Quando alguém escreve nosso nome errado, não se trata apenas de um deslize ortográfico.
É como se nos colocassem, por um instante, fora do mundo — num lugar estranho, onde não nos reconhecemos.
Esses acidentes são mais frequentes do que se imagina.
Comigo, chegam cartas endereçadas a Gabrié, Gabrier.
O cuiabano costuma engolir o ele ou trocá-lo pelo erre.
Já o sobrenome, para muitos, vira Novais Nunes, e nunca Novis Neves.
Ficamos assim: deslocados de nós mesmos, suspensos num território que não nos pertence.
Às vésperas de viajar para o Rio de Janeiro, onde estudaria Medicina, alguém me perguntou, na porta do bar do meu pai, se eu estava com tudo pronto — inclusive a carteira de identidade.
Respondi que não tinha.
Minha maior preocupação eram os documentos escolares para a transferência.
Fui alertado: sem identidade, eu não teria como provar que era eu.
Corri à Praça da República, procurei um lambe-lambe e sob o sol quente de Cuiabá, em poucos minutos tinha meia dúzia de fotos 3 por 4.
Segui direto para a Secretaria de Segurança Pública, instalada numa casa ao lado da residência oficial dos governadores.
Pedi, com urgência, para falar com o secretário Clóvis Correa Cardoso.
Ele me recebeu, ouviu a minha súplica, chamou o ajudante, entregou-lhe as fotografias, e determinou: a identidade deveria ficar pronta até às 15 horas.
Era uma urgência.
Pontualmente voltei.
O secretário fez questão de assinar o documento diante de mim: um pequeno livrinho verde, de capa dura, com o brasão do Estado.
À esquerda, minha foto; à direita, a digital do polegar e a assinatura oficial.
Desejou-me sorte no vestibular e advertiu: sem aquele documento, eu não seria ninguém no mundo.
Meses depois, no Rio, o gerente do Banco do Brasil se recusou a me pagar.
A carteira dizia que eu era pardo e tinha buço.
À sua frente estava um branquelo, sem pelos entre o nariz e o lábio inferior.
Nem sempre os documentos conseguem nos reconhecer.
Às vezes, nem eles sabem quem somos.
Gabriel Novis Neves
10-12-2025
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