sábado, 25 de outubro de 2025

A BENGALA DO VOVÔ


Mais que um simples apoio, a bengala do vovô era símbolo de sabedoria, respeito e, às vezes também de autoridade.

 

Meu avô era médico, surdo, otorrinolaringologista e viúvo duas vezes.

 

Morava na rua Voluntários da Pátria, quase na esquina com a rua de Cima.

 

Todas as noites, após o jantar, pegava a sua bengala e ia sentar-se num banco do Jardim — hoje Praça Alencastro.

 

Naquela época era comum as famílias cuiabanas, passearem pelo Jardim, acompanhando suas filhas adolescentes.

 

Meu avô tinha enorme facilidade para desenhar e fazer caricaturas.

 

Levava de casa um dispositivo para se comunicar por escrito, embora dominasse a leitura labial.

 

Logo conquistava a meninada com seus desenhos e caricaturas, sempre rodeado de curiosos contando causos e espalhando simpatia.

 

Ao seu lado, a inseparável bengala — símbolo de sabedoria, respeito e autoridade.

 

Costumava sentar-se de costas para a rua de Cima.

 

Eu era moleque e me lembro bem dessa cena que tanto me encantava!

 

Antes das nove da noite, ele voltava para casa, apoiado na bengala, chapéu na cabeça e terno sem gravata.

 

Quis o destino que meu avô — padrinho, companheiro de xadrez, e colega de profissão — morresse em meus braços, na casa da filha Rosa, no Rio de Janeiro, após uma viagem frustrada à Salvador, em 1962.

 

Ele estudo Medicina na antiga Escola Imperial de Salvador, onde colou grau e defendeu tese antes de retornar a Cuiabá.

 

Durante os seis anos em que viveu na Bahia apaixonou-se por uma moça e propôs casamento.

 

Queria trazê-la para sua cidade natal, trabalhar ao lado do pai, também médico baiano.

 

Mas ela, filha única não podia deixar a mãe.

 

Meu bisavô, médico baiano, veio para Cuiabá por determinação do Imperador do Brasil, durante a Guerra do Paraguai.

 

Casou-se então com uma jovem cuiabana, que

 

faleceu antes de completar trinta anos, deixando-lhe oito filhos.

 

Acometido por surdez precoce e sempre apaixonado pela Medicina, especializou-se em Otorrinolaringologia no Rio de Janeiro.

 

Viúvo, tentou reatar o amor da juventude, mas já era tarde: a vida havia seguido outros rumos.

 

Em 1962, apoiado na velha bengala, viajou novamente a Salvador para uma última tentativa.

 

Soube que a mãe da namorada falecera — mas ouviu dela a resposta que o desarmou: ‘Agora nós estamos velhos’.

 

Ferido pela lembrança e pela recusa, parou no Rio de Janeiro, para se recompor.

 

Lá faleceu, e repousa no Cemitério São João Batista.

 

A bengala — fiel testemunha de sua vida e companheira de tantas caminhadas — ficou de herança para os netos cariocas.

 

Gabriel Novis Neves

22-10-2025




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.