sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A COZINHEIRA DE CASA


A cozinheira que trabalha em minha casa está habituada a preparar um almoço simples, com salada verde e fruta de sobremesa.

 

No entanto, aos sábados, quando minha família vem almoçar comigo, ela fica preocupada.

 

Com filhos, netos, bisnetos e funcionários, somamos vinte pessoas ao todo — um verdadeiro batalhão para ela.

 

Há anos não janto; prefiro um lanche leve preparado pela cuidadora de plantão.

 

Durante a semana a cozinheira varia o cardápio servindo carne bovina, suína, frango, peixes, vísceras e órgãos, acompanhados por arroz integral, feijão-mulatinho, farofa de banana frita, mandioca e batata cozida.

 

Ela prepara uma refeição diária na casa com um morador e, aos sábados ‘fica com as pernas bambas’ para agradar a tanta gente, cujos hábitos desconhece, pois não há unanimidade de gostos.

 

Por exemplo, alguns preferem feijão-preto e a carne bem passada.

 

Ela sempre pede o apoio da cozinheira que trabalha para minha filha, mais acostumada aos hábitos da família e, quando ela não pode vir, é a cuidadora que a auxilia.

 

Já expliquei que o almoço é mera formalidade para reunir a família uma vez por semana.

 

Se alguém não ficar satisfeito, pode depois ir a um restaurante de sua preferência.

 

Adoro frutos do mar, mas em minha casa esse prato não é preparado, pois a cozinheira tem alergia a esses alimentos.

 

Quando mais jovem saía para jantar essas iguarias.

 

Com a idade estou mais acomodado e prefiro o sossego da casa ao desassossego das ruas.

 

Comer simples e pouco é comer bem – aprendi com os longos anos de caminhada.

 

A casa silenciosa está prestes a ficar ruidosa com a chegada dos filhos, netos e, principalmente bisnetos.

 

Abraços afetuosos e apertados, beijos de saudade após uma semana de ausência, choros de ciúme, conversas em voz alta para que todos ouçam a felicidade do momento.

 

É sábado na casa do biso, que alegre procura aproveitar ao máximo o presente, esquecendo do almoço a ser servido.

 

Minha alma está alimentada!

 

Gabriel Novis Neves

04-01-2025




quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

SEXTA-FEIRA, DIA DE FAXINA


Moro em um apartamento no vigésimo andar com cobertura e jardim.

 

Tosos os dias ele é limpo, mas mesmo assim contratei uma faxineira para a faxina de sexta-feira.

 

Hoje, enquanto eu estava no escritório, ela me mostrou a cor do pano úmido depois de passar na mesa onde trabalho.

 

O pano estava escuro.

 

Disse também que as paredes fazem o pano ficar quase barro de tão sujo.

 

No apartamento moram a cozinheira, três cuidadoras, em regime de plantão, e eu.  

 

A faxineira explicou que a sujeira vem das obras de construção que estão sendo realizadas nas redondezas.

 

O jardim tem um cuidador, supervisionado por um paisagista — termo moderno para jardineiro, no meu caso.

 

Recebo visitas raramente, mas elas sempre me dão muita alegria, principalmente as crianças nos almoços de sábado.

 

Estou ficando repetitivo de tanto escrever sobre os bisnetos, mas a verdade é que estou vivendo anos inesquecíveis.

 

Tenho bisnetos que 😐 ainda engatinham, outros que já falam pouco, mas entendem tudo para a idade.

 

Alguns já alfabetizados, com aulas de música, dança e natação.

 

Eles são meus grandes amores e me dão prazer em viver para acompanhar seus passos.

 

Mas tem gente que prefere os pets.

 

Não consigo entender isso.

 

Na minha infância convivia com animais o tempo todo, mas era algo natural, parte do dia a dia.  

 

Tínhamos cães, gatos, pássaros, galinhas, porcos e até animais mais inusitados, como morcegos, aranhas caranguejeiras e cobras.

 

Naquela época tudo isso fazia parte da paisagem de Cuiabá.

 

Nem por isso fiquei apegado a esses bichos, que hoje são clientes de luxuosas clínicas veterinárias.

 

Eu gosto mesmo é de gente.

