terça-feira, 13 de outubro de 2009

O VELHO BUGRE (uma visão muito pessoal)

Dia 23 de agosto de 1994, Olyntho Neves – mais conhecido como o “Bugre” do Bar Moderno – faria 100 anos. Marido de Irene Novis Neves e pai de Gabriel, Yara, Pedro, Inon, Ylcléa, Antonieta, Olyntho Filho, Aracy e Ana Beatriz, ele foi também o meu sogro. Em meu nome, e também em nome do meu marido Pedro e das minhas filhas Janaína e Manaíra, desejo prestar-lhe esta pequena homenagem – dar vida a fragmentos das lembranças particulares que tenho dele e relembrar a sua relevância como cidadão participante do cotidiano cuiabano e mato-grossense.

Conheci o Velho Bugre já sem o “charme” da moldura histórica e imortal do “Bar Moderno”, que ele conduziu por meio século e há muito tempo já consagrado como patrimônio dos cuiabanos. Naquela esquina da Praça Alencastro foi construída parte da memória cultural de Cuiabá, consolidando-se, também, como um “tambor” de ressonância política, sobretudo no pós-45. Não raro, era li que se encontravam e se resolviam muitas divergências partidárias, sob os olhares atentos da população, que custou a entender porque até “inimigos” ferrenhos nas campanhas eleitorais ficavam lá, “juntos e abraçados”, após acaloradas sessões legislativas (de acordo com depoimentos de políticos da época).

Sem dúvida, foi nesse parlamento informal do Bar Moderno (Bar do Bugre como ficou conhecido) que muito se exercitou a prática conciliatória e do “arranjo”, que, apesar dos conflitos internos, caracterizou a cultura política mato-grossense. E tudo isso sob a notável discrição do Bugre, o “maestro” que regia aquele espaço aberto ao pluralismo. Sempre me senti instigada por esse aspecto peculiar do Bar Moderno e, por isso, me perguntava qual seria a idéia de “modernidade” que o jovem Bugre tinha em mente no início dos anos 20, em Cuiabá. Que idéias eram aquelas que identificaram e deram vida tão longa ao Bar Moderno? Seriam os sorvetes, num clima tórrido? Talvez a localização privilegiada para apreciar o “footing” no Jardim Alencastro e para acompanhar a retreta no coreto do mesmo Jardim?

A idéia de modernidade do jovem Bugre seria oferecer a certeza da cerveja gelada para apaziguar os torturantes calores após o banho de rio nas “praias” do Cuiabá, do Coxipó e do Ribeirão? Ou, quem sabe, pensou em criar um espaço para amigos se reverem e refrescarem a sede após as peixadas e as sestas? Talvez um ponto de referência para os encontros antes e depois das missas na Matriz? Pode ser que a tal “modernidade” fosse, pura e simplesmente, o reflexo do espírito empreendedor do jovem e moderno Bugre, que, ali, soube propiciar o “clima” democrático para a passagem e o encontro de todas as classes, de todas as idéias, de todas as idades e o convívio entre todas as divergências e interesses.

Além da referência comunitária, o Bar Moderno foi também a trincheira privada do homem Bugre para a vida, para a conquista de respeito e de amigos. Ali, plantou e colheu o sustento digno para a família de nove filhos – e até dar-se ao o “luxo” de mandar alguns deles para estudar no Rio de Janeiro, cumprindo a sua determinação de oportunizar-lhes a melhor educação. Foi também ali que o cidadão Bugre viveu e fez a sua história, participante ativo da cultura, da política, do cotidiano cuiabano e da história dos mato-grossenses (por origem ou opção) durante exato meio século. Contudo, a marca da sua criação, tal como o entendimento da “modernidade” que o impulsionou, nada disso podia ser transferido. A concepção desse entendimento foi obra sua, que exerceu com sabedoria, uma conquista pessoal do cidadão Bugre, da sua dimensão privada e pública.

E, assim, preferiu cerrar as portas, indenizar condignamente os seus empregados e alugar os espaços para manter o sustento familiar, de homem de vida simples e modesta. Como epílogo daquele meio século, mandou rezar uma missa. Só então tomou posse definitiva de uma nova trincheira – a sua cadeira de balanço, na qual se manteve até o fim. Foi assim que o conheci (em 1972) e tenho a sensação de que, lamentavelmente, deixei de conviver com a sua melhor parte. Nunca entendi muito bem se estava feliz ou infeliz dentro do seu impecável pijama, na sua cativa cadeira de balanço (seu cativeiro após vida tão ativa?), fumando irreverente e impunemente um longo cigarro Hilton (com 80 anos!). Já então quase sempre quieto e calado, batia com ritmo a mão esquerda (e a aliança) no braço da cadeira, produzindo um som peculiar acompanhado de suave e musical assobio.

