Sempre desconfiei daquele relógio da sala.
Não era defeito.
Era escolha.
Ele atrasava alguns minutos todos os dias, com uma teimosia elegante, como quem se recusa a acompanhar a pressa do mundo.
Não adiantava trocar de pilha, bater de leve na caixa ou conferir com o horário do rádio.
No dia seguinte, lá estava ele, novamente atrás do tempo oficial — mas exatamente onde queria estar.
Aprendi cedo que relógios não marcam apenas horas.
Marcam hábitos, ansiedades, compromissos e culpas.
O relógio da sala, aquele, parecia imune a tudo isso.
Atrasava de propósito para lembrar que nem tudo precisa chegar no horário.
Enquanto os outros relógios da casa obedeciam ao celular — essa autoridade moderna e impiedosa — ele permanecia fiel à sua própria noção de tempo.
Para ele, o café ainda estava quente, a conversa não havia terminado e a tarde podia se esticar um pouco mais.
Foi testemunha silenciosa de almoços longos, cochilos depois do jornal, visitas que demoravam a ir embora.
Nunca apressou ninguém.
Ao contrário: oferecia desculpa honesta para chegar depois, sair mais tarde ou fingir que ainda havia tempo.
Quando alguém perguntava a hora, eu respondia olhando para ele, sabendo que dava uma resposta imprecisa, porém confortável.
Era uma hora sem cobrança, sem alarme, sem pressa.
Uma hora humana.
Com o passar dos anos, percebi que também comecei a atrasar de propósito.
Não por descuido, mas por escolha.
Aprendi que chegar sempre no horário exato rouba o direito de respirar entre um compromisso e outro.
Hoje, o relógio continua na parede, um pouco torto, como sempre esteve.
Atrasa menos do que eu, confesso.
Talvez tenha aprendido comigo.
Num mundo que corre, ele resiste.
Marca um tempo que não cabe em agendas nem em telas luminosas.
Um tempo antigo, imperfeito e sábio.
No fundo, aquele relógio nunca esteve errado.
Errado é acreditar que o tempo precisa obedecer.
Gabriel Novis Neves
17-12-2025
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