 

Minha família sempre foi assim.

 

Meus antepassados tiveram famílias grandes — quinze filhos, um a cada ano.

 

Meus pais educaram nove filhos e custearam seus estudos universitários numa época em que o ensino em Cuiabá não ia além do segundo grau.

 

Naquele tempo, ter formação superior era um luxo.

 

Só quem podia viajar para o Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador conseguia esse feito.

 

Nunca vi meu pais cogitaram ter um pet!

 

Gabriel Novis Neves

10-01-2025




quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

REVISITANDO CUIABÁ


Aceitei o convite do meu filho para um passeio pela cidade, tão diferente daquela da minha infância e juventude!

 

Durante horas pela manhã, para escapar do nosso calor intenso, percorremos de carro ruas, avenidas, viadutos e dezenas de bairros novos.

 

Passamos pelas pontes sobre o rio Cuiabá, que ligam ao município de Várzea Grande, o segundo mais populoso do Estado.

 

Juntas, as cidades da Grande Cuiabá somam mais de um milhão de habitantes.

 

Bem diferente da pequena cidade de 30 mil habitantes onde nasci em 1935.

 

Visitamos suas praças centenárias e pontos turísticos, como o centro geodésico da América do Sul.

 

Notamos o rico rosário de igrejas católicas apostólicas romanas, que evidenciam a religiosidade cristã da cidade, simbolizada pela igreja de São Benedito, construída pelos escravos.

 

Exploramos a cidade universitária do Coxipó da Ponte, um marco do desenvolvimento social, econômico e tecnológico de Cuiabá e do Estado de Mato Grosso.

 

Hoje, Cuiabá conta com três universidades, sendo uma federal e duas particulares, onde funcionam cursos considerados nobres, como Direito, Engenharia Civil e Medicina.

 

É também uma cidade estudantil e cultural, com teatros, cinemas, museus e espaços destinados a apresentações de grupos folclóricos e estudantis de várias expressões.

 

Modernidade e tradição convivem lado a lado: vemos lindos condomínios de casas vistosas e exuberantes.

 

E, ao mesmo tempo, uma vida noturna agitada, repletas de atrações musicais.

 

Considerada por muitos como a capital do agronegócio, Cuiabá alavanca o desenvolvimento econômico do Estado.

 

Durante o passeio chamou-me a atenção o fato de que todos os logradouros públicos têm nomes.

 

Alguns homenageiam personalidades históricas reconhecidas, enquanto outros recordam pessoas menos conhecidas.

 

Entretanto, nem todos os homenageados parecem merecer tal honraria, e muitos grandes nomes da nossa história permanecem esquecidos.

 

Terminei o passeio na hora do almoço, com um pouco de tristeza por essa contestação.

 

Professores pioneiros de Cuiabá, e alguns pais verdadeiros educadores, sequer foram lembrados para dar nome a um bebedouro público.

 

Educadores natos, eles são exemplos que deveriam inspirar as novas gerações.

 

O historiador Estevão de Mendonça, cuiabano, cunhou uma frase imortal: “Quem morre em Cuiabá, morre duas vezes. Uma da morte morrida. Outra da morte do esquecimento. ”

 

Abram os olhos, cuiabanos!

 

Gabriel Novis Neves

09-01-2025




terça-feira, 28 de janeiro de 2025

QUANDO ESQUECEMOS


Escrevo, e me incomodo quando me recordo de uma situação, mas esqueço o nome do personagem.

 

Às vezes, acontece o oposto.

 

Há dias em que minha memória está afiada, e consigo lembrar de tudo: fatos e nomes fluem com naturalidade.

 

No domingo, depois do banho da tarde, cansado de não fazer nada, liguei a TV em um canal de esportes.

 

Estava começando uma partida do campeonato carioca, que outrora foi a mais charmosa competição de futebol do Rio de Janeiro.

 

Não entendo porque os quatro grandes clubes do Rio agora disputam esses jogos com seus times reservas!

 

O torneio, aliás, foi reduzido a algo simplificado, de poucos jogos e valor técnico modesto.

 

Em 1953, ano que Garrincha estreou pelo Botafogo, o regulamento era outro: cada time jogava uma vez por semana, em turno e returno, em casa e no campo do adversário.

