Na
época da minha meninice em Cuiabá quase não se encontravam automóveis pelas
ruas.
Os
poucos que existiam geralmente eram instrumentos de trabalho para alguns médicos,
já que a maioria visitava seus clientes a cavalo ou pilotando pequenas motos.
Alguns
coletivos ligavam o Centro da Cidade ao Bairro do Porto e ao distrito do Coxipó
da Ponte. Estes tinham horários especiais com ônibus intermunicipais.
Nesse
pequeno universo um fato me marcou profundamente: uma mulher dirigindo um velho
automóvel importado Ford.
Perguntei
ao meu pai o que aquilo significava, pois dirigir veículos era, até então, uma
atividade exclusivamente masculina.
“Sinal dos tempos” – me respondeu. Ele
confessou-me que também nunca havia visto uma mulher dirigindo um carro.
Os
homens realmente não entendem, nunca entenderam e nunca entenderão as mulheres,
apesar das grandes conquistas femininas para se emanciparem do domínio masculino.
Hoje
temos mulheres nas universidades fazendo cursos até há pouco tempo privilégio
dos homens.
Até
os cargos de Presidente da República estão sendo exercidos por elas, e com os
mesmos defeitos de certos homens, especialmente quando o assunto é a ética na
política.
Agora,
imagine uma mulher desacompanhada, naquela época da minha infância, chegando a
um boteco e pedindo uma bebida alcoólica.
No
bar do meu pai, onde fiquei até deixar a província para estudar medicina no Rio
de Janeiro, na metade do século XX, nunca vi uma mulher, nem acompanhada do seu
marido. Que dirá então sozinha?
Mas,
esta “motorista”, ia sozinha, sentava-se à mesa e pedia um vinho, transmitindo
aos presentes certo ar misterioso.
As
mulheres “sérias” daquela época não desafiavam a nossa tradicional sociedade
conservadora, embora apreciassem as “uvas engarrafadas” em casa.
Meu
pai, sabedor dos prazeres femininos pelos engarrafados de efeitos sonhadores,
resolveu então reservar as mesas do salão da sorveteria - que ficava separada por
uma porta do bar propriamente dito - para as mulheres tomarem os seus drinques,
o que encantava as fantasias masculinas.
Esse
salão “especial”, em vez de ter as portas para a Praça Alencastro, local onde a
elite se encontrava para saber as novidades e assistir as retretas das
quintas-feiras e domingos, tinha duas enormes janelas coloniais, onde algumas
freguesas se debruçavam para contemplar o ambiente e, discretamente, emitirem
comentários de fundo social.
Eu
sempre por perto ouvia tudo com muita atenção. Comecei a entender um pouco de
sociologia, podendo mesmo afirmar que ali iniciei os meus estudos.
Essas
mulheres eram consideradas pela elite cuiabana como de baixa reputação moral, e
elas sabiam do juízo que faziam delas.
A
descriminação contra a mulher era tanta, que não existia sanitário feminino no
bar, lugar de estímulo da diurese.
A
bebida predileta delas era a cerveja bem geladinha com a garrafa “suando”.
Gostava
de servi-las e ouvir fios das suas conversas. Alguns trechos eu nunca esqueci.
Acho mesmo que fez parte da minha formação básica, onde tive o primeiro contato
com a hipocrisia, pouco notada hoje entre as pessoas.
No
espaço da sorveteria do Bar do Bugre, elas eram respeitadas e tratadas por
“dona” antes do nome. Jamais alguém as desrespeitou.
Bons
tempos aqueles em que, pelo menos nas mesas de um bar, os preconceitos eram
barrados por alguém bem além do seu tempo...
Gabriel
Novis Neves
04-01-2014
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