sexta-feira, 2 de outubro de 2009

DESCOBRI POR ACASO



Passei grande parte da minha vida na universidade, outra parte no hospital e a que sobrou, em casa. Tenho o péssimo hábito de não anotar fatos e confiar na minha memória. Nunca me preocupei em guardar nomes, endereços, favores ou ajudas que aconteceram durante a minha vida. Não faço cobranças das minhas atitudes. Se as fiz é por que quis.

Dos inúmeros fatos ocorridos durante meu longo período como reitor, hoje me lembro de alguns deles. De uns, gostaria de saber o que faz atualmente os seus protagonistas. De outros até sei.

Certa ocasião estava ausente do Campus e fui comunicado de uma greve que estourou pela manhã e os alunos enfurecidos estavam concentrados no restaurante universitário. Imediatamente encerrei a reunião a qual participava e fui ao encontro dos meninos, sem nenhum acompanhante. Na recepção recebi calorosas vaias, discursos inflamados animavam a manifestação e eu sem saber o motivo. Se aferisse naquele momento o índice de agressividade dos alunos, “o aparelho marcaria ponto máximo.”

Deixei que os garotos fizessem sua projeção e transferência afetiva em mim. Esvaziados psicologicamente, começo a conversar com os guerrilheiros. O motivo todo foi um briga em que um aluno saiu em “estado grave” para a Santa Casa da Misericórdia. Pedi aos amotinados que almoçassem e me aguardassem enquanto me dirigiria ao hospital para prestar socorro ao aluno.

Chegando à Santa Casa fui ao apartamento onde ele se encontrava internado para observação. Examinei-o com todo o cuidado. Realizei todas as manobras semióticas para afastar um abdômen agudo. Não encontrei absolutamente nada que justificasse a internação. Chamei o Eduardo Delamônica, cirurgião do aparelho digestivo, para uma segunda opinião e não disse o meu parecer. Após o exame do cirurgião saímos do quarto e fomos trocar idéias na sala dos médicos. Disse ao Delamônica: “- É um caso típico de simulação popularmente conhecido como piti ou histeria.” O Eduardo concorda comigo: a doença era política, rara em jovem saudável.

Não dispúnhamos na ocasião de ultrassonografia ou tomografia na cidade. O exame de Raios-X do abdômen era normal e o de sangue e urina também. Portanto clínica e laboratorialmente as evidências de hemorragia interna e rotura do intestino por trauma estavam praticamente afastadas. Os alunos precisavam naquele momento de um cadáver. Eram ordens superiores. Chamaram até o Aldo Rabelo, Presidente da UNE, para dar uma mãozinha na greve.

Pensei e ponderei ao Eduardo: “- Não podemos ficar prisioneiros de terroristas. Faça uma laparotomia exploradora e vamos encerrar o caso.” Mais uma vez houve concordância do cirurgião e o ato lícito e cirúrgico foi praticado. Eu estava presente no centro cirúrgico e as vísceras desse menino, ao serem expostas, choraram de vergonha. Algumas pediram perdão. Terminado o ato cirúrgico retorno ao restaurante e comunico aos seus colegas a boa notícia. As vaias aumentaram de intensidade. Estas vinham do fundo do poço da intolerância.

Assim que o reservatório secou os jovens ouviram o meu relatório e eu sugeri assumir a greve, pois os meninos não tinham uma saída honrosa diante de uma simulação. Combinei que a culpa seria minha e eles deixaram o restaurante como vencedores e voltaram às salas de aula.

Nunca mais tive notícia do falsário que ganhou uma cicatriz no abdômen. Sem querer, conversando com um hoje respeitado professor e homem público, ele me revelou o nome do estudante. Fica na minha pasta do sigilo profissional.

Posso adiantar que é uma pessoa que ensina aos jovens e ocupa altos cargos públicos.

Gabriel Novis Neves
28/08/
2009

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