 

A vitória valia dois pontos, o empate, um. Não havia substituições durante os jogos.

 

Naquela época os clubes não importavam jogadores, mas árbitros ingleses.

 

O campeonato era uma festa, e muitos bairros tinham seus próprios times, geralmente mantidos por contraventores do jogo do bicho — hoje transformado em patrimônio do governo federal.

 

Conheci todos: Campo Grande, Bangu, Madureira, Olaria, Bonsucesso, Vasco da Gama, São Cristóvão, América (na Tijuca), Botafogo, Flamengo, Fluminense e o Canto do Rio, em Niterói.

 

Os estádios eram pequenos, o que só alimentava a rivalidade.

 

Sem outra opção para passar o tempo, assisti àquela partida horrível.

 

Meu time venceu por 2 a 0, com gols no finalzinho do primeiro e do segundo tempo.

 

Durante o jogo recebi uma mensagem no WhatsApp de Osmar, jornalista e dono do site ‘Mídia Hoje’.

 

Ele queria falar sobre a pretensão de um pesquisador de História, lá de Salvador, na Bahia.

 

Osmar publica minhas crônicas diariamente, e o pesquisador teve acesso a uma delas pelo site.

 

Descobriu um texto que escrevi quando minha neta se formou em Medicina: ‘Seis gerações de médicos Novis de Cuiabá’.

 

Foi o suficiente para chamar a atenção do professor, que escreve sua tese de doutorado sobre o cuiabano Aristides Novis.

 

Formado em Medicina na Bahia, Aristides lá permaneceu constituindo família e deixando sua marca como professor universitário e figura de destaque na sociedade baiana.

 

Conversamos longamente, e o domingo parecia estar ao meu favor.

 

Nada esqueci durante o papo, mas ele só terminou porque meu sono chegou cedo.

 

Gabriel Novis Neves

27-01-2025




segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

OS MISTÉRIOS DAS SEGUNDAS-FEIRAS


As segundas-feiras carregam uma aura peculiar, um misto de recomeço e melancolia que intriga e desafia.

 

Após o descanso — ou agitação — do fim de semana, a segunda surge como um portal que nos conduz de volta à rotina, trazendo consigo expectativas e, por vezes, uma certa resistência.

 

Há quem as veja como vilãs, interrompendo o prazer do ócio e impondo a disciplina do trabalho.

 

Outros, porém, as encaram como oportunidades frescas, uma nova chance de iniciar projetos, corrigir rumos e estabelecer metas.

 

Essa dualidade confere às segundas-feiras um caráter quase enigmático, capaz de despertar sentimentos contraditórios.

 

Nas manhãs de segunda, as cidades despertam de maneira distinta.

 

O trânsito retoma seu fluxo intenso, as calçadas se enchem de passos apressados e os cafés acolhem clientes em busca de energia para iniciar a semana.

 

É como se um diretor invisível desse início a uma peça que se repete, mas nunca exatamente igual, a cada sete dias.

 

Curiosamente, as segundas-feiras também são palco de promessas.

 

Quantas dietas começam nesse dia?

 

Quantos planos de mudança têm a segunda-feira como marco inicial?

 

Ela simboliza, para muitos, a esperança de transformação, o desejo de fazer diferente, de ser melhor.

 

No entanto, há um charme sutil nas segundas-feiras que nem todos percebem.

 

É nas segundas que os artistas de teatro descansam, após intensos fins de semana de apresentações.

 

Para eles, a segunda é um domingo particular, um momento de pausa e reflexão.

 

Essa inversão de papéis revela que a percepção desse dia varia conforme o olhar de cada um.

 

As segundas-feiras, portanto, são mais do que simples dias no calendário.

 

Elas representam ciclos, encerramentos e inícios, desafios e oportunidades.

 

Desvendar seus mistérios é, talvez, aceitar que a vida se constrói nesses recomeços constantes, onde cada segunda-feira nos convida a participar, mais uma vez, do espetáculo cotidiano.

 

Gabriel Novis Neves

15-01-2025




domingo, 26 de janeiro de 2025

REVISITANDO O PASSADO


No início de um ano novo, é sempre bom revisitar o passado.

