domingo, 12 de outubro de 2025

ACADEMIA DE MEDICINA DE MATO GROSSO


A nossa Academia de Medicina está prestes a completar dezenove anos de funcionamento.

 

É composta por cinquenta acadêmicos, cada um com seu respectivo patrono.

 

Atualmente contamos com quarenta e três acadêmicos em exercício e sete colegas já aprovados para tomar posse.

 

Nesse período tivemos oito presidentes, sendo um deles já falecido.

 

A atual diretoria, presidida pelo colega Roberto Gomes de Azevedo, decidiu por aclamação da Assembleia Geral, conceder aos ex-presidentes da Academia, o honroso título de Acadêmico Emérito, em reconhecimento à sua trajetória e às relevantes contribuições prestadas à Medicina no Estado de Mato Grosso.

 

A solenidade de posse dos Acadêmicos Eméritos realizou-se em 11 de outubro de 2025 no auditório do Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso.

 

Muito se fez e muito ainda há por fazer quando o assunto é Medicina.

 

Hoje Cuiabá é sede de três Faculdades de Medicina, todas muito bem avaliadas pelo Conselho Federal de Medicina.

 

Além delas, temos cursos de Medicina também em Rondonópolis, Cáceres e Sinop.

 

Estamos nos organizando para que, nas bodas de prata da nossa Academia, possamos celebrar em nossa sede própria.

 

Deus queira que eu tenha vida para participar das festividades da Academia que vi nascer e da qual fui o primeiro presidente.

 

Naquele momento, já longínquo, havia mais dúvidas do que certezas.

 

Hoje temos professores dos mais qualificados ministrando aulas on-line, quase todos os meses para nossos acadêmicos e estudiosos.

 

Queremos incentivar ainda mais a presença dos estudantes de Medicina em nossas reuniões e atividades, bem como o apoio da sociedade e das instituições que cuidam da saúde pública e privada.

 

Precisamos de patrocinadores para imprimir nossas pesquisas e divulgá-las nas mídias sociais.

 

O importante é que temos credibilidade científica para firmar parcerias e ampliar nossas ações.

 

Também necessitamos de espaço físico adequado para crescer — e isso já está sendo providenciado.

 

Neste momento de congratulações, expressamos nossa gratidão aos que partiram, mas que embarcaram conosco no sonho de fundar uma Academia de Medicina em Mato Grosso, hoje uma realidade viva e respeitada.

 

Gabriel Novis Neves

11-10-2025




sábado, 11 de outubro de 2025

AS FLORES E MÚSICAS

 

Para agradar aos leitores envio minhas crônicas diárias por listas de mensagens no WhatsApp, sempre acompanhadas por uma flor do meu jardim.

 

À noite acrescento uma canção, de preferência da música popular brasileira.

 

O editor, por sua vez, capricha nas ilustrações — tão apreciadas pelos leitores que, muitas vezes, recebem mais comentários que as próprias crônicas.

 

O mesmo acontece com as flores que envio, sempre despertando encantamento.

 

À noite, para que não se esqueçam da leitura, escolho uma música do fundo do baú e compartilho.

 

Essas canções reavivam sentimentos adormecidos e, em resposta, recebo elogios pelo bom gosto.

 

Poucos, porém, acreditam que a música também mexe comigo.

 

Mantenho contato constante com o editor, que acompanha o número de acessos ao blog do Bar do Bugre para identificar as preferências dos leitores.

 

Tenho escrito uma série sobre os hábitos da antiga Cuiabá — tema que não desperta tanta curiosidade como esperava.

 

Ainda assim, o editor me anima a continuar, lembrando que a leitura não faz parte dos interesses da maioria dos jovens.

 

Já as flores, por outro lado, conquistam a todos.

 

Têm o charme de serem colhidas no jardim da cobertura do apartamento onde moro.

 

Não sou escritor de best-sellers.

