domingo, 31 de agosto de 2025

O ESPELHO DA BARBEARIA


Se pudesse falar quantas histórias contaria! Quantos rostos viu envelhecer, quantos sonhos refletiu nas manhãs cuiabanas...

 

Tudo acontecia na antiga rua do Meio —a rua das barbearias.

 

Conheci aquela famosa rua no tempo em que era hábito fazer a barba com navalha.

 

Lembro-me do meu pai, que três vezes por semana procurava o barbeiro.

 

Nunca em casa.

 

Nunca teve navalha.

 

Os aparelhos descartáveis de gilete ainda não existiam nos mercados de Cuiabá.

 

Era um ritual de elegância sentar-se na cadeira do barbeiro, ser coberto por uma toalha branca, fina e limpa; sentir o rosto escondido pela espuma de sabão e, pelo espelho, acompanhar o trabalho paciente do profissional.

 

Ali, entre o cheiro da loção e o deslizar da lâmina, o tempo se revelava: via-se o envelhecimento dos rostos, e ouviam-se histórias de vida.

 

Ao final, com as mãos umedecidas na ‘loção de barbeiro’, o profissional fazia uma leve massagem, encerrando o serviço com um gesto quase de carinho.

 

Meu avô, ao contrário, sempre fez a barba em casa.

 

Guardava sua navalha e o amolador, companheiros de uma vida.

 

Eu mesmo ousei usar navalha apenas uma vez, durante uma viagem. Nunca mais.

 

Duas verrugas no rosto, sempre prontas a sangrar, e a impressão de falta de higiene me afastaram de vez dessa prática.

 

Hoje, quem faz a minha barba é a enfermeira, com gilete descartável — e sem espelho.

 

Pelo menos não vejo meu rosto envelhecer uma vez por semana.

 

Também não ouço histórias.

 

Os sonhos ficaram presos à juventude.

 

Meu pai, após a aposentadoria, rendeu-se à modernidade.

 

Passou a usar as giletes em casa, mas a pele já sem elasticidade cortava-se com facilidade, sangrando ao menor descuido.

 

As antigas barbearias transformaram-se em salões de beleza.

 

Atendem homens e mulheres, oferecem harmonização facial, cortes da moda e penteados extravagantes.

 

É uma profissão valorizada, especialmente pelos jogadores de futebol, com suas trancinhas coloridas e estilos ousados de cabelo e barba.

 

E a rua do Meio onde passei parte da infância, meus bisnetos não conhecem.

 

Gabriel Novis Neves

29-09-2025








sábado, 30 de agosto de 2025

QUANDO O VIZINHO LIGA O SOM


Quando me mudei para o apartamento onde moro tive a sorte de ter como vizinho um simpático italiano.

 

Era um exímio cantor, dono de uma voz afinada, que adorava fazer serenatas, tão comuns na Cuiabá de outrora! 

 

Aos sábados, domingos e feriados, ligava seu aparelho de som em volume alto.

 

Ouvia e acompanhava, com sua voz de barítono, uma seleta coleção de músicas, principalmente italianas.

 

As paredes da minha sala de visitas chegavam a tremer com o som poderoso.

 

Eu e minha mulher adorávamos aqueles shows gratuitos das manhãs de fim de semana.

 

Às vezes ele telefonava perguntando se estava incomodando com a bela voz que Deus lhe deu.

 

Pedíamos que continuasse, e chegávamos a encostar o rosto na parede para ouvir melhor.

 

Lembrei-lhe certa vez que, na noite em que cheguei a Cuiabá, em 31 de julho de 1964, acompanhado de minha mulher carioca, foi ele quem fez a serenata na casinha da rua Marechal Floriano.

 

Minha esposa acordou assustada, pois não conhecia aquele tipo de saudação.

 

Na Cuiabá antiga eram frequentes as serenatas, nas vozes de Bráulio, Romano Fava, Arnaldo Leite, Juarez Silva, com sax de China, Bolinha, Neurozito.

 

Essa Cuiabá solidária ainda encontrei no meu retorno à cidade natal para exercer a Medicina.