 

Embora eu já tenha registrado em crônicas quase tudo o que vivi, ainda há lembranças delicadas, escondidas no fundo da memória, à espera de serem resgatadas.

 

Não sou uma celebridade nem famoso o suficiente para que minha vida intima interesse a outros. Contudo, para mim, ela é um baú de emoções preciosas, cultivadas em silêncio.

 

Minha memória, viva e pulsante, guarda histórias que me fazem feliz.

 

Quantos riscos enfrentei ao longo da caminhada!

 

Tive mais alegrias que tristezas. Estas últimas, ainda que jamais esquecidas, foram logo postas de lado.

 

Recordo-me com carinho das noites na rua Paissandu, já, estudante de Medicina.

 

Das mudanças de pensões no Rio de Janeiro, cada uma carregada de histórias impossíveis de apagar.

 

Da Miss São Cristóvão, símbolo de valores culturais, morais e religiosos que, hoje, parecem quase esquecidos pelas sociedades modernas.

 

Dos plantões na Maternidade de Jacarepaguá, seguidos pelo privilégio de assistir a shows na boate do Copacabana Palace.

 

Das trapalhadas em terras estrangeiras, onde os costumes eram tão diferentes dos nossos.

 

Da experiência única de voltar ao meu torrão natal para exercer a medicina generalista e esportiva.

 

Do meu primeiro emprego público estadual, carregado de significado e aprendizado.

 

E da longa vivência na cidade universitária de Cuiabá; onde a vida me ofereceu verdadeiras aulas sobre a complexidade do ser humano.

 

Peregrinei pelos municípios de Mato Grosso e pelos bairros de Cuiabá; acumulando histórias que hoje formam o tecido da minha memória.

 

Ouvi sons únicos, que ficaram guardados no recôndito da minha mente.

 

Partilhei segredos entre quatro paredes — confidências gratificantes que o tempo nunca apagou.

 

Enfrentei uma viuvez precoce, um marco silencioso e transformador em minha jornada.

 

Reencontrei, após mais de cinquenta anos, os colegas da época de estudante no Rio de Janeiro. O tempo havia transformado seus rostos, mas parecia que tudo aquilo tinha acontecido ontem.

 

Olhei para a velhice com bons olhos, aceitando suas dificuldades, como a ausência de visitas frequentes.

 

Descobri, ao longo dos anos, a serenidade de viver em paz comigo mesmo e com os outros.

 

Aprendi a compreender as crianças —e a ser compreendido por elas.

 

E trouxe a natureza para perto de mim, preenchendo minha casa com o perfume das flores e o canto dos passarinhos.

 

O ano novo, é um tempo para recordar e agradecer.

 

Gabriel Novis Neves

26-01-2025




FAZENDEIRO SOLITÁRIO


Recebi um presente especial de um leitor fazendeiro que vive no interior de Minas Gerais, longe dos grandes centros urbanos.

 

Todas as manhãs, envio-lhe minha crônica acompanhada de uma flor do meu jardim. À noite, compartilho uma música antiga do nosso rico cancioneiro popular.

 

Ele costuma acordar bem cedo, toma seu café e segue para o curral, onde o trabalho o aguarda. Antes disso, tem o hábito de me enviar um áudio – sempre no mesmo horário, por volta das 3h20 da madrugada. É algo que espero com ansiedade.

 

Ele me conta que dorme cedo, pois a vida na fazenda começa quando as estrelas ainda brilham no céu. Nunca me lembro de ter recebido um áudio dele fora desse horário.

 

Esse meu amigo tem 75 anos. Eu nunca invadi sua privacidade, mas ele sabe muito sobre mim, graças às crônicas que escrevo e que ele lê com atenção. Pelas nossas conversas, percebo que é um homem culto, que domina o português com elegância.

 

Ontem, de forma excepcional, ele quebrou sua rotina. Após ouvir a música “Menino Bonito”, interpretada por Rita Lee, ele me enviou um áudio às 19h41. Contou que estava sentado na cozinha externa da fazenda apreciando uma cervejinha, sozinho.