 

Apenas gostaria de ser lido e comentado por metade dos amigos que recebem minhas crônicas.

 

Muitos pedem para ser incluídos na lista de envio, mas depois não leem, não comentam e ainda me cobram por não ter sequer um livro impresso.

 

Tenho, entretanto, o blog Bar do Bugre, de livre acesso, onde é possível pesquisar as crônicas publicadas desde 2009.

 

Ali já caberiam trinta livros, com cem textos cada.

 

É uma fonte inesgotável de leitura — e gratuita.

 

Aos noventa anos, continuo escrevendo duas crônicas por dia.

 

Só deixo de fazê-lo quando as preocupações da administração da casa me tomam o tempo e a serenidade.

 

Gabriel Novis Neves

10-10-2025



sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CADEIRAS DE PALHINHA


Na varanda das casas antigas havia sempre uma cadeira de palhinha, leve e resistente, que parecia feita para guardar segredos.

 

Não era apenas um objeto de sentar: era o trono da vovó nas tardes quentes, o descanso do pai depois do almoço de domingo e o balanço improvisado das crianças que nela subiam sem pedir licença.

 

O trançado firme da palhinha, já gasto pelo tempo, guardava histórias invisíveis, como se cada fio tivesse absorvido conversas, silêncios e risadas.

 

Com o passar dos anos, a cadeira se tornou testemunha da vida que girava em torno da varanda.

 

Era ali que se discutiam assuntos sérios e também se contavam piadas.

 

Quantas vezes alguém puxou a cadeira para mais perto da porta, como quem buscasse um pouco de sombra ou o frescor da brisa da tarde? Era simples, mas oferecia um conforto que os estofados modernos nunca souberam dar.

 

Quando a palhinha começava a ceder, alguém da família levava a cadeira para o artesão do bairro.

 

Ele trançava novamente, fio a fio, com paciência e capricho.

 

Voltava renovada, como se tivesse ganhado mais tempo de vida, pronta para ser ocupada por novas gerações.

 

A cada reparo, parecia reforçar não apenas a sua estrutura, mas também a tradição de estar presente.

 

Hoje, poucas casas guardam cadeiras de palhinha.

 

Foram substituídas por móveis descartáveis, que não resistem à pressa dos dias atuais.

 

Mas, em mim, permanece a lembrança daquela cadeira na varanda, tão silenciosa quanto eloquente.

 

Ela me ensinou que os objetos também têm memória e que, às vezes, basta se sentar para sentir que não estamos sozinhos: há sempre um fio invisível nos ligando ao passado.

 

Gabriel Novis Neves

07-10-2025




quinta-feira, 9 de outubro de 2025

O QUADRO NEGRO DA ESCOLA


Conheci o quadro negro no meu primeiro dia de aula, em 1942, na Escola Modelo Barão de Melgaço, instalada em um prédio defronte à antiga e linda Praça Ipiranga.

 

Naquele dia, tudo era novidade: o barulho do giz riscando a lousa, a letra caprichada da professora Oló, e a poeira branca que parece que marcou a infância de todos nós.

 

Ela escrevia a tabuada no quadro, e com maestria repetia com seus trinta alunos o compasso das contas.

 

Até hoje guardo na memória o ritmo cadenciado: dois vezes um, dois: dois vezes dois, quatro... e assim íamos aprendendo a tabuada.

 

A professora deixava a matemática no quadro por um bom tempo para que tivéssemos chance de absorver a lição.

 

Depois, com sua bonita letra, escrevia um texto diante de uma sala em absoluto silêncio, onde só se ouvia o deslizar do giz sobre a lousa.

 

Era uma honra ser chamado ao quadro para escrever o que a professora ditava.

 

O giz cantava quando encontrava a superfície áspera e, em troca, espalhava sua poeira branca sem protestos pelos alunos.

 

Durante muitos anos o quadro negro foi substituído pelo verde-escuro, numa tentativa ingênua de afastar a palavra ‘negro’ do ambiente escolar.

