quarta-feira, 24 de março de 2010

Porta de laboratório

Hoje acordei mais cedo do que de costume. Era preciso tempo para finalizar os preparativos para realizar os meus exames anuais de imagens. No dia anterior, a partir do meio-dia, comecei a tomar quarenta gotas do remedinho que murcha os intestinos, a cada duas horas. A partir das vinte e duas horas, dieta zero até a hora do exame. O duro mesmo é o preparo da manhã, principalmente pela posição em que a vítima é obrigada a ficar para facilitar o exame do abdome. Pela orientação da bula, o mais confortável é ajoelhar em cima do tapete do banheiro, e deixar os 100 ml de líquido penetrar no organismo totalmente debilitado. Permanecer nesta posição até o aparecimento dos primeiros sinais de rejeição.

Concluído o trabalho, tomo um bom banho e me dirijo ao laboratório. Dou de cara com a porta fechada: “Atendimento ao público, após as sete horas”, dizia o cartaz fixado na porta. Os meus exames estavam marcados para as sete e trinta. Adiantei-me um pouco no horário porque sabia que teria que enfrentar o trabalho burocrático de identificação, com a difícil prova da impressão digital. No idoso as linhas que compõem a impressão digital, ficam mais tênues. É um sacrifício! “Não deu, tenta outra vez, não aperta muito o dedo, não deu. Vamos tentar outra mão, não deu. Outro dedo: deu!” Grita aliviada a atendente. Olho para o relógio: faltam apenas cinco minutos para ser chamado. A atendente pede que eu beba seis copos de água. Estava no quarto copo, quando sou chamado para o exame.

Durante o exame, converso com o colega. Ele pergunta-me se estou lendo muito. Respondo que estou escrevendo mais do que lendo. Disse-lhe que enquanto esperava o laboratório abrir revisava um texto escrito na noite anterior, e presenciei a chegada de um taxi trazendo três passageiras: uma já de idade avançada - provável paciente pensei comigo - e duas acompanhantes da meia idade. Desembarcaram do carro, carregando travesseiro, fronha e toalha. Procuraram entrar no laboratório e encontraram a porta fechada. Informei-as que o atendimento para o público iniciava às sete horas. Agradeceram a informação e sentaram-se no mesmo banco que eu estava. Aqueles bancos de madeira que antigamente compunham a beleza dos jardins cuiabanos e que foram substituídos pelos fixos de concreto armado, por razões inexplicáveis, mas óbvias.

Voltando ao assunto: as três mulheres falavam sem parar, e eu escrevia sem parar, mas com os ouvidos escancarados para aquela conversa animada. Fiquei sabendo que eram de uma cidade da Grande Cáceres. Percebia o olhar enviesado delas em minha direção, assim como quem quer puxar conversa. Acho que o meu reservado silêncio as incomodava. A mais espevitada não se conteve e perguntou-me se eu sabia que exame era aquele que a sua mãe iria fazer - e me mostra o pedido do médico da sua cidade. Li e traduzi: “densitometria óssea”. Pede-me esclarecimentos sobre a finalidade do exame, mesmo não sabendo a minha profissão. Digo que é para saber se a paciente está perdendo cálcio dos ossos, que é a doença da perda excessiva do cálcio e tem o nome de osteoporose e acomete geralmente mulheres idosas. Ela exclama: “Ah! Entendi!” A seguir me pergunta: “O senhor é professor?” “Também”, respondi. Acho que empreguei um tom um tanto quanto professoral na minha resposta. Ela cochichou então para as outras: “ele disse também, quer dizer que ele é outras coisas.” Continuo escrevendo, fingindo concentração. Elas cochicham outra vez entre si. Ah, como eu estava apreciando aquela deliciosa curiosidade, tipicamente feminina! Não se conformam, querem saber mais sobre esse velho que escreve tanto. “O senhor vai fazer exame?” Respondo que sim. “De que?” Digo que é de próstata. “Aquele da dedada?” Sorrindo intimamente esclareço que hoje é só ultrason, e dedada quem dá é o urologista. Elas riem da resposta e me saem com esta: “Sabe que o senhor até parece médico? Mas sei que não é porque está sentado no banco da fila.” Ia responder quando a porta do laboratório abriu, e lá fomos nós fazer os nossos exames!

Tudo isto relatei ao meu colega. O tempo exato para o término dos meus exames: abdome, artéria renal, próstata e tudo o mais que se encontra na antiga caixa de segredos, dos médicos antigos. Deixo o laboratório com o certificado de prazo de validade por um ano, e a lembrança do simpático, embora rápido, bate-papo com as três mulheres.

Gabriel Novis Neves
16/03/2010

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