Mais que um simples apoio, a bengala do vovô era símbolo de sabedoria, respeito e, às vezes também de autoridade.
Meu avô era médico, surdo, otorrinolaringologista e viúvo duas vezes.
Morava na rua Voluntários da Pátria, quase na esquina com a rua de Cima.
Todas as noites, após o jantar, pegava a sua bengala e ia sentar-se num banco do Jardim — hoje Praça Alencastro.
Naquela época era comum as famílias cuiabanas, passearem pelo Jardim, acompanhando suas filhas adolescentes.
Meu avô tinha enorme facilidade para desenhar e fazer caricaturas.
Levava de casa um dispositivo para se comunicar por escrito, embora dominasse a leitura labial.
Logo conquistava a meninada com seus desenhos e caricaturas, sempre rodeado de curiosos contando causos e espalhando simpatia.
Ao seu lado, a inseparável bengala — símbolo de sabedoria, respeito e autoridade.
Costumava sentar-se de costas para a rua de Cima.
Eu era moleque e me lembro bem dessa cena que tanto me encantava!
Antes das nove da noite, ele voltava para casa, apoiado na bengala, chapéu na cabeça e terno sem gravata.
Quis o destino que meu avô — padrinho, companheiro de xadrez, e colega de profissão — morresse em meus braços, na casa da filha Rosa, no Rio de Janeiro, após uma viagem frustrada à Salvador, em 1962.
Ele estudo Medicina na antiga Escola Imperial de Salvador, onde colou grau e defendeu tese antes de retornar a Cuiabá.
Durante os seis anos em que viveu na Bahia apaixonou-se por uma moça e propôs casamento.
Queria trazê-la para sua cidade natal, trabalhar ao lado do pai, também médico baiano.
Mas ela, filha única não podia deixar a mãe.
Meu bisavô, médico baiano, veio para Cuiabá por determinação do Imperador do Brasil, durante a Guerra do Paraguai.
Casou-se então com uma jovem cuiabana, que
faleceu antes de completar trinta anos, deixando-lhe oito filhos.
Acometido por surdez precoce e sempre apaixonado pela Medicina, especializou-se em Otorrinolaringologia no Rio de Janeiro.
Viúvo, tentou reatar o amor da juventude, mas já era tarde: a vida havia seguido outros rumos.
Em 1962, apoiado na velha bengala, viajou novamente a Salvador para uma última tentativa.
Soube que a mãe da namorada falecera — mas ouviu dela a resposta que o desarmou: ‘Agora nós estamos velhos’.
Ferido pela lembrança e pela recusa, parou no Rio de Janeiro, para se recompor.
Lá faleceu, e repousa no Cemitério São João Batista.
A bengala — fiel testemunha de sua vida e companheira de tantas caminhadas — ficou de herança para os netos cariocas.
Gabriel Novis Neves
22-10-2025
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