 

Disse que refletia sobre a solidão: “A gente vê a casa cheia, depois ela vai esvaziando aos poucos, e no fim sobram você e a solidão. ”

 

Ele completou com uma resignação que só os sábios possuem: “Mas é assim. Não tem o que fazer, é preciso aceitar. ”

 

E então, comentou que, por eu ter 90 anos, devo carregar mais bagagem e sabedoria para compreender melhor a vida.

 

Disse algo profundo: “A vida é apenas um hiato, um breve intervalo na existência humana. ”

 

Eu concordo, meu amigo. É mesmo um hiato. Um instante que, para todos nós, termina da mesma forma.

 

Admiro sua liberdade de poder desfrutar de uma cerveja tranquila na cozinha da fazenda – um prazer que, por conta dos medicamentos, já não posso me permitir.

 

Continue compartilhando suas reflexões. Ainda temos tempo. Vamos esperar para ver o que dá.

 

Gabriel Novis Neves

19-01-2025




sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

SELEÇÃO DESFALCADA


Este sábado o almoço estará desfalcado pela ausência da família da Mônica e Ricardo, totalizando dez pessoas, sem contar as funcionárias (babás).

 

Mas terei a companhia da família do Fernando, com cinco pessoas.

 

Já tenho uma tarefa para o meu neto: imprimir os quatro primeiros capítulos de um romance ambientado em Mato Grosso, escrito por uma autora local habituada a publicar livros.

 

Tenho grande dificuldade com as novas tecnologias, mal conseguindo editar uma crônica.

 

Invejo as novas gerações pelo domínio precoce do iPad.

 

Com as recentes modificações nas configurações do e-mail no meu computador, não sei onde encontrar a pasta para arquivar minhas crônicas pulicadas.

 

Também não consigo adicionar novos endereços para enviar correspondências por e-mail.

 

Essas dificuldades estão agendadas e servirão de aperitivo ao meu neto, que imagino ser capaz de resolvê-las, embora confiasse mais em sua namorada, que está de férias no litoral brasileiro.

 

Tenho recebido dela excelentes aulas práticas sobre como utilizar os inúmeros recursos que o celular oferece.

 

Ainda não me sinto seguro para utilizar certos aplicativos que esse pequeno aparelho proporciona.

 

Penso nos geniais inventores dessas pequenas engenhocas que vieram para transformar o mundo.

 

Com um dispositivo na palma da mão tenho acesso online a todas as partes do universo.

 

As notícias circulam na internet minuto a minuto, 24 horas por dia.

 

O motorista da casa da minha filha me disse que tudo lá é resolvido por aplicativos de celular.

 

A porta da rua é aberta por senha: não se fala mais em chaves.

 

Também a televisão, o ar-condicionado e as luzes são controlados por aplicativos.

 

À distância, ela mantém o controle total da casa, algo que antigamente seria impossível.

 

Entretanto, o zelador do edifício onde moro, veio me informar que vai isolar o banheiro do meu quarto até segunda-feira, quando o pedreiro virá resolver o problema.

 

Está vazando água no apartamento abaixo do meu.

 

Se o sábado está desfalcado de filhos para o almoço, está cheio de problemas para resolver.

 

Gabriel Novis Neves

11-01-2025




quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

UM BAR CHAMADO BUGRE


O Bar do Bugre era mais que um bar.

 

Era um pedaço da velha Cuiabá que parecia resistir ao tempo.

 

No centro da cidade, ele abria as portas todos os dias, convidando gente de todo canto a entrar.

 

Tinha duas frentes: uma para a Praça Alencastro, com suas seis portas sempre movimentadas, e outra para a Praça da República, com três portas e duas janelas que davam para o depósito.

 

Entre as paredes, histórias que só o tempo e as pessoas poderiam contar.

 

Meu pai, o Bugre, era quem comandava aquele ponto de encontro.

 

Casou-se aos 40 anos com minha mãe, vinte anos mais jovem, que trazia o talento nos salgadinhos feitos em casa.

 

Nada de café.

 

No Bar do Bugre, o cardápio era de bebidas, refrigerantes, cigarros e os salgados da minha mãe, que sempre tinham o gosto de acolhimento.

 

Ao lado, o salão da sorveteria era uma festa à parte.

