sábado, 10 de abril de 2010

Gritos na madrugada

Dormia feito um anjo, quando acordo com gritos de socorro. Vou à janela para ver se percebo algum movimento de pessoas, carros da polícia, ou curiosos como eu, querendo saber o que acontecia. Os gritos desesperados eram femininos – uma jovem voz feminina. Os apelos verbais apavorantes pedindo socorro cortavam o silêncio da noite. Tive a impressão que eles vinham da rua. Naquele horário pensei logo em algum crime prestes a acontecer, e eu impotente para ajudar a vítima invisível. A emissão forte de voz era assustadora, e o ambiente no local, de uma irritante tranqüilidade. Deixei a emoção de lado e comecei a pensar para tentar dar outro significado aqueles gritos. Apurei o ouvido, e fragmentos de frases que chegaram até mim não me deixou dúvidas. Era mais um caso de drogas.

Moro no quadrilátero das drogas. Aqueles protestos sonoros eram expressões de alucinações químicas. A voz feminina parecia cobrar algum serviço prestado, e queria receber o dinheiro combinado. Precisava do dinheiro naquele momento, independente do escândalo que produzia, colocando em risco inclusive a sua integridade física. A moça sabia que não havia nenhuma possibilidade de uma prisão policial em flagrante, por ausência absoluta desse equipamento social. O silêncio do presumível devedor era impressionante. Talvez seja também mais uma vítima dessa tragédia humana: a droga. O dinheiro naquele instante era o santo remédio para a aquisição do alucinante da morte.

Passei minutos de grande angústia. Sei que este fato é rotineiro, mas escutar a grande tragédia das drogas não deixa de ser chocante. Então, de repente, no meio daquela inquietação feroz da vida dos drogados, volta a reinar o silêncio na noite. Mas, não consigo mais dormir. Passo a meditar, não como cidadão condoído com o sofrimento traduzido pelos gritos, mas como médico. A saúde pública não existe no Brasil. Por aqui a dengue continua matando. Os hospitais particulares estão superlotados. Pela madrugada cruzamos com ambulâncias, ônibus, vans e taxis trazendo pacientes de todo o estado para consultas simples e tratamentos orgânicos. Os dependentes químicos também são doentes que precisam de tratamento médico e não de desprezo ou tratamento policial. Estes pacientes ficam perambulando pelas ruas, encurtando o seu tempo de vida terrestre, tanto pela aquisição de doenças tipo a AIDS, quanto pela possibilidade de uma bala em razão de uma dívida não paga, ou na tentativa de um assalto para arrumar o dinheiro da droga. As estatísticas estão diariamente nos jornais. É uma triste realidade.

O dia começa a clarear. Deixo a janela do drama humano e inicio mais um dia de trabalho, com a sensação da nossa inutilidade.

Gabriel Novis Neves
20/03/2010

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