 

Hoje, os quadros brancos dominam as salas de aulas, e o giz cedeu lugar aos canetões coloridos — azul, vermelho e preto.

 

Acredito que a qualidade da escola pública melhorou com a chegada de professores qualificados ocupando o espaço dos antigos mestres leigos.

 

Também contribuíram as seis universidades do nosso Estado, somados aos cursos superiores isolados que se espalharam pela capital e interior.

 

A Escola Modelo onde aprendi a ler e a escrever mudou várias vezes de endereço. Agora, distante do centro, perdeu o prestígio que um dia teve.

 

Mas, para mim, permanecerá sempre como o lugar sagrado onde descobri o poder das palavras e da escrita.

 

Gabriel Novis Neves

03-10-2025










N.E.: No LARGO DA FORCA, margem direita do córrego Cruz das Almas, foi construída a Praça MARQUÊS DE ARACATY (João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg, Lisboa, 12 de outubro de 1776 — Moçambique, 28 de março de 1838, tendo sido sucessor da Junta de 1807 e Governador da Capitania do Mato Grosso no período de 18 de novembro de 1807 a 6 de janeiro de 1819), posteriormente rebatizada como PRAÇA IPYRANGA no período da República.







quarta-feira, 8 de outubro de 2025

CHIADO


No plantão da cuidadora de domingo, ela entrou no quarto para me levar os medicamentos, enquanto eu acompanhava pela televisão uma partida de futebol.

 

De repente, apenas ela ouviu o chiado da panela que havia deixado no fogão.

 

Saiu apressada, sem nada dizer, e correu para desligar o fogão.

 

Até então eu nada sabia.

 

Nem sequer percebi o som.

 

Ao retornar, explicou-me que estava cozinhando arroz integral e que aquele chiado forte era o sinal que já estava na hora de desligar a panela.

 

Esse som constante dominava as cozinhas das antigas casas cuiabanas.

 

Era um ruído que misturava ansiedade, fome e a certeza de que o feijão logo estaria pronto.

 

Naquele tempo, a cozinha ficava próxima à varanda, e sabíamos que o almoço estava prestes a ser servido pelos sons que vinham de lá.

 

Haverá som mais espalhafatoso que o de um bife fritando na frigideira?

 

Trabalhar com gordura quente é arriscar bolhas no dorso das mãos.

 

Mas tudo que é frito, convenhamos, tem um sabor irresistível.

 

E o que dizer dos sons produzidos por uma churrascaria?

 

De longe já se ouvem vozes misturadas ao estalar das brasas e ao ambiente enfumaçado.

 

Ao sair, carregamos impregnado na roupa o perfume da carne assada.

 

Hoje, muitos restaurantes preferem cozinhas blindadas, com possantes exaustores antirruídos, como acontecia na Casa Suíça.

 

Onde todas as mesas ficavam em área descoberta.

 

Curioso: o som da panela de pressão é chamado de chiado, o mesmo termo usado para descrever uma crise de asma brônquica — perceptível até sem estetoscópio.

 

Que saudade tenho de um chiado: dos dias ensolarados, da alegria de um passado que permanece dentro de mim.

 

Gabriel Novis Neves

06-10-2025








Bairro do CHIADO, LISBOA 


terça-feira, 7 de outubro de 2025

ENVELOPES SELADOS


Comecei a frequentar a agência dos correios ainda menino.

 

Meu avô, viúvo e surdo, tinha uma antiga namoradinha dos tempos de estudante de Medicina em Salvador, na Bahia, com quem trocava correspondência semanalmente.

 

Também escrevia para suas filhas que moravam em Corumbá, Rio de Janeiro e Goiânia.

 

Gostava de escrever, assim como a minha mãe, e por isso eu era obrigado a ir aos correios com frequência.

 

As cartas me eram entregues abertas, sem selo.

