Um relógio antigo, esquecido na gaveta da cabeceira carrega o tempo de quem o usou e a memória dos instantes que marcou.
Durante muitos anos foi meu companheiro inseparável.
Não era apenas um acessório: era instrumento de trabalho, extensão do meu ofício.
Servia-me para aferir a frequência cardíaca dos pacientes, para controlar o tempo de uma medicação, para acompanhar as contrações de uma parturiente.
Só o retirava do pulso para dormir, tomar banho ou entrar em cirurgia.
Quantas histórias guarda esse relógio, se tivesse voz para contá-las!
Ele presenciou consultas confessionais, noites mal dormidas, o cansaço dos plantões intermináveis, a esperança renovada no centro obstétrico, as alegrias diante de uma vida que chegava ao mundo.
Foi testemunha silenciosa das minhas horas de médico — todas elas.
Com a minha aposentadoria ele também se aposentou.
Hoje, permanece imóvel, vencido pelo tempo e pela tecnologia.
Na gaveta, silencioso, olha-me quando a abro, como se pedisse para ser lembrado.
E eu me lembro: das horas de sofrimento em que controlava o gotejamento de um soro, esperando a melhora de um paciente grave.
Das longas vigílias à beira do leito.
Das emoções intensas do centro obstétrico, onde o tempo parecia acelerar e parar ao mesmo tempo.
Houve até momentos pessoais em que recorri a ele.
Antes de um encontro amoroso, olhava os ponteiros, como se pudessem responder às minhas dúvidas: será que sim, será que não?
O relógio não dizia nada, mas o tempo respondia sempre.
Hoje, consulto os relógios modernos — o do celular, o do computador, discretos e frios.
Mas nenhum deles carrega comigo as histórias do velho companheiro.
Ele não foi esquecido: apenas repousa, como um fiel amigo que já cumpriu a sua missão.
E penso nos antigos que usavam relógios de bolso.
Também eles guardavam, na corrente e no metal, não apenas as horas, mas a própria vida.
Gabriel Novis Neves
30-09-2025
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