas, todas marcantes.

 

Depois, veio o tempo com gosto de compromisso. Casamento, filhos, contas a pagar. O tempo ganhou o sabor do feijão bem temperado da esposa, do bolo de aniversário dos filhos, do churrasco de domingo com os amigos. Sabor de vida em movimento.

 

Agora, mais velho, o tempo tem outro paladar. Mais suave, mais lento. O café da manhã é sem pressa. A sopa à noite lembra a comida da mãe. O doce preferido da infância reaparece no paladar como se o tempo tivesse dado uma volta completa.

 

Há dias em que o tempo amarga — quando sentimos saudade de quem partiu ou de um tempo que não volta. Mas até a saudade tem sabor. E, se bem sentida, vira tempero da alma.

 

Hoje aprendi a saborear o tempo como um vinho raro. Cada gole é único. Cada dia, uma nova nota a ser descoberta. O tempo não é mais relógio — é paladar.

 

E percebo que viver é isso: um constante provar. De amores, de lutas, de silêncios. E de lembranças.

 

O sabor do tempo é o que guardamos na memória e levamos no coração. E ele se torna mais apurado quanto mais vivemos.

 

No fundo, o tempo é um banquete. Só precisamos aprender a degustá-lo.

 

Gabriel Novis Neves

07-07-2025




segunda-feira, 7 de julho de 2025

COMENTÁRIOS ENSINAM


Os comentários que recebo sobre minhas crônicas são extremamente didáticos e ajudam-me a aprimorar a escrita e a refletir sobre o que expresso.

 

A língua portuguesa é difícil de ser escrita corretamente — e também de ser interpretada.

 

Com os anos de dedicação à escrita, confirmo essa afirmação.

 

Certa ocasião escrevi criticando o número excessivo de exames complementares que os médicos de hoje costumam solicitar, especialmente para os mais velhos. A cada ano, os pedidos aumentam.

 

O pobre do paciente, então, passa até um mês cumprindo essa maratona de consultas e exames.

 

Escrevi: ‘Peço ao tempo que voe, para me ver livre desse compromisso desagradável’.

 

Com saúde física e mental preservadas, dedico boa parte do primeiro e do segundo semestre a essa tarefa. Era isso o que eu quis dizer.

 

Alguns leitores, porém, entenderam que eu estivesse pessimista.

 

Aos noventa anos, disseram, que eu deveria pedir aos céus que o tempo passasse bem devagar.

 

Se fosse por mim, ele nem passaria. Estou na reta final da jornada.

 

Tenho medo de tudo relacionado à morte.

 

Estudei para evitá-la. Sempre a encarei como uma derrota.

 

Há dor, sofrimento e a inevitável sensação de perda.

 

Todos, um dia, enfrentam o luto — mas nem todos sabem administrá-lo.

 

Por isso, cada comentário recebido é uma lição, e nos ajuda a evitar mal-entendidos.

 

Não gosto de escrever sobre temas fúnebres.

 

Prefiro registrar o cotidiano, cheio de poesia e de pequenos ensinamentos.

 

Vivemos um mês alegre — com as festas juninas e suas tradições religiosas.

 

Santo Antônio, São João, São Pedro e no primeiro domingo de julho — o São Benedito.

 

E logo estaremos nas festas natalinas e de Ano Novo.

 

Desejo acompanhar essa rotina por muitos anos, com saúde.

 

Ver meus bisnetos crescerem, desenvolverem-se e, quem sabe, ingressarem na universidade.

 

Sinto-me respeitado e querido pela cidade onde nasci, no Centro Histórico.

 

E quis o destino que além do estetoscópio, no crepúsculo da vida, eu me tornasse também um contador de estórias da minha terra e da sua gente.

 

Gabriel Novis Neves 

12-06-2025




domingo, 6 de julho de 2025

MEU ANIVERSÁRIO EM TEMPO DE GUERRA


Já escrevi bastante sobre o meu aniversário — que deixou de ser apenas mais uma data e tornou-se o marco inaugural da minha longevidade.

 

Saber que, daqui em diante, estarei trilhando essa nova estrada da existência me enche de esperança.

 

Alimenta em mim o desejo de alcançar o tão sonhado centenário.

 

O que antes era apenas devaneio, hoje se apresenta como doce realidade: viver até os cem anos!

 

Testemunhar dois séculos — o XX e o XXI — é privilégio de poucos.

 

Nasci durante a Segunda Guerra Mundial. Desde então assisti a muitas outras. Agora, vivo a aflição de mais uma, inexplicável e desumana: o conflito entre Israel e Irã, onde milhares de inocentes já perderam a vida.

 

Hospitais e crianças já não são respeitados. Mísseis são lançados à distância, como se não houvesse sangue onde caem.