 

Eu as fechava e selava com a cola fornecida pela instituição.

 

A maioria dos frequentadores, nos anos quarenta, preferia dispensar a cola e utilizava a própria saliva para colar o selo.

 

Esse hábito sempre me pareceu pouco higiênico.

 

Nunca perguntei ao meu avô nem ao meu pai porque desprezávamos a cola disponível e recorríamos ao velho gesto de molhar o selo com a língua.

 

O selo colado numa carta tinha a importância de um passaporte: garantia que a emoção atravessasse distâncias até alcançar outro coração.

 

Na década de cinquenta, já morando no Rio de Janeiro, continuei fechando as cartas e colando o selo com a cola dos correios.

 

Depois que retornei à minha cidade natal para exercer a Medicina, nunca mais precisei dos correios.

 

A tecnologia substituiu as cartas: hoje as mensagens são instantâneas.

 

As cartas tiveram o seu apogeu quando eram também o fio que unia corações.

 

Havia revistas especializadas que mantinham seções onde homens e mulheres se correspondiam.

 

Conheci algumas moças cuiabanas que viram seus noivos pela primeira vez apenas no dia do casamento.

 

Minha tia caçula, por exemplo, namorou e casou por correspondência.

 

Conheceu o marido somente quando foi morar com ele em outra cidade, em outro Estado e de outra nacionalidade.

 

Lembro-me bem de seu casamento, celebrado na casa do meu avô.

 

Eu tinha apenas dez anos, mas tudo o que presenciei naquele dia ficou para sempre guardado na minha memória.

 

Hoje, ao contrário, as pessoas casam antes mesmo de namorar.

 

Gabriel Novis Neves

01-10-2025




segunda-feira, 6 de outubro de 2025

LEQUES, ABANICOS, VENTAROLAS


As ventarolas eram feitas de papel ou de palha e, além de aliviar o calor, serviam de adereço e até de arma contra o tédio.

 

Também eram usadas por mulheres na menopausa, para enfrentar as ondas de calor decorrentes da falência da função ovariana.

 

Naquele tempo, ninguém cogitava em reposição hormonal para aliviar esses fogachos.

 

Esses leques, abanicos ou ventarolas, eram produtos artesanais, feitos com bom gosto e beleza.

 

Recordo-me das senhoras que se abanavam com eles, em passeios pelo Jardim, nas festas, nos clubes e nas reuniões sociais.

 

Quantas vezes fui à antiga cadeia pública de Cuiabá, em frente ao Estádio Presidente Dutra, no Porto, comprar dos internos artesões lindos leques.

 

Minha mãe os oferecia de presente às suas amigas.

 

Os detentos fabricavam também cobiçados caminhõezinhos de madeira, bilboquês e outros brinquedos que não se não encontravam nas lojas cuiabanas.

 

A cadeia transformou-se por anos, no Centro de Reabilitação D. Aquino Correa.

 

Hoje não sei ao certo o que é.

 

Parece apenas um prédio abandonado, prestes a ruir.

 

O novo presídio foi construído longe do centro da cidade.

 

Já não conheço ninguém que use leque, nem sei se ainda são fabricados.

 

A cidade, no entanto, segue cada vez mais quente, a ponto de ganhar o apelido de Cuiabrasa.

 

As mulheres menopausadas recorrem à reposição hormonal, e os ambientes são refrigerados, como este meu escritório onde escrevo agora.

 

Escrevo sobre a Cuiabá da minha infância e sinto uma saudade imensa.

 

Não apenas das pessoas queridas que já partiram, mas também da beleza que a cidade tinha.

 

A rua 15 de Novembro no Porto era arborizada, com seus canteiros a embelezar o traçado.

 

Seus casarões guardavam histórias silenciosas.

 

O rio Cuiabá, piscoso, enchia-se de pescadores e canoas ao entardecer.

 

As embarcações eram, então, as únicas vias para chegar ou sair da cidade.