 

Vários profissionais liberais se reuniam em grupos para animar eventos importantes, religiosos ou sociais, e também nas manhãs de domingo, em suas casas ou chácaras no Coxipó da Ponte. 

 

Recordo-me de Zulmira Canavarros, compositora e pianista, e de sua filha Maria, cantora.

 

Lembro também de Tote Garcia, Odare Vaz Curvo, Nilson Constantino no violino; Hélio Japonês, João Feijão e Hermínio Pastel no violão, Bugrinho no bandolim, a turma do Morro, formada por irmãos músicos e compositores; e, claro, o Maestro Penha, inesquecível, polivalente em tantos instrumentos musicais.

 

Era uma cidade musical, onde quase todas as casas possuíam um piano — como o de Dunga Rodrigues, no Porto, e o de dona Maria Pommot, na cidade.

 

Mas essa tradição desapareceu com o progresso.

 

Dois sons ficaram gravados sempre na minha memória: o das teclas dos pianos e o ranger das cordas das redes, ecoando pelas calçadas.

 

Hoje, a filha do Romano Fava herdou o gosto pela música e vive cantarolando para a minha felicidade.

 

Bons tempos aqueles musicais!

 

Gabriel Novis Neves

27-08-2025


Conjunto Serenata:
Tote Garcia, Erminio, Vicente,
Namy, Gigo e Fioco


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A VISITA QUE NÃO VEIO


Quando eu exercia a reitoria da Universidade Federal de Mato Grosso, a minha casa, na rua Major Gama, no Porto, vivia cheia de visitas.

 

Não eram convidadas. Simplesmente vinham.

 

À noite, após o expediente administrativo na UFMT, muitos dos seus técnicos e docentes apareciam por lá. Era o momento de repassar os fatos do dia.

 

Todos eram jovens e essas conversas se estendiam até altas horas.

 

Deputados, após a sessão noturna da Assembleia Legislativa, também seguiam para lá, em rodas animadas com whisky, liderados pelo Canelas.

 

Milton Figueiredo, Augusto Mário Vieira (deputado e cassado), Bento Machado Lobo — eram presenças frequentes.

 

Nas noites de sexta e sábado, Fernando Pace e Sonia Pereira jogavam biriba com a minha mulher, até o dia clarear.

 

Depois, saiam para comprar bolo de arroz quentinho, feito na hora, e tomar com cafezinho passado na hora.

 

O único jogo que aprendi foi o xadrez. De cartas, nunca entendi nada.

 

Até o governador quando por aqui, dava uma passada.

 

Jornalistas como J. Maia, Caio Turqueto, Gilson de Barros, radialista Dirceu Carlino — eram ausências sentidas.

 

Nunca convidei, tampouco esperei por alguém que não aparecesse — e isso revela o verdadeiro valor da presença.

 

Éramos todos amigos, uns desde a infância como o Augusto Mário Vieira, afilhado de meu pai.

 

Certa ocasião, vendo a casa cheia, ele fez uma profecia:

 

— Esta será a última casa cuiabana!

 

Quando fechar, não teremos mais onde ir à noite para conversar.

 

Acertou em cheio!

 

Logo me mudei para um edifício de apartamentos, e a casa do Porto virou ponto comercial.

 

As visitas foram desaparecendo aos poucos.

 

Também deixei de esperar por elas — mas conservei o afeto, a lembrança, a expectativa e o valor das suas presenças.

 

Hoje, evito receber visitas, participar de aglomerações ou reuniões em casa — precaução contra infeções virais, frequentes nos mais velhos.

 

Os encontros se reduziram aos almoços de sábado com filhos, noras, genro, netos, bisnetos e babás — quando não estão viajando.

 

E a visita que não veio...

... se encontra agora pelo WhatsApp — sinal dos tempos modernos.

 

Gabriel Novis Neves

06-08-2025




quinta-feira, 28 de agosto de 2025

A CHAVE ESQUECIDA NO BOLSO


Durante o dia acumulamos pequenos esquecimentos.

 

Um dos primeiros de que me recordo, ainda na infância, era o do meu pai, que por vezes esquecia a chave que abria o bar.

