terça-feira, 29 de abril de 2014

CAPRICHOS

Fora da medicina não uso o termo científico de doença ou falha genética para os recém-nascidos com alguma deformação física ou funcional.
Insisto em banir essa expressão por uma mais humana e que nos lembre de que somos produtos da mesma natureza, tão pródiga nesses caprichos, principalmente com plantas, árvores e animais.
Esse tipo de comunicação não faz parte de nenhuma terapia ou processo de autoestima, mas, simplesmente, na preocupação de humanizar a relação médico-paciente.
Só a natureza consegue a perfeição de fazer com que uma célula masculina unida a uma feminina se fertilize e, como resultado, produza um embrião, um futuro ser humano perfeito.
Na imensa maioria das vezes isso é conseguido com absoluto sucesso para a alegria e felicidade de todos.
Entretanto, existem as exceções da natureza deste mundo tão difícil de ser compreendido.
É esperado que em gestações de gemelares nasçam fetos perfeitos anatomicamente, embora, em raras oportunidades, surjam os caprichos não esperados.
Em sessenta anos de atividade médica como aparador de crianças, achava que já tinha visto o suficiente em surpresas morfológicas.
Mas, este universo do inusitado, me reservou, em um centro cirúrgico de um hospital de referência em tratamento de olhos em Cuiabá, um contato não programado que abalou as emoções do velho parteiro.
Uma bela criança de cinco anos esperava a sua vez de ser operada.  Ao celular falava com alguém da sua intimidade.
Demonstrando um bom humor e tranquilidade não comuns para a sua idade, informou que a operação estava atrasada, pois, com certeza, havia muita gente para ser atendida.
Tudo bem, se a mesma não fosse portadora de agenesia biocular. Ela nunca enxergou, mas como sabia que havia muita gente para ser atendida?
Cumprimentei a sua jovem e simpática mãe pela bela educação que dera a sua filha e me interessei em saber a sua profissão,  tudo em função da habilidade com que lidava com uma filha portadora de deficiência visual.
Passou a me relatar que, após  o nascimento da filha, ao invés de se desesperar, como seria normal, passou a se especializar em técnicas que minimizassem o crescimento de uma criança carente e problemática.
Sabendo da minha profissão, sem ressentimentos em ter uma filha cega, revelou que ela foi gemelar e seu irmãozinho não apresentou nenhuma alteração anatômica.
Conversei com essa criança diferenciada, demonstrando um coeficiente intelectual bem acima da média para a sua idade. Chamei-a pelo nome pedindo um abraço. Ela deixou o colo da mãe e  veio me abraçar demorada e calorosamente.
Segurei a sua mãozinha e a fiz deslizar várias vezes pelo meu rosto, braços e cabeça. Queria que ela tocasse no desconhecido corpo de um idoso e sentisse  o cheiro do carinho que dele emanava.
Seria a forma pela qual  eu passaria a pertencer ao seu universo.
Essa criança veio para  mudar muitos dos nossos conceitos. Ela e a mãe sabiam disso. Eu passei, a saber, a partir daquele momento tão especial e inesquecível...

Gabriel Novis Neves
26-03-2014

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