 

Duas janelas e três portas que mostravam um mundo de sabores: picolés, sorvetes e sugestões que encantavam as crianças e refrescavam o calor cuiabano.

 

Naquele espaço a alegria era simples e gelada, como só um sorvete pode ser.

 

Quando criança, eu era garçom do bar.

 

Crescer ali foi como ter um palco para observar o cotidiano da cidade.

 

O movimento nunca parava.

 

Homens de chapéu, mulheres de vestidos estampados, risadas, conversas e até os silêncios tinham seu lugar.

 

O Bar do Bugre não era só um ponto de encontro; era um personagem da vida cuiabana, com sua própria alma.

 

As portas se abriram pela primeira vez em 1920.

 

Foi ali que muitas amizades começaram, amores se desenharam e negócios foram fechados.

 

Mas, como tudo na vida, o bar também teve seu fim, em 1970.

 

Fechou as portas, mas não a memória.

 

Para quem viveu aquele tempo, o Bar do Bugre ainda existe intacto na lembrança.

 

Hoje, quando penso naquele espaço, vejo mais do que um lugar.

 

Vejo um pedaço de mim, da minha história e da cidade que fui aprendendo a amar.

 

Às vezes, ainda consigo ouvir o som das portas se abrindo, o riso das pessoas e o tilintar dos copos.

 

O Bar do Bugre pode ter partido, mas nunca deixou de ser um lar.

 

Gabriel Novis Neves

09-01-2025




quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O ENCANTO DAS MANHÃS NA CIDADE


Quem acorda cedo tem o privilégio de se encantar, como hoje, com um belo arco-íris surgindo em meio a um leve chuvisco, distante, quase tímido, além da janela por onde o observo.

 

O arco-íris é uma das maravilhas mais fascinantes da natureza, porém pouco celebrado pelos poetas e trovadores. Talvez o seu silêncio – sereno e misterioso – não tenha despertado tanta curiosidade. Vivemos numa pressa que nos faz esquecer de olhar para o céu.

 

Os poetas exaltam frequentemente a beleza das manhãs na cidade: a sinfonia dos pássaros, os sons da civilização – motores de carros, ônibus, caminhões e motos, compondo uma orquestra urbana. Mas o arco-íris, com sua paleta esplendorosa, desafia até mesmo os grandes mestres da pintura clássica. Nem Leonardo da Vinci ousou imitá-lo. Mais recentemente a Inteligência Artificial tentou – e falhou.

 

Só Deus conseguiu essa proeza.

 

Pergunto-me, admirado: como a natureza escolhe essas cores que tanto me fascinam?

 

Esse fenômeno meteorológico, nascido do encontro entre sol e chuva, cria o arco-íris. Minha mãe costumava dizer que esse espetáculo, tão cedo descoberto pelas crianças do interior, tem o nome de “casamento da raposa”, por ser algo inusitado e quase mágico – tão estranho quanto imaginar uma raposa casando-se.

 

A raposa, símbolo de inteligência, astúcia e solução de problemas (às vezes também de certa esperteza malandra), parece emprestar um toque de enigma a esse evento.

 

Sol e chuva ao mesmo tempo, muitas vezes acompanhados de um arco-íris, evocam uma mistura de sentimentos e situações, como se a natureza expressasse em cores e contrastes as dualidades da vida.

 

Curiosamente, essa expressão popular existe em várias culturas, em idiomas tão distantes como o alemão, o japonês e o sul-africano. E eu me pergunto: como esse ditado popular tão obscuro tornou-se comum em povos geograficamente separados?

 

No Brasil, na minha infância, tínhamos ainda uma cantiga que recitávamos quando chovia em dias ensolarados:

 

Chuva e sol,

Casamento de espanhol.

Sol e chuva,

Casamento de viúva.

 

É curioso como a ideia de casamento permeia esses versos infantis, ligando o fenômeno a uma união improvável e cheia de mistério.

 

O arco-íris é, sem dúvida, um encanto das manhãs de sol e chuva. Ele não é apenas uma obra-prima da natureza, mas também um lembrete de que há beleza até nas transições – naquilo que não é totalmente claro nem completamente definido.