 

Geralmente ela permanecia no bolso da calça do seu terno e, raramente, dentro do oratório do dormitório.

 

Era comum ele chegar para abrir o bar e perceber que estava sem a chave — tinha certeza de que havia deixado em casa.

 

Na casa dos meus pais o lugar mais seguro para guardar pertences de valor era justamente o oratório.

 

Já minha mulher, mais moderna, comprou um cofre de aço e mandou instalá-lo na parede do quarto, atrás da cortina.

 

A chave do automóvel, os óculos, a aliança e até a corrente de ouro, muitas vezes os esquecia nos centros cirúrgicos dos hospitais.

 

Mais recentemente, antes do advento das fechaduras eletrônicas, trouxe para casa a chave de um hotel. Em vez de devolver, guardei-a na gaveta da mesa de cabeceira.

 

De vez em quando encontro aquele número gravado e o jogo na Mega-Sena.

 

Permanece viva em minha memória a noite em que me hospedei nesse hotel fantástico.

 

Outros esquecimentos pequenos também me acompanham: o número do CEP do bairro onde moro, a senha do cartão de crédito, o celular da infectologista, o endereço da minha filha nos Florais.

 

Mas esquecer a carteira com os documentos em casa —isso sim, é uma tragédia.

 

Fazem parte do nosso dia a dia esses lapsos de memória, sempre em número crescente, para nosso desespero.

 

Foi assim que surgiram as ‘colas eletrônica’ para nos ajudar.

 

Confesso que fiquei viciado nelas: minha carteira está cheia de lembretes.

 

As crianças, desde cedo, aprendem a manipular os celulares, essa fonte inesgotável de colas.

 

Esses aparelhos, no entanto, já são proibidos em salas de aula, do ensino fundamental ao superior.

 

O Google sabe de tudo e muitas vezes socorre professores em seus esquecimentos.

 

Agora, com a parceria da Inteligência Artificial — a IA —, ninguém mais precisa se preocupar com os pequenos esquecimentos do cotidiano.

 

Gabriel Novis Neves

22-08-2025




quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A CIDADE VISTA DA VARANDA


A varanda das casas antigas de Cuiabá era um palco de observação: dali se via o nascer do sol, o vai e vem das pessoas, o som distante das conversas.

 

Penso em como a paisagem muda, mas certos ruídos e cheiros permanecem.

 

O nascer do sol era de todos, numa cidade, sem os espigões de concreto, que depois surgiram e roubaram dos moradores a beleza do despertar do dia.

 

Das varandas assistia-se ao movimento das pessoas, antes da invasão dos automóveis e motocicletas, com sua poluição e pressa.

 

Também as conversas distantes se apagaram com o tempo.

 

Assim era a cidade quando nasci e cresci — uma cidade que só aprendi a compreender anos mais tarde.

 

O chamado ‘progresso’ nos sonegou um dos espetáculos mais lindos da natureza: o sol nascendo e clareando o dia, visto das varandas de nossas casas.

 

À tarde, o pôr do sol nos brindava com cores e despedidas, deixando um rastro de tristeza, com a promessa de um ‘até amanhã’.

 

O silêncio tomava conta da cidade, percebido da varanda, sem o burburinho das vozes distantes.

 

Íamos dormir certos de que a cena se repetiria, sempre igual, sempre nova.

 

Aos poucos, quase sem percebemos, tudo se alterou.

 

A paisagem mudou, mas alguns ruídos e cheiros ficaram gravados na memória.

 

Às vezes chego a duvidar que a cidade onde moro seja a mesma em que nasci, tamanha a distância entre lembrança e realidade.

 

Hoje, tudo é tão diferente!

 

O ranger das rodas de madeira das carroças sobre os paralelepípedos foi substituído pelo deslizar dos pneus no asfalto.

 

O cheiro dos bolos de mamãe cedeu lugar ao odor da borracha queimada.

 

O som das conversas ao longe desapareceu, trocado pelas transmissões incessantes dos campeonatos de futebol, masculino e feminino.

 

A paisagem mudou: de Cidade Verde para Cuiabá Brasa.

