quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

EU NÃO ERA EU

 

Quando alguém escreve nosso nome errado, não se trata apenas de um deslize ortográfico.

 

É como se nos colocassem, por um instante, fora do mundo — num lugar estranho, onde não nos reconhecemos. 

 

Esses acidentes são mais frequentes do que se imagina. 

 

Comigo, chegam cartas endereçadas a Gabrié, Gabrier. 

 

O cuiabano costuma engolir o ele ou trocá-lo pelo erre. 

 

Já o sobrenome, para muitos, vira Novais Nunes, e nunca Novis Neves. 

 

Ficamos assim: deslocados de nós mesmos, suspensos num território que não nos pertence. 

 

Às vésperas de viajar para o Rio de Janeiro, onde estudaria Medicina, alguém me perguntou, na porta do bar do meu pai, se eu estava com tudo pronto — inclusive a carteira de identidade. 

 

Respondi que não tinha. 

 

Minha maior preocupação eram os documentos escolares para a transferência. 

 

Fui alertado: sem identidade, eu não teria como provar que era eu. 

 

Corri à Praça da República, procurei um lambe-lambe e sob o sol quente de Cuiabá, em poucos minutos tinha meia dúzia de fotos 3 por 4. 

 

Segui direto para a Secretaria de Segurança Pública, instalada numa casa ao lado da residência oficial dos governadores. 

 

Pedi, com urgência, para falar com o secretário Clóvis Correa Cardoso. 

 

Ele me recebeu, ouviu a minha súplica, chamou o ajudante, entregou-lhe as fotografias, e determinou: a identidade deveria ficar pronta até às 15 horas. 

 

Era uma urgência. 

 

Pontualmente voltei. 

 

O secretário fez questão de assinar o documento diante de mim: um pequeno livrinho verde, de capa dura, com o brasão do Estado. 

 

À esquerda, minha foto; à direita, a digital do polegar e a assinatura oficial. 

 

Desejou-me sorte no vestibular e advertiu: sem aquele documento, eu não seria ninguém no mundo. 

 

Meses depois, no Rio, o gerente do Banco do Brasil se recusou a me pagar. 

 

A carteira dizia que eu era pardo e tinha buço. 

 

À sua frente estava um branquelo, sem pelos entre o nariz e o lábio inferior. 

 

Nem sempre os documentos conseguem nos reconhecer. 

 

Às vezes, nem eles sabem quem somos. 

 

Gabriel Novis Neves 

10-12-2025



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