 

Agora que a chuva cessou, e o horizonte perdeu parte do seu brilho, resta a memória desse instante mágico. O arco-íris nos ensina a valorizar o efêmero: tudo o que é belo e raro exige atenção, pois sua passagem pode ser tão breve quanto um piscar de olhos.

 

Olhando para o céu, me despeço deste espetáculo, mas levo comigo a certeza de que, assim como na vida, as cores mais vibrantes sempre retornam, inesperadas, para enfeitar nossos dias.

 

Gabriel Novis Neves

21-01-2025




terça-feira, 21 de janeiro de 2025

RETRATOS


Tenho observado que, hoje em dia, posar para uma fotografia exige um sorriso.

 

Mesmo em fotos protocolares – de reuniões de trabalho, formaturas, e até em velórios, as pessoas raramente estão ao natural.

 

Revisitando antigos álbuns de retratos ou aquelas tradicionais fotografias na parede da sala com o patriarca ou o casal em posição de destaque, percebo que ali ninguém sorria.

 

O semblante era sério, muitas vezes austero, quase solene.

 

Havia na seriedade desses retratos uma tranquilidade que registrava memórias sem artificialidades.

 

Nas galerias das academias os fundadores sempre aparecem com rostos graves, refletindo o peso de suas responsabilidades, o valor de seus cargos e a dignidade com que os exerceram.

 

Como imaginar um soldado em guarda em frente ao quartel sorrindo para a câmera?

 

Ou alguém sendo fotografado em uma ambulância a caminho do pronto-socorro, ostentando um sorriso no rosto?

 

Mas, nos dias de hoje, sorrir para a foto tornou-se quase uma obrigação. Por quê?

 

Essa pergunta ecoa em minha mente.

 

Teria surgido da influência dos novos comunicadores visuais – os antigos retratistas e fotógrafos?

 

É curioso: não há um padrão universal para expressar felicidade.

 

Artistas, por exemplo, são constantemente forçados a sorrir, muitas vezes por exigência do marketing.

 

E, ironicamente, alguns deles fogem da própria realidade, refugiando-se em mundos artificiais e sombrios, como o das drogas.

 

Até nas reuniões familiares mais simples, impõe-se o sorriso.

 

O fotógrafo, ou “chamador de passarinhos”, exige expressões alegres, como se o sorriso fosse obrigatório.

 

No entanto, em muitas das fotos que tirei, apareço sério.

 

Não porque estivesse infeliz, mas porque simplesmente não sorrir era natural.

 

Mas há momentos em que o sorriso surge como uma necessidade.

 

Presidir uma cerimônia de formatura sem sorrir? Impossível.

 

Assim como uma despedida definitiva, em que o sorriso, mesmo triste, expressa gratidão.

 

Talvez o sorriso seja, afinal, parte essencial do mundo moderno.

 

Ainda assim, pergunto-me: há retrato mais belo e sincero que o de um recém-nascido chorando, ao sair do ventre materno?

 

O choro é o primeiro sinal de vida, o anúncio da saúde que chega.

 

Sorrir é uma lição aprendida com o tempo.

 

Crianças não sorriem para a câmera sob comando; fazem quando querem e, honestamente, prefiro isso aos sorrisos muitas vezes falsos dos adultos.

 

Por que, então, exigimos sorrisos em retratos?

 

Seria essa uma forma de ficção moderna, uma máscara social?

 

Confesso: tenho mais perguntas que respostas sobre este tema.

 

Gabriel Novis Neves

19-01-2025






segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

UMA NOITE BEM DORMIDA


Ontem foi uma noite rara. Daquelas que chegam de mansinho, sem avisar, como um presente inesperado.

 

Deitei cedo, com o corpo pedindo sossego e a mente cansada de tantas ideias que, à noite, insistem em tomar forma.

 

Mas, dessa vez, algo diferente aconteceu.

 

A almofada pareceu mais macia, o colchão mais acolhedor, e o travesseiro encaixou-se no pescoço como se tivesse sido feito sob medida.

 

Fechei os olhos e, antes que pudesse contar as preocupações do dia, o sono veio.

 

Sem batalha, sem briga, sem o tempo perdido rolando de um lado para o outro na cama.

 

Dormi. Simples assim.