 

Os ruídos e cheiros da minha infância sobrevivem apenas nos arrabaldes e às margens do rio Cuiabá.

 

Gabriel Novis Neves

23-08-2025




terça-feira, 26 de agosto de 2025

A PRIMEIRA VEZ QUE VI O MAR


Tenho certeza, por fotos que minha mãe guardou, de que vi o mar pela primeira vez ainda pequeno.

 

Não me lembro de nada, a não ser dos brinquedos da Praça do Lido, no Posto 2, em Copacabana.

 

Tinha, então, mais ou menos quatro anos de idade.

 

Voltei ao Rio nas férias de julho de 1952, acompanhado de meu pai.

 

Ficamos hospedados num modesto hotel na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, próxima à rua Duvivier, onde moravam meus tios e tias — irmãos de meu pai.

 

Dessa vez, tomei banho de mar pela primeira vez. Não guardei nada de extraordinário como lembrança por ter conhecido o oceano.

 

Meu pai tinha alergia à maresia e a frutos do mar.

 

Tomávamos café com leite no hotel, banho de chuveiro e, lá pelas dez horas, íamos para o centro da cidade.

 

Caminhávamos por suas ruas famosas, como a do Ouvidor, onde as mulheres da cidade maravilhosa faziam compras — ou flertavam.

 

Tudo acontecia no centro do Rio de Janeiro.

 

O almoço era sempre no tradicional restaurante da Brahma, onde conheci gente famosa como o célebre Deputado Federal Tenório Cavalcante, que andava com uma metraradora chamada Lourdinha, escondida sob sua capa preta.

 

Vivia cercado de capangas e fazia sucesso com seu chapéu preto, fumando enormes charutos cubanos.

 

O motivo daquela viagem era o desejo de meu pai de que eu conhecesse a cidade grande onde, no ano seguinte, iria estudar.

 

Conheci bondes elétricos, trens e lotações — numa cidade que nunca dormia.

 

Não guardei nenhum impacto especial por ter conhecido o mar, ao contrário do sonho de quem nasceu longe dele.

 

Mas guardei aromas para sempre — como o do pão francês das padarias do Rio.

 

Dos ruídos permanentes das avenidas de Copacabana.

 

Das vistas maravilhosas da Urca, Pão de Açúcar e do Corcovado.

 

Do jogo, num sábado à tarde, entre Botafogo e Bangu, no Maracanã.

 

Do ar-refrigerado das Lojas Sears — e seu perfume que nunca mais esqueci.

 

Emoção ao ver o mar pela primeira vez, nenhuma.

 

Mas o menino do interior se apaixonou, aos poucos pelo Rio de Janeiro — nos onze anos em que estudou Medicina na Praia Vermelha.

 

Casou-se com uma carioca e comprou um apartamento na Ponta do Leme, para estar no mais lindo cenário do mundo: sol, mar, lua e o grito das ondas.

 

Gabriel Novis Neves

26-03-2025




segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O BANCO DA PRAÇA


O que ouve um banco de praça ao longo do dia? Ele recebe, paciente, o peso dos casais, dos aposentados, dos solitários, das crianças.

 

Moro desde sempre, perto de praças.

 

Aprendi a observar o silêncio de seus bancos, que guardam segredos como cofres ao ar livre.

 

De manhã, eles acolhem namorados que falam baixo, como se temessem acordar o mundo. Aposentados repousam os olhos no passado e enxergam, no vento, lembranças que só eles conhecem.

 

O solitário se refugia ali com seu jornal, enquanto as crianças, fazem da praça um território de risos.

 

À sombra generosa de uma árvore, um motorista de taxi, estica as pernas. E assim se forma, todos os dias, uma plateia invisível para o espetáculo da vida.

 

Sempre há, nos cantos da praça, um parquinho que gira o tempo para trás.

 

A primeira que conheci assim foi em 1939, no Lido, em Copacabana.

 

Eu, meus pais e meus irmãos Yara e Pedro.

 

O escorregador brilhava ao sol, os balanços cortavam o ar com gritos felizes.

 

Até hoje, se fecho os olhos, sinto a maresia chegando do Posto 2.