 

As agências de notícias relatam que Israel bombardeou usinas nucleares no Irã. Em resposta, o Irã atacou um hospital israelense. Os Estados Unidos apoiam militarmente Israel.

 

Presenciamos, talvez, o início da Terceira Guerra Mundial — agora com armamentos atômicos.

 

O Irã não estará sozinho. Contará com o apoio da Rússia e de potências asiáticas.

 

Se a diplomacia internacional — frágil e burocrática — não for capaz de conter esse conflito, em poucos dias os mísseis nucleares destruirão nações inteiras, com consequências devastadoras para o mundo inteiro.

 

Escrever sobre guerras é sempre doloroso. É dar voz à ganância pelo poder que sepulta milhares de vidas.

 

O planeta sofre. Falta petróleo, faltam alimentos. E a diplomacia internacional, sempre incompetente, tornou-se um dos “clubes” mais caros e ineficazes da humanidade.

 

Raramente os diplomatas resolvem um conflito.

 

Num mundo globalizado, mesmo guerras distantes espalham dor e prejuízos por todo o planeta. Causam feridas irreparáveis na sociedade e na economia.

 

Haverá mais ricos. Muitos mais pobres. E novas guerras.

 

A paz — tão alardeada e desejada — continuará sendo apenas matéria de rodapé nos jornais que ainda restarem.

 

Vivemos cercados por falsos líderes, que se locupletam sem pudor dos cofres públicos, indiferentes ao sofrimento de seus povos.

 

Neste aniversário ergo um brinde à vida… mas com o coração em prece pelo futuro da humanidade.

 

Gabriel Novis Neves

23 -06-2025




sábado, 5 de julho de 2025

DA RUA DE BAIXO AO ESTETOSCÓPIO Nasci na rua de Baixo, em casa, no dia 06 de julho de 1935. Cuiabá, naquela época, era uma cidade pequena e tranquila, com cerca de 30 mil habitantes. A vida seguia um ritmo simples, marcada pelas tradições locais e por uma forte ligação com a natureza. O calor já era uma de suas marcas registradas, e a cidade crescia lentamente, envolta por rios e pela vegetação típica do cerrado. As ruas eram, em sua maioria, de terra batida. As casas, de adobe ou madeira, ostentavam telhados de telha colonial. A educação era limitada: havia poucas escolas, e o ensino era básico, acessível apenas a uma parte da população. As famílias com melhores condições contratavam professores particulares ou enviavam seus filhos para estudar em cidades maiores, como São Paulo ou Rio de Janeiro. Para os mais pobres, a escola era um privilégio. Muitos aprendiam apenas o necessário para o dia a dia. Na saúde pública, a situação também era precária. Havia poucos hospitais, e o atendimento médico era restrito. A população recorria a remédios caseiros e às benzedeiras para tratar doenças comuns. Epidemias como febre amarela e malária eram frequentes, agravadas pela proximidade dos rios e pela ausência de saneamento básico. O transporte em Cuiabá era muito diferente do que conhecemos hoje. Carros eram raríssimos, privilégio dos muito ricos. A locomoção se dava, em grande parte, a pé, de carroça ou a cavalo. A cidade permanecia isolada do restante do país, pois não havia estradas ligando Cuiabá a outros grandes centros urbanos. A urbanização era rudimentar. Algumas ruas principais começavam a receber calçamento, mas a maioria permanecia simples. A iluminação pública era feita por lampiões de querosene, que iluminavam apenas os pontos centrais da cidade. O comércio era escasso, e a economia girava em torno da agricultura, da pecuária, da pesca e de pequenas trocas. Apesar das dificuldades, a vida social era intensa. Festas religiosas, como a celebração de São Benedito, reuniam a comunidade e traziam alegria. A convivência entre vizinhos era solidária: todos se ajudavam. A felicidade brotava das coisas simples — das conversas nas varandas, das rodas de viola, das tradições mantidas com carinho e respeito. Antes de completar sete anos, fui matriculado no Grupo Escolar para ser alfabetizado. Aos dez, meus pais se mudaram para um casarão na rua do Campo. Estudei o ginásio no Colégio dos Padres, e dois anos do científico no Colégio Estadual. Para estudar Medicina, fui morar no Rio de Janeiro, em março de 1953. Retornei médico em julho de 1964. Tive a honra de participar do desenvolvimento de Cuiabá, hoje uma cidade com mais de 600 mil habitantes. Os jovens não precisam mais sair daqui para cursar Medicina e outras carreiras superiores. Gabriel Novis Neves 06-07-2025


Nasci na rua de Baixo, em casa, no dia 06 de julho de 1935. 