 

Essas chegadas, quando se tratava de pessoas importantes, seguiam um ritual solene.

 

Foi assim que o meu bisavô baiano ficou noivo, em um jantar de confraternização oferecido para celebrar sua vinda a Cuiabá.

 

Gabriel Novis Neves

02-10-2025








domingo, 5 de outubro de 2025

PRIMEIRA COMUNHÃO


Assisti a um vídeo da primeira comunhão das minhas bisnetas, Maria Isabela, de oito anos, e Maria Regina, de sete, em uma capela simples, no bairro Cristo Rei em Várzea Grande.

 

Elas estavam lindíssimas, com vestidos brancos de saias compridas, feitos sob medida por costureiras cuiabanas.

 

Os cabelos foram cuidadosamente arrumados por cabelereiros e receberam um leve toque de maquiagem.

 

No altar receberam o sacramento da Eucaristia, a vela, e permaneceram ajoelhadas no primeiro banco da capela.

 

Os pais registraram aquele momento histórico, assim como fotógrafos particulares, que ainda transformarão as imagens em álbuns.

 

A cena, de extraordinária beleza e fé cristã, fez-me imediatamente lembrar da minha mãe Irene.

 

Ela, que educou nove filhos, foi uma verdadeira dona de casa.

 

Cuidava de tudo, inclusive da confecção das roupas das cinco filhas mulheres.

 

Costureira profissional só era chamada para o vestido das noivas.

 

Na minha casa nunca faltava o essencial, mas não havia espaço para extravagâncias.

 

Gostaria que a minha mãe pudesse estar presente para ver como a família que formou se desenvolveu.

 

Seus descendentes têm cursos superiores e estão bem inseridos na sociedade cuiabana.

 

O biso, os avós e os tios das Marias estudaram em universidades e prestaram relevantes serviços ao Estado.

 

Preocupo-me com o futuro delas em um mundo tão cruel em que vivemos.

 

Felizmente estão sendo educadas com muito amor, carinho e religiosidade, embora o imponderável sempre exista em nossas vidas.

 

Tenho certeza de que a minha mãe, onde estiver, estará sempre a protegê-las.

 

Recebi a benção de acompanhá-las quase nestes dez primeiros anos.

 

Hoje minhas alegrias e emoções estão ligadas a elas.

 

Já compreendem nossas conversas, o que facilita nossa gostosa convivência.

 

Existe um mundo inteiro a ser descoberto — e parece que elas sabem disso.

 

São pequenas professoras do João Gabriel, de quatro anos, e da Maria Valentina, de pouco mais de um ano.

 

Repetindo as palavras da enfermeira que cuida de mim há oito anos: ‘Essas crianças são uma benção que o senhor recebeu. ’

 

Gabriel Novis Neves

04-10-2025




sábado, 4 de outubro de 2025

SAPATOS ENGRAXADOS


Como tenho mais assuntos para escrever sobre o passado, às vezes me torno até repetitivo.

 

Escrevendo num domingo pela manhã, lembro-me do ritual de engraxar os sapatos antes das missas ou dos passeios de fim de semana.

 

Vivi parte da minha infância e juventude observando o trabalho dos engraxates e os costumes da minha gente naquele tempo.

 

Poucos tinham o hábito de limpar os sapatos em casa.

 

Na caminhada de seus bairros até o centro da cidade—centro de convivência da antiga capital — os calçados precisavam estar brilhando.

 

Como sinto saudades da cidade rural em que nasci e tanto amava!

 

Assistia às missas na Catedral, tinha aulas de catecismo, ajudava nas celebrações em latim, com o celebrante de costas para os fiéis.

 

Depois, ainda com a roupa da missa, jogava futebol descalço no galpão de chão batido atrás do prédio do Palácio da Instrução.

 

Isso foi até os meus dez anos, quando comecei a frequentar o Colégio Salesiano São Gonçalo, o colégio dos padres.

