quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Viver em Cuiabá

Madrugada fria de um julho bem distante. No Centro Cirúrgico eu terminava uma cirurgia. O silêncio do ambiente começava a me incomodar. Para quebrar o silêncio tento uma conversa com o calado anestesista: “Tudo bem com a paciente?” Sem me olhar, em posição quase catatônica na cabeceira da paciente entubada, responde com um lacônico sim. Nem insisto mais na conversa. Calo-me também. Viver em Cuiabá atualmente, para quem conta os dias para chegar ao centenário do seu nascimento, lembra a história do anestesista.

Antes da invasão do “progresso”, Cuiabá era um pequeno paraíso. Conto aos meus netos as reminiscências da minha infância em Cuiabá. Eles não compreendem. São filhos da cidade-progresso. O meu neto de oito anos fica totalmente perplexo quando relato que na idade dele eu jogava futebol nas principais ruas de Cuiabá. “E os carros, vô?” Respondo que naquela época eram tão raros que quando acontecia o fenômeno de um carro se aproximar do nosso campo de futebol, interrompíamos o jogo por alguns instantes e, após a passagem do carro, logo era dada bola ao chão, recomeçando a brincadeira.

As minhas cinco netas não acreditam que as crianças da minha geração nasciam em casa, de parto normal. Na cabecinha delas já está gravado que todas terão filhos por via cirúrgica - cesariana, com dia e hora marcados.

Quando digo que no ensino fundamental as crianças eram reprovadas, elas acham um absurdo psicológico. Ficam mais reticentes quando informo que o ensino, aqui, terminava com a conclusão do ensino médio.

Hoje Cuiabá é uma cidade desumanizada. As velhas amizades não existem mais. A solidariedade nos pequenos gestos foi abolida pelo progresso. Os eventos familiares - aniversários, casamentos, bodas, dia das mães, dos pais, noivados, Ano Novo, e tantos outros - são comemorados em clubes ou lugares da moda.

E o Natal? Lembro que na minha infância a grande expectativa era acordar cedo para conferir se o Papai Noel atendera nossos pedidos. Hoje, em muitas famílias o mito do bom velhinho foi destruído. As crianças muitas vezes recebem seus presentes à luz do dia – dados pelos próprios pais. Eu acho saudável cultivarmos certos mitos e lendas. Nunca soube de nenhuma criança com transtornos psicológicos porque descobriu que Papai Noel não existe. Para mim, este fato nos mostra claramente a frieza emocional dos dias atuais.

E os velhos casarões? Não existem mais. Reféns da violência, os antigos moradores enclausuraram-se em apartamentos. Os carros, quando não blindados, mantêm suas janelas fechadas e escurecidas.

Entretanto, quero acreditar que uma parte desse mundo perdido ainda exista, nem que esteja envolvido pela névoa das nossas mais caras lembranças. Pensar nisso pode fazer toda a diferença para que não fiquemos anestesiados frente à vida, e sim vivê-la de modo natural e sereno tanto quanto possível.


Gabriel Novis Neves

06-10-2010

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