quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ela tem razão

Uma famosa jornalista ficou impressionada ao visitar o Pronto Socorro de Cuiabá e classificou-o como campo de batalha. Não sei se a jornalista já tinha visitado o nosso Pronto Socorro ou outros por este mundo afora. É realmente impressionante o ambiente em um hospital de urgência e emergência. Ali as coisas nem sempre são como aparecem. Neste tipo de hospital não há possibilidade de planejamento.

Certa ocasião durante meu plantão no Pronto Socorro Souza Aguiar, no Rio de Janeiro, saí de ambulância para prestar assistência aos passageiros de um avião da Varig que se acidentara ao pousar no aeroporto do Galeão. Era dezembro de 1959, e entre eles estava o famoso historiador Otávio Tarquínio de Sousa. Todos os passageiros morreram. Alguns ainda com vida, foram transportados. Nesta hora não se pergunta se há vagas no hospital. É caso de extrema emergência e o ambiente do hospital é o de guerra mesmo.

Quantas vezes já conduzi pacientes gravíssimos, acidentados em vias públicas diretamente para o centro cirúrgico, independente de vaga. Muitos estudantes de Medicina abandonam o curso quando enfrentam esta realidade. A jornalista tem toda a razão quando ao fazer uma matéria sobre o Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, disse que aquilo era um campo de batalha. Concordo com ela, é um verdadeiro campo de batalha para os pacientes gravíssimos que estão ali amontoados, para os médicos, para todos os trabalhadores de saúde, para a sociedade e jornalistas que realizam o seu trabalho de informar.

A Medicina não entra na lógica do lucro e nunca foi sacerdócio. A Medicina é uma profissão diferenciada das outras, pois cuida de seres humanos fragilizados. Não, e nunca admitirei, mesmo em situações limites, as “patadas dos médicos” no atendimento aos seus pacientes e familiares. Estes profissionais que assim se comportam, não são médicos, talvez técnicos em doenças e não devem “plantar favas” que são leguminosas cujo fruto é uma vagem ou legume que não suportaria uma patada. Matar as leguminosas ou maltratar alguém com patadas, não é ensinamento de Hipócrates.

O desespero extremo dos médicos do Pronto Socorro Municipal é conseqüência das condições adversas de trabalho a eles oferecidas. Ao contrário do que muita gente pensa, o médico nestas situações é pouco útil aos seus pacientes. O médico participa do processo de cura quando competente e humano tem condições de trabalhar com dignidade em um cenário de solidariedade. No momento em que inexiste essa situação, continuar enganando a população é crime hediondo. O correto é parar, denunciar e propor soluções. Seria o médico um patife ao participar desta tragédia, com um silencio inaceitável, tradutor da falta de compromisso com a população e a ética. A finalidade principal da Medicina é a promoção da saúde e a sua prevenção, assim como cuidar das situações de urgências e emergências. Ter um filho médico foi um sonho da baixa e alta burguesia.

Hoje, os países do primeiro mundo importam estes profissionais (médicos) e terceirizam os seus serviços auxiliares, principalmente os de imagens, com os países emergentes. As faculdades de Medicina não irão nunca ensinar humanização aos seus alunos, podem até tentar. Esta disciplina é aprendida em casa. Quando o estudante procura a Universidade para se profissionalizar através da instrução, o seu caráter já está moldado com os valores adquiridos no meio em que viveu.

O caos da saúde pública no Brasil, Mato Grosso e Cuiabá é responsabilidade dos nossos políticos – que foram eleitos por nós – dos médicos e da sociedade produzindo sofrimento, especialmente na população mais pobre e necessitada.

A jornalista tem razão.

Gabriel Novis Neves
06-11-2009

* Publicado simultaneamente no http://www.gnn-cultura.blogspot.com/

Um comentário:

  1. Como sempre, você vai ao alvo da questão - a formação médica.
    Há um livro excelente de Umberto Galimberti - Pisiché e techné - que trata da colonização do pensamento humano pela técnica. Dito de outro modo - a técnica, enquanto modo de fazer algo, aprisiona o pensar no agir. Assim, a ação domina o comportamento que assume características desconectadas da ética. Vale a pena ler. Recomendo.

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