terça-feira, 19 de agosto de 2025

A RUA QUE ENCOLHEU


A rua da minha infância parecia não ter fim.

 

Era larga, com árvores frondosas dos dois lados, e sua sombra se estendia como um abraço fresco nos dias de calor.

 

O chão era de terra batida, e as marcas das rodas das carroças se mantinham até a próxima chuva.

 

Eu a percorria de ponta a ponta sem me cansar, sempre encontrando algo novo — um cachorro dormindo ao sol, um vizinho sentado na porta, uma pipa perdida num galho.

 

As casas eram baixas, com quintais generosos.

 

Nelas, as galinhas ciscavam à vontade, e as hortas se estendiam até quase a cerca de madeira.

 

Portas abertas convidavam a entrar, nem sempre para um café, mas para um simples “boa tarde” que durava meia hora de conversa.

 

Havia cheiro de bolo no ar, de roupa recém-lavada secando ao vento, e o som distante de uma vitrola tocando modinhas.

 

As crianças eram donas da rua.

 

Brincávamos de esconde-esconde, queimado, bola de meia e pega-pega.

 

O vento levantava a poeira, mas ninguém se importava.

 

Havia risos espalhados como folhas secas, que o tempo não tinha pressa de varrer.

 

A rua era território de amizade e imaginação.

 

Hoje, quando volto, não reconheço quase nada.

 

A rua encolheu.

 

Não é que ela tenha mudado de medidas no mapa, mas perdeu o espaço que minha memória lhe dava.

 

O que antes parecia uma avenida sem fim, agora é apenas um quarteirão apertado, sufocado por muros altos e portões de ferro.

 

As árvores sumiram, substituídas por calçadas estreitas e cimento.

 

O silêncio foi embora, substituído pelo barulho constante dos carros.

 

Os vizinhos se trancaram atrás de grades.

 

Portas não ficam mais abertas; campainhas substituíram os “ô de casa!”.

 

As crianças desapareceram da rua, presas dentro de apartamentos ou grudadas nas telas brilhantes dos celulares.

 

O espaço livre virou vaga de estacionamento.

 

O cinema das tardes quentes de verão fechou há décadas.

 

O armazém do seu Antônio, onde se comprava de tudo fiado, agora é uma farmácia de rede, igual a tantas outras.

 

O cheiro de pão quente que vinha da padaria da esquina se perdeu entre o odor de gasolina e o cheiro metálico das oficinas.

 

Caminho devagar, quase medindo o chão, tentando encontrar vestígios do que foi.

 

De vez em quando, reconheço uma janela antiga, um portão que resistiu ao tempo, ou uma calçada irregular que guarda a marca de um azulejo antigo.

 

Mas é raro.

 

Minha rua foi engolida pelo progresso, ou talvez pelo esquecimento.

 

Penso que, na verdade, não foi a rua que encolheu.

 

Foi o tempo que a comprimiu, que a fez caber numa lembrança.

 

A criança que eu era tinha passos pequenos, mas um mundo imenso diante dos olhos.

 

O adulto que sou mede tudo com a pressa e a objetividade que o cotidiano impõe.

 

Mesmo assim, quando fecho os olhos, ela volta a ser como era.

 

Posso ouvir o som das rodas de ferro das carroças, sentir o cheiro de manga madura caindo no quintal do vizinho, e ver minha mãe me chamando para entrar antes do anoitecer.

 

Posso ouvir os risos dos amigos, ver a bola de meia rolando, sentir a poeira grudando no suor da testa.

 

A rua encolheu no mapa real, mas permanece infinita no mapa da minha memória.

 

Talvez seja assim com todos os lugares que amamos.

 

O tempo e o progresso os transformam, mas dentro de nós eles permanecem intactos, esperando apenas que a gente feche os olhos e volte a caminhar.

 

E, na minha lembrança, a rua ainda tem fim?

 

Não.

 

Ela continua se perdendo no horizonte, como se fosse feita para nunca acabar.

 

Gabriel Novis Neves

10-08-2025




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