 

Cuiabá, naquela época, era uma cidade pequena e tranquila, com cerca de 30 mil habitantes. 

 

A vida seguia um ritmo simples, marcada pelas tradições locais e por uma forte ligação com a natureza. 

 

O calor já era uma de suas marcas registradas, e a cidade crescia lentamente, envolta por rios e pela vegetação típica do cerrado. 

 

As ruas eram, em sua maioria, de terra batida. As casas, de adobe ou madeira, ostentavam telhados de telha colonial. 

 

A educação era limitada: havia poucas escolas, e o ensino era básico, acessível apenas a uma parte da população. 

 

As famílias com melhores condições contratavam professores particulares ou enviavam seus filhos para estudar em cidades maiores, como São Paulo ou Rio de Janeiro. 

 

Para os mais pobres, a escola era um privilégio.  Muitos aprendiam apenas o necessário para o dia a dia.

 

Na saúde pública, a situação também era precária. 

 

Havia poucos hospitais, e o atendimento médico era restrito.

 

A população recorria a remédios caseiros e às benzedeiras para tratar doenças comuns. 

 

Epidemias como febre amarela e malária eram frequentes, agravadas pela proximidade dos rios e pela ausência de saneamento básico. 

 

O transporte em Cuiabá era muito diferente do que conhecemos hoje. 

 

Carros eram raríssimos, privilégio dos muito ricos.

 

A locomoção se dava, em grande parte, a pé, de carroça ou a cavalo. 

 

A cidade permanecia isolada do restante do país, pois não havia estradas ligando Cuiabá a outros grandes centros urbanos. 

 

A urbanização era rudimentar. Algumas ruas principais começavam a receber calçamento, mas a maioria permanecia simples.

 

A iluminação pública era feita por lampiões de querosene, que iluminavam apenas os pontos centrais da cidade. 

 

O comércio era escasso, e a economia girava em torno da agricultura, da pecuária, da pesca e de pequenas trocas. 

 

Apesar das dificuldades, a vida social era intensa.

 

Festas religiosas, como a celebração de São Benedito, reuniam a comunidade e traziam alegria. 

 

A convivência entre vizinhos era solidária: todos se ajudavam. 

 

A felicidade brotava das coisas simples — das conversas nas varandas, das rodas de viola, das tradições mantidas com carinho e respeito. 

 

Antes de completar sete anos, fui matriculado no Grupo Escolar para ser alfabetizado. 

 

Aos dez, meus pais se mudaram para um casarão na rua do Campo. 

 

Estudei o ginásio no Colégio dos Padres, e dois anos do científico no Colégio Estadual. 

 

Para estudar Medicina, fui morar no Rio de Janeiro, em março de 1953. 

 

Retornei médico em julho de 1964. 

 

Tive a honra de participar do desenvolvimento de Cuiabá, hoje uma cidade com mais de 600 mil habitantes.

 

Os jovens não precisam mais sair daqui para cursar Medicina e outras carreiras superiores.

 

Gabriel Novis Neves 

06-07-2025




sexta-feira, 4 de julho de 2025

O ANIVERSÁRIO QUE NÃO SERÁ FESTA


Chegar aos noventa anos, é para muitos, motivo de festa.

 

Para mim, é tempo de recolhimento. 

 

Tenho meus motivos.

 

O corpo já não me acompanha como antes, e longas celebrações me cansam.

 

A emoção me toma com facilidade.

 

Prefiro o silêncio da escrita ao burburinho das salas cheias.

 

Meus filhos, compreensivelmente, pensam diferente.

 

Querem homenagear, abraçar, reunir gerações ao meu redor.

 

Dizem que é um marco.

 

E é.

 

Mas não do tipo que se mede por balões ou discursos. 

 

Eles insistem com carinho, e eu recuso com delicadeza. 

 

Já vivi o bastante para saber que há um tempo para tudo.

 

Houve tempo para festas, para abraços longos, para almoços de muitas vozes.

 

Hoje é tempo de quietude. De memórias. De paz. 

 

Eles, então, criaram outro tipo de festa.

 

Uma celebração feita de palavras. Uma crônica em forma de homenagem. 

 

—“Se ele não quer uma festa com música, que seja com silêncio e letras” — disseram. 

 

Aceito.

 

Com gratidão.

 

Porque aprendi que amor também é saber recuar.

 

Que presença também se faz no respeito.

 

Que a verdadeira alegria mora nas entrelinhas do afeto. 

 

Assim, deixo aqui minha crônica — e a deles.

 

Uma conversa de gerações que se escuta no compasso da vida. 

 

Não haverá festa com bolo, nem lista de convidados.

 

Mas haverá esse texto.

 

E para mim, isso basta. 

 

Gabriel Novis Neves

03-07-2025