sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Becos

Quanta beleza, poesia e simplicidade são perdidas para o progresso.
As gerações atuais conhecem viadutos, trincheiras, túneis, elevados, rotatórias, pontes e avenidas de mão dupla com canteiro central.
Nada contra a modernização materialista da nossa cidade, apesar de sem alma e corpo feito de concreto.
É assim que funciona a civilização. Ganhamos e perdemos.
Em funcionalidade melhoramos, e muito, mas não creio que nenhum poeta consiga inspiração atravessando um túnel de concreto.
Ainda me lembro de muitos becos da Cuiabá antiga. Como criança recém-alfabetizada, surgiu curiosidade em ler as placas dos meus trajetos mais frequentes.
Só na maturidade consegui entender seus significados.
Beco Alto, Beco do Candieiro, Beco da Matraca, Beco Torto, Beco do Urubu, Beco do Nhô Bento, Beco da Dona Petita, Beco Quente, Beco Sujo e dezenas de outros que ainda povoam a minha memória. A maioria deles simplesmente desapareceu sem nenhum registro.
Os becos da minha cidadezinha continham ensinamentos, e creio que foram os pioneiros da linguagem digital.
Inspirou poetas, como o corumbaense Lobivar de Matos, ao descrever em versos a história do Beco Sujo, que abaixo transcrevo:
Beco Sujo
Beco estreito,
beco sujo.
O vento está soprando o único lampião
que continua aceso.
O vento não gosta de luz
e quer apagar a lua que se estirou molenga
no silêncio da noite.
Sombras esguias, sombras frouxas,
são cabides para meus sentidos assustados.
Passa uma mulher magra que é esqueleto só.
Atrás dela vem um cabra danado,
Zigue-zagueando.
Desenhando linhas curvas,
tropeça aqui, agarra lá.
- Psiu!... Psiu!...
- Vá para o inferno, peste!
Passa uma cadelinha sarnenta correndo
e atrás um vira-lata latindo.
Lá adiante, no fim do beco,
um chorinho-chorado
ta dizendo que há samba gostoso,
que a tristeza virou alegria,
que a carne não tem cor.
Sururu. Siriri. Chorinho-chorado.
Sala cheia.
Lampiões enforcados em cordas de fumaça.
São Benedito no altar.
Negro só.
soldados de polícia, marinheiros,
gente do povo, gente simples, gente boa.
Caminha, corre roda, não para, pra que parar?
- O chorinho vai pegar fogo, negrada!
O rio Cuiabá está quieto, encolhido,
assustado com a alegria daquela gente triste.
Sento-me numa pedra a beira d água
e o chorinho chorado me sacode os nervos
e eu me sinto mais bêbado
que aqueles negros que clamam sem sentir,
que gritam sem saber.
Beco estreito,
beco sujo.
O vento está soprando o único lampião
que continua aceso.
O vento não gosta da luz
E quer apagar a lua que se estirou molenga.

E há ainda quem diga que não existe poesia num pobre beco!

Gabriel Novis Neves
22-12-2013

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