 

Hoje, é a Praça Popular que me acompanha. Meio século de existência, meio século de histórias. De dia, as crianças gritam; os casais prometem amores eternos; os aposentados revivem o que foi; o solitário interroga a própria vida.

 

Sem bancos, a praça não seria praça. Seria apenas um largo, como tantos outros que conheci — Alencastro, República, Mandioca.

 

Os pombos também têm vez: pousam confiantes, bicando grãos de milhos que mãos anônimas espalham.

 

Praças são fábricas de inspiração. Já fizeram nascer músicas, poemas e até programas de televisão — como A Praça é Nossa, onde um único banco é cenário para todas as histórias. Quem nunca se sentou num banco de praça, inventando mil razões para ali ficar mais um pouco?

 

Gabriel Novis Neves

09-08-2025




domingo, 24 de agosto de 2025

A PRIMEIRA CHUVA


Ontem à noitinha a enfermeira que cuida de mim — e que mora no bairro Dr. Fábio — contou-me que no CPA IV, vizinho ao dela, tinha chovido.

 

Foi uma chuva branda, de pouca duração, mas suficiente para deixar a terra molhada, exalando aquele cheiro gostoso, tão do agrado nosso!

 

Logo se fez correria para recolher as roupas do varal!

 

Era o anúncio da temporada de chuvas: o barulho nas telhas, o alívio do calor abafado.

 

Uma amiga que mora no mesmo bairro que eu notou alguns pingos fortes, rápidos.

 

Não percebi nada, embora o asfalto da rua estivesse molhado.

 

Uns dizem que essa é a chuva da manga, outros, a do caju.

 

Quando eu era criança, em agosto, os mangueirais se enchiam de frutos maduros.

 

No sete de setembro costumava chover, e o quintal ficava com o solo forrado de mangas.

 

E os cajueiros, por sua vez, estavam repletos de frutos tão cuiabanos!

 

Quantas lembranças despertam o início da temporada das chuvas!

 

O verde das árvores transformava Cuiabá em verdadeira ‘Cidade Verde’, tão amada pelos antigos e pelos poetas!

 

Os primeiros pingos traziam sempre uma renovada esperança de dias melhores, com o perfume da terra molhada e o frescor que suavizava o calor sufocante.

 

O solo se preparava para a primavera, tempo de flores, prenúncio do fim do ano.

 

Nessa época do ano, lembranças antigas afloram na memória, trazendo de volta fatos quase esquecidos: a escola primária, o curso de Medicina no Rio de Janeiro...

 

Quantas esperanças me acompanharam no retorno à cidade natal para o imprevisível exercício da Medicina, quando os sonhos se transformaram em realidade.

 

A primeira chuva do ano sempre vem carregada de passado incerto e de futuro cheio de certezas.

 

Mesmo aos noventa anos ainda tenho idade para sonhar com dias melhores!

 

Gabriel Novis Neves

21-08-2023




sábado, 23 de agosto de 2025

ABRIR AS PORTAS


Sou de um tempo em que a porta da rua raramente se fechava.

 

Vivíamos sempre prontos para receber visitas inesperadas — e como eram bem-vindas!

 

Crianças entravam e saiam sem pedir licença, trazendo a alegria de suas risadas.

 

Vizinhos batiam à porta para pedir um pouco de açúcar ou um punhado de café.

 

Havia confiança.

 

Havia hospitalidade.

 

Hoje, as portas são trancadas com fechaduras eletrônicas e só se abrem em dias de festa, vigiadas por seguranças postados ao lado.

 

A confiança e a espontaneidade se foram, e as visitas, quando existem, já vêm anunciadas e agendadas.  

 

Os vizinhos mal se conhecem; as crianças só entram e saem na hora marcada.

 

O gesto simples de pedir uma colher de açúcar ou um pouco de pó de café tornou-se lembrança distante.

 

Com o progresso, a cidade onde nasci transformou-se noutra.

 

Na minha, reinavam a camaradagem e a vida partilhada.

 

As portas das casas permaneciam abertas, e o entra e sai de vizinhos era natural.

 

Vizinho era parente, e as crianças primos e afilhados uns dos outros.