 

Lá, assistia às missas, comungava e passava os domingos brincando no Oratório Festivo Dom Bosco.

 

Os fiéis que vinham daqueles bairros para a igreja chegavam sempre com os sapatos bem polidos.

 

Hoje, aos domingos, o centro da cidade é deserto.

 

As pessoas preferem permanecer em seus bairros, muitos distantes, e o centro —outrora vivo — está morrendo.

 

Precisa de um projeto de revitalização urgente, como presente às novas gerações.

 

O domingo me faz reviver tudo isso, inclusive os ternos brancos engomados pelas famosas lavadeiras e passadeiras do Baú.

 

Nos dias atuais, os calçados nem sempre são de couro a exigir brilho.

 

Tênis-sapato, tênis fechado, quando não sandálias, são os calçados da vida moderna.

 

Hoje é domingo de recordações.

 

Gabriel Novis Neves

28-09-2025




sexta-feira, 3 de outubro de 2025

CHEIRO DO CADERNO NOVO


A emoção de abrir um caderno no início do ano escolar, sentir o cheiro do papel e imaginar as histórias que seriam escritas ali, é indescritível.

 

Eu os comprava na Livraria e Papelaria Pepe, quase em frente à igreja do Senhor dos Passos, ou então nas livrarias próximas ao Palácio da Instrução.

 

Enquanto a Pepe vivia em uma desorganização ímpar, as outras se destacavam pela ordem e organização.

 

A Pepe pertencia a duas irmãs solteiras, esportistas, praticantes do tênis em piso duro e torcedoras fanáticas do Mixo Esporte Clube.

 

Já as demais livrarias eram empresas familiares, onde todos os parentes trabalhavam.

 

Meu pai sempre me mandava comprar na Pepe, porque os preços eram melhores.

 

Hoje, o prédio encontra-se em ruinas, embora tombado pelo patrimônio histórico e artístico nacional.

 

As outras livrarias que frequentei foram transformadas em lojas comerciais.

 

O caderno novo possuía atrativos especiais: o cheiro do papel, que aos poucos se perdia com o uso, e a imaginação que despertava sobre as histórias que ali seriam registradas.

 

Tudo era emoção naqueles tempos de alfabetização.

 

Tínhamos o caderno de caligrafia, o caderno para o lápis e, já no segundo ano, o caderno para caneta tinteiro.

 

Havia ainda o caderno especial para desenho.

 

Naquela época não existiam as modernas canetas descartáveis.

 

O caderno novo, usado no grupo escolar e também para tarefas de casa, logo ficava manchado, sobretudo pela gordura da manteiga que vinha no pão, envolto em papel e guardado dentro da pasta junto ao livro.

 

Quantas histórias poderia contar a partir do caderno novo do início de cada ano escolar!

 

Hoje as crianças não experimentam a mesma emoção que eu sentia.

 

Elas vão para a escola ainda no maternal, para aprender a socializar.

 

Depois, no jardim, fazem exercícios de coordenação motora.

 

Quando chegam ao primeiro ano do ensino fundamental, já conhecem a professora, a sala de aula, o caderno novo, e até sabem escrever o próprio nome.

 

Eu, ao contrário, conheci a escola, a professora, a sala de aula, o caderno novo, pouco antes de completar sete anos, totalmente analfabeto.

 

Por isso, a emoção de abrir aquele primeiro caderno e sentir o cheiro do papel permanece viva em mim até hoje.

 

Gabriel Novis Neves

30-09-2025






quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CHUVA NO TELHADO DE ZINCO


O telhado da casa da rua do Campo, um antigo casarão reformado, foi dividido para dar origem a outra residência com fundos voltados para a rua da Fé.

 

Foi construído em adobe e coberto com telhas de barro, sem forro.

 

Na periferia, porém, as casas simples tinham telhado de zinco.