Talvez revelasse insatisfação, ansiedade, vontade de “voltar” ao mundo? Ou, pelo contrário, em paz consigo mesmo e alegria pelo dever cumprido? Parecia-me muito digno na sua nova condição de aprendiz e mestre na arte da resignação, após uma vida dinâmica e de amplas fronteiras. Quase nada o fazia sair do seu novo “balcão” na vida – a cadeira de balanço. Nem mesmo a justa (e talvez tardia) homenagem da Associação Comercial, recebida em casa, no seu mundo privado. Os filhos e netos o reverenciavam e em torno dele aconteciam os almoços domingueiros, os encontros semanais da família, quaisquer que fossem suas responsabilidades durante toda a semana. Ali eram apenas filhos, genros, noras e netos do Bugre e da Irene. Embora já não participasse das iguarias nem do movimento barulhento dos netos, o Bugre continuava a ser o “imã” da convergência familiar. E assim foi até o fim, mesmo que já não se apercebesse disso.

O Velho Bugre na cadeira de balanço às vezes gostava de contar algumas histórias para quem tivesse interesse em ouvi-lo. E o fazia admiravelmente bem. Entre essas reminiscências contadas eu gostava particularmente da sua aventurosa e tortuosa primeira viagem de Cuiabá ao Rio de Janeiro, nos “idos” tempos. Contava tudo em detalhes, com a voz mais firme e alta, entusiasmo jovem e sempre renovado, e eu estimulava a repetição porque gostava de ouvi-lo. Talvez tenha sido o prazer compartilhado dessa história a minha mais grata lembrança do Bugre. Simplesmente adorava vê-lo reviver essa aventura, em cujas dificuldades de percurso, comecei a aprender e avaliar o antigo isolacionismo e a persistência dos mato-grossenses.

Não creio que eu tenha sido uma pessoa especial para o Bugre, conhecendo-nos já na sua fase da cadeira de balanço e numa família de nove filhos, que rapidamente se multiplicavam numa multidão, talvez confusa e barulhenta para ele, sobretudo nos domingos e datas especiais. Porém, tenho absoluta certeza de que o momento de contar essa “aventura jovem” era algo especial para nós dois. Ele gostava de contar e eu gostava de ouvir, com riqueza de detalhes: o farnel, os percursos por rios e trens, o encontro feliz e inesperado com um cuiabano amigo na estação de São Paulo, a chegada ao Rio de Janeiro... Realmente, um mútuo prazer que muitas vezes incentivei. Dava gosto vê-lo novamente altivo e entusiasmado, personagem central da sua própria história e das suas aventuras. Um delícia!

Não tenho dúvidas de que houve um jovem sempre “moderno” no invólucro desse Velho Bugre que conheci. Tão moderno que manteve um surpreendente e inusitado senso crítico até quase o final da vida. Em vez de ficar hipnotizado pela TV (que era confortavelmente instalada à frente da sua cadeira de balanço) ele reagia a certos exageros dos noticiários ou dos tele-dramas, com um sorriso mansamente irônico e repetindo com irreverência a frase: “é uma novela, é uma novela...”! O que poderia haver de mais moderno no contexto nacional e na virada dos anos 70/80 do que esse descrédito ao poder avassalador da mídia? Nos dois últimos anos da sua vida, já bastante doente e alheio, ainda conservava o hábito de fingir que fumava, como se o cigarro estivesse entre os seus dedos, levando-o à boca e até “batia” a cinza imaginária. O jovem/velho Bugre ia morrendo, mas não se entregava!

Gosto de lembrá-lo assim: em paz consigo mesmo, mas meio irreverente, um tanto fora os padrões comuns para a sua época e bastante moderno, na melhor acepção do termo. E também suficientemente ético para nunca ter usufruído de benefícios indevidos, apesar dos muitos amigos e da vasta clientela de políticos. Tão bom se existissem mais e mais jovens e velhos Bugres, modernos ou não. A minha sincera homenagem a Olyntho Neves, o Bugre, cuiabano, mato-grossense, brasileiro, mas, acima de tudo, um verdadeiro cidadão que fez a sua história e ficou na história que ajudou a construir. A sua imortalidade não se inscreve nas Academias, e sim, no “fazer” cotidiano do trabalho, da cultura, da ética, da memória desta terra e na saudade do seu convívio. Para
sempre.

Maria Manuela Renha de Novis Neves


(Transcrição de texto publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, 1995, Tomo CXLIII, Ano LXVII)

OBS: Este texto mantém o conteúdo integral referente à datação em que foi elaborado e publicado, mas ressalte-se que foi feita revisão de pontuação e na ordem de certos termos para compatibilizar melhor o conteúdo com a nova formatação dos parágrafos.

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