quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vassoura de piaçava

Minha casa de infância era muito grande. Casa não, casarão, como se falava. Nos fundos da casa, havia um pátio cimentado, ao lado da cozinha, onde brincávamos e minha mãe estendia os varais para a secagem das roupas. A calçada, na frente da casa era também cimentada, onde eram colocadas as cadeiras de balanço após as 17h. Uma verdadeira sala de estar da nossa Cuiabá antiga – hoje praticamente impossível este hábito.

Uma vez por dia minha mãe varria o pátio e a calçada. Fui criado vendo minha mãe com a sua vassoura de piaçava na mão - vassoura feita com cerdas de piaçava natural retiradas das fibras de coqueiros. Somente este tipo de vassoura era capaz de varrer o chão duro de cimento. E ela não varria só não: jogava água, passava sabão, depois esfregava com a vassoura de piaçava, jogava água de novo, puxava com o rodo e deixava secar ao sol – o sol cuiabano era a melhor secadora existente. Com o aumento da família, e sendo eu o filho mais velho, assumi esta função de executivo da vassoura de piaçava. Todo mundo na velha Cuiabá morava em casa, e todos varriam as suas calçadas - verdadeiras salas de visita.

Na minha geração a vassoura piaçava fazia parte do kit de presentes de casamento – de tão importante que era esse acessório para aquela época. Hoje as coisas mudaram. Acho que a juventude de hoje nem conhece a boa, velha e útil vassoura de piaçava. A limpeza das calçadas e dos quintais das casas - quando os tem - recebem piso cerâmico, e a vassoura de piaçava perde a sua função.

Nas minhas caminhadas matinais vejo de tudo um pouco – como eu sempre falo. Um dia saio da minha rota habitual, e passo por uma rua onde algumas casas, ditas populares, resistiram à pressão das imobiliárias. Em frente a uma dessas casas, deparo-me com uma senhora de cabelos brancos, de cabeça baixa, varrendo a calçada. Claro! Com uma vassoura de piaçava. O que achei mais encantador naquela cena foi perceber a sua intimidade com aquele acessório. Ah, era assim mesmo que minha mãe fazia. Achei digno de registro tal cena, pois me lembrei de uma relíquia dos meus tempos de criança.

Aquela senhora limpava e limpava a sua calçada, do mesmo jeito que a minha mãe me ensinou a limpar a enorme calçada do casarão da Rua do Campo onde morávamos. Aproximo-me dela e a cumprimento, apesar da imensa concentração em que se encontrava exercendo aquela tarefa. Outra pessoa, com certeza, jamais iria importuná-la com um cumprimento. Como cuiabano conheço um pouquinho a alma da minha gente. Com convicção digo-lhe bom dia. Aquela senhora, que não despregou os olhos da calçada, responde-me com um “bom-dia doutor.”

Quanta recordação! Resgatei o ruído musical produzido pelas fibras da vassoura na calçada quase limpa, esperando o entardecer para abrigar as cadeiras de balanço e o gostoso papo cuiabano. Com toda essa riqueza cultural da nossa quase tricentenária cidade, fica difícil para eu abandoná-la por novos amores. Tão cheia de tradições! Uma cidade, que faz meu velho coração bater em ritmo desordenado, que estimula tanto as minhas supras renais a ponto de produzirem arrepios na cobertura da minha sofrida carcaça pelo som da vassoura piaçava, só pode ser uma cidade humanizada. Coisas do passado que não voltam mais? Sim. Ficou apenas na lembrança a beleza musical e o significado daquele simples gesto, de uma mulher varrendo com vassoura piaçava a sua calçada. Uma verdadeira amostra da qualidade de vida que perdemos.

Gabriel Novis Neves
08/04/2010

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