 

E não foi qualquer sono. Foi profundo, honesto, sem interrupções.

 

Nem o cachorro da vizinha, que sempre late na madrugada, ousou me acordar. Nem o barulho distante de uma moto passando na rua teve força.

 

Eu estava imerso naquele universo onde o tempo não existe e os sonhos não cobram entrada.

 

Sonhei com coisas simples.

 

Uma pracinha cheia de crianças correndo, uma brisa suave balançando as folhas das árvores.

 

Não lembro dos detalhes, mas lembro da leveza.

 

Era como se a mente estivesse limpando as gavetas, tirando o peso de lembranças desnecessárias e deixando tudo arejado.

 

Acordei com os primeiros raios de sol entrando pela janela, e algo em mim estava diferente.

 

O corpo parecia mais leve, o humor mais generoso.

 

Até o café, tinha um sabor mais especial.

 

É curioso como uma noite bem dormida pode transformar o dia.

 

Dá uma energia diferente, como se tudo fosse mais fácil de resolver.

 

As ruas parecem menos apressadas, as pessoas mais simpáticas, e o peso das horas menos cansativo.

 

Ainda que o dia esteja cheio de tarefas, eu o enfrento com calma.

 

É impressionante como um simples momento de descanso verdadeiro pode ser o remédio que tantas vezes buscamos em lugares complicados.

 

Talvez a receita da felicidade não esteja nas grandes conquistas, mas nesses pequenos milagres do cotidiano: um travesseiro bem colocado, um corpo cansado, e o silêncio da noite fazendo seu trabalho.

 

Hoje, sou só gratidão pela simplicidade de uma noite bem dormida.

 

Quem dera fossem todas assim.

 

Gabriel Novis Neves

18-01-2025





domingo, 19 de janeiro de 2025

JANEIRO DE 1946


Eu acabara de concluir o curso primário na Escola Modelo Barão de Melgaço.


Minha professora nesses quatro anos foi a querida professora Oló, que também me preparou para a primeira comunhão na Catedral Metropolitana, em dezembro de 1942.


A diretora da escola era a professora Aline Tocantins, moradora na rua 13 de junho, quase em frente à igreja Presbiteriana.


Ela era casada com Odorico Tocantins, amigo do Marechal Rondon.


A professora Oló, cujo nome era Aureolina Eustáquio Ribeiro, foi também a minha primeira professora de catecismo.


Ela morava em um casarão à margem esquerda do córrego da Prainha, no Mundéuzinho.


A Catedral Metropolitana contava com outras professoras de catequese, entre elas Maria Catarina de Figueiredo, que residia na rua de Cima.


Tanto a professora Oló quanto a professora Maria Catarina eram solteiras, dedicadas à educação pública e ao ensino da catequese.


Não tiveram filhos, mas ajudaram a formar gerações de crianças com amor e dedicação.


Passadas as festas de fim de ano, a professora Maria Catarina organizava a tradicional competição de catecismo, realizada no dia 20 de janeiro—Dia de São Sebastião.


O evento era bastante esperado e reunia uma grande plateia no pequeno auditório da igreja, ao lado da avenida Presidente Vargas, onde ficava o ponto de taxi.


A professora fazia perguntas sobre o catecismo, e os alunos que erravam eram eliminados da disputa.


No torneio em que participei, cheguei à final contra meu colega Sebastião Canuto, sobrinho da professora Maria Catarina e morador da mesma casa.


Coincidentemente, o nome dele homenageava São Sebastião (20 de janeiro) e São Canuto (19 de janeiro).


Com tanta simbologia, ele acabou vencendo a competição.


No entanto, o resultado mais justo teria sido o empate.


Recebi o prêmio do segundo lugar, que se perdeu com o tempo, mas mantenho viva na memória essa lembrança especial.


A infância no interior, era simples e encantadora.


Tudo parecia novo e mágico aos meus olhos de criança


Foi em uma dessas aulas de catequese, aos onze anos, que senti meu primeiro despertar de amor.


Quanta diferença em relação aos dias de hoje!


Gabriel Novis Neves

07-01-2025


CATEDRAL METROPOLITANA DE CUIABÁ 








Professora Oló
(Aureolina Eustáquio Ribeiro)