 

Quando morei no Rio, vi que as moradias erguidas nos morros eram chamadas de favelas, e seus tetos, quase sempre, eram de zinco.

 

Essas casas ficaram conhecidas como barracões de zinco, fonte inesgotável de inspiração para os sambistas.

 

Quase todos os morros tinham sua escola de samba, e a mais famosa era a da Mangueira.

 

Sua gente era trabalhadora e boa parte vivia da música.

 

Cantores ricos do asfalto subiam os morros para comprar sambas ou propor parcerias em futuros sucessos, como fez Chico Alves — o Rei da Voz.

 

Cartola, fundador da Mangueira, chegou a vender inúmeros de seus sambas, que acabaram registrados em nome de terceiros.

 

Como era gostoso ouvir a chuva forte batendo nos telhados simples das casas cuiabanas, trazendo aconchego!

 

À noite, quando já dormíamos, o barulho da tempestade às vezes vinha acompanhado de borrifos que molhavam nosso rosto.

 

Bastava puxar o cobertor e voltar a dormir, bem protegido.

 

Na chácara do meu cunhado à beira do rio Cuiabá, o quarto onde eu ficava tinha cobertura de zinco.

 

O barulho era muito mais intenso, mas, ao mesmo tempo, agradavelmente acolhedor.

 

Essas lembranças da juventude ainda hoje transbordam emoções.

 

Não encontrei nada que tocasse tanto a minha sensibilidade quanto o som da chuva — fosse no telhado de terra ou no de zinco — espalhando sons e borrifos.

 

Cresci e perdi muitos desses aconchegos da natureza: o banho de chuva, as brincadeiras nos córregos, riachos e tanques, riqueza da Cuiabá de outrora.

 

Gabriel Novis Neves

01-10-2025




quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A FILA DO PÃO

 

Escrevo sobre a vida simples, e muitos me perguntam como ela é.        

 

Ela se revela nos pequenos encontros diários, nas conversas triviais, nos cheiros e sons que compõem a coreografia desse cotidiano tão singelo!

 

Quantos vivem isso sem perceber a grandiosidade daquela fila?

 

Moro próximo a uma padaria, verdadeiro ponto de encontro.

 

Gente de outros bairros amanhece ali, senta-se às mesas da calçada apenas para conversar.

 

Existem mesas já ‘reservadas’, pertencentes a determinados grupos de amigos.

 

Quem chega primeiro telefona para os outros, avisando da presença.

 

Moradores de prédios vizinhos descem, compram o pão para casa e se juntam aos companheiros para o cafezinho.

 

Quando alguém falta, logo os amigos telefonam para saber o motivo.

 

Durante muito tempo frequentei a padaria da minha rua.

 

Deixei de ir por causa dos problemas nos joelhos, que dificultam minha locomoção.

 

Ainda hoje recebo telefonemas dos amigos da padaria perguntando quando volto.

 

Tenho saudades daqueles encontros, das conversas triviais, das leituras e comentários sobre os jornais, do cheiro do pão assando e dos sons que completavam a coreografia da vida simples.

 

Sempre tive um encanto pelas padarias: gostava de enfrentar a fila antes da abertura só para sentir o cheirinho de pães e bolos saindo do forno, enquanto os funcionários se comunicavam em voz alta.

 

Nunca gostei de lanchar à tarde na padaria.

 

O calor é intenso, os sons são outros e até as pessoas parecem diferentes: apressadas, sem interesse em um papo trivial.

 

Para elas, a vida não é simples — às vezes parece complicada.

 

Fui criado em uma rua com padaria próxima de casa.

 

De lá, sentia aquele cheiro inconfundível, que só encontramos nas padarias.

 

Essa não tinha cadeiras nas calçadas para conversas demoradas.

 

Quando o meu pai se aposentou do bar, alugou parte do espaço para funcionar a padaria: a Pão Gostoso.

 

Gabriel Novis Neves

29-09-2025