 

Hoje, proliferam os condomínios fechados, afastados da cidade, guardados por porteiros, câmaras e interfones.

 

Neles, as pessoas parecem ainda mais distantes.

 

Até o clima é diferente — sempre ameno, como se quisesse afastar o calor humano que sobrava na cidade.

 

Para manter essas casas, multiplicam-se os funcionários; motoristas são indispensáveis.

 

Tudo fica longe, inacessível a passos.

 

O comércio, as escolas, até as igrejas — nada está por perto.

 

Tenho saudades dos casarões assobradados da minha Cuiabá, onde tudo era próximo e tinha cheiro doce amizade.

 

Naqueles tempos, as crianças brincavam de como pular amarelinha, jogar botão pelos corredores, disputar ‘me dá um canto’ nas calçadas.

 

As portas abertas deixavam entrar a vida.  

 

Até as missas de domingo e as festas dos santos vizinhos cabiam no nosso bairro — e no nosso coração.

 

Hoje, as amizades se constroem em salões de festas distantes, dentro de casas de espetáculos, longe de onde se vive.

 

Essa cidade de agora não é a minha.

 

A minha tinha portas abertas e cadeiras de balanço nas suas calçadas, onde se recebiam visitas para conversar, trocar histórias e servir um cafezinho fumegante, que vinha acompanhado de afeto.

 

Gabriel Novis Neves

12-08-2025




sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A RECEITA PERDIDA


O caderno de receitas da minha mãe sumiu — ou se perdeu.

 

E com ele foi-se também um pouco de história, de afeto, de cheiro de bolo quente.

 

A profissão das mães da minha infância chamava-se prendas domésticas —expressão tão bonita, e hoje riscada do nosso vocabulário.

 

As meninas eram educadas para o casamento e para constituir famílias numerosas, com dez, quinze filhos.

 

Faziam todos os afazeres da casa e carregavam consigo, sempre, um caderno de receitas.

 

Nesse caderninho havia de tudo: receitas de bolos, salgadinhos, doces, almoços, pratos especiais para datas especiais.

 

Lembro-me de uma receita da minha avó Eugênia — que não cheguei a conhecer —, a preferida do meu pai — ambrosia.

 

Quando eu tinha nove anos, para ajudar no orçamento doméstico, minha mãe aceitava encomendas para as festinhas de aniversário das crianças da minha rua.

 

Eu era o encarregado de carregar na cabeça a bandeja com as guloseimas e depois cobrar.

 

Aproveitei muito esse período em que morávamos na rua de Baixo.

 

Aos dez anos mudamos para o casarão da rua do Campo.

 

A casa era tão grande que meu pai resolveu dividi-la para alugar.

 

Os negócios da minha mãe prosperaram tanto que ela decidiu preparar salgadinhos, bolos e guloseimas para vender no bar.

 

Sempre gostou de ter suas economias, para não depender unicamente do meu pai.

 

No período das férias escolares, eu era o seu braço direito na fritura de pastéis, carregando-os em bandejões de prata para o bar.

 

O caderno de receitas estava sempre ao seu lado, com páginas coladas de tanto uso.

 

Tudo era feito manualmente, e ela me ensinou a fritar pastéis enquanto preparava a massa, abrindo-a com uma garrafa.

 

Foi assim até o dia 8 de maio de 1945, quando ela deixou de fazer pastéis: a massa caseira tinha acabado.

 

E um dia, não sei quando, o caderno de receitas sumiu — ou se perdeu.

 

E com ele, foi-se também um pouco de história, de afeto, de cheiro de bolo quente.

 

Gabriel Novis Neves

07-08-2025




MÃOS QUE TRABALHAM


Guardam histórias feitas de calos, cortes, unhas gastas e rugas.

 

A mão da mãe no preparo do almoço, a do pai firmando a enxada, as nossas próprias mãos ao longo da vida.

 

Todas carregam marcas silenciosas: um tributo ao trabalho e ao cuidado.

 

Essas mãos remontam ao Brasil rural, nos tempos da escravidão, bem antes da industrialização.

 

Eram mãos inteiras dedicadas ao labor, substituídas mais tarde pelas máquinas modernas.

 

O trabalhador do campo, antigamente era reconhecido pelo aperto de mão:  firme, áspero, marcado pelos calos e cortes, unhas gastas, pele enrugada.

 

Cada cicatriz um testemunho de esforço.

 

Hoje, o homem do campo exibe mãos lisas, afinadas pela modernização agrícola.

 

A enxada tornou-se apenas um símbolo do passado, uma lembrança repousada na memória.

 

As mães de antes tinham as mãos queimadas pelo fogão de lenha.

 

Quantas histórias se escondem nos calos, nas marcas, nas rugas deixadas pelo preparo dos almoços e pelo peso da enxada empunhada pelos pais!

 

A nova geração desconhece essas marcas históricas, frutos de um trabalho quase exclusivamente manual, tecido ao longo de toda a vida.

 

Aquela gente simples tinha sua própria existência, distinta da vida urbana. Eram chamados de matutos.

 

Possuíam sua música, sua roupa de tecido rústico, seus artistas.

 

Quando vinham à cidade, era a cavalo ou de carroça, trazendo a família.

 

Hoje, as antigas roças já não existem.

 

Em seu lugar, multiplicaram-se cidades modernas.

 

Os trabalhadores pilotam máquinas computadorizadas que, em segundos, fazem o que a enxada levava horas.

 

O mundo rural se transformou em outro: outras histórias, outras músicas, novos rituais festivos.

 

Tudo é novo, moderno, globalizado — mas as mãos de outrora permanecem na lembrança, guardiãs silenciosas de um tempo que se foi.

 

Gabriel Novis Neves

19-09-2025




quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O CALENDÁRIO MARCADO


Tenho em minha casa quatro pequenos calendários de mesa: no meu dormitório, no escritório, no quarto de hospedes e na copa.

 

Todos apresentam datas circuladas à caneta — algumas memoráveis, outras esquecidas.

 

Há datas que permanecem circuladas o ano inteiro — são aquelas que, de jeito algum, posso esquecer.

 

Como exemplo, a data da infusão mensal no hospital, do meu plano de saúde.  

 

Se eu perder o dia marcado, terei que aguardar o mês seguinte para a aplicação.

 

O procedimento é demorado, e se, por acaso, eu chegar ao centro de infusão às dez da manhã, perco a vez.

 

E a fila é longa.

 

Fico atento às datas circulares do calendário, para não comprometer o meu tratamento mensal de reposição de imunoglobulinas.

 

Como pertenço a uma família numerosa, os calendários estão repletos de aniversários — datas que jamais posso esquecer.

 

As datas memoráveis — também circulares — referem-se as bodas de casamentos, colações de grau, viagens de férias.

 

As rotineiras, com seus prazos de vencimento, incluem o carnê leão, o IPTU, o condomínio e mais uma dezena de compromissos.

 

Para não ser multado, vivo diante do calendário, prestando atenção aos vencimentos dessa burocracia que parece ter sido feita para nos atordoar.

 

O calendário é tão importante em nossas vidas, que acabou absorvido pelas modernas tecnologias!

 

Hoje o encontramos no celular, no computador na televisão.

 

Antigamente, existia no Rio de Janeiro a Rádio Relógio, fundada em 1956 por César Ladeira, que se tornou seu diretor.

 

Sua programação era completamente diferente das demais emissoras do Rio.

 

A cada minuto atualizava a hora sincronizada com o Observatório Nacional, anunciando com exatidão as horas, minutos e segundos.

 

Ao fundo ouvia-se o barulho do tic-tac de um relógio.

 

Fiquei sabendo da sua existência porque um dos seus jovens locutores morador na minha pensão, na rua Marques de Abrantes, e trabalhava lá.

 

Até hoje ela existe — e é muito ouvida.

 

Como é importante um velho calendário em nossas casas.

 

Gabriel Novis Neves

07-08-2025


Calendário Asteca

Calendário Gregoriano 


Calendário Romano

Calendário Juliano 

Calendário Hindu

Calendário Maia

Calendário Judaico

Calendário Islâmico 

Calendário Chinês