sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O ESPELHO DA SALA DE VISITAS


O espelho da minha casa, aquele no qual me miro antes de sair, está no meu dormitório.

 

Minha esposa o herdou de seu pai, que morava em Buenos-Aires.

 

É um belo objeto que enfeita o ambiente e me ajuda a dar o nó da gravata, ajeitar o cabelo e verificar se o terno ficou em ordem.

 

Testemunha silenciosa de vaidades e histórias, ele guarda, em seu reflexo, instantes de várias gerações.

 

Minha mãe também tinha um par de longos espelhos verticais, herdados de seu pai, que ocupavam lugar de destaque na sala de visitas.

 

Hoje, esses espelhos estão separados: um na sala de visitas da minha irmã Ylcléa e outro na da Aracy.

 

Quantos destinos começaram a ser traçados diante deles!

 

Quantos segredos guardam, quantas confidências refletiram, sem jamais revelá-las.

 

Os espelhos eram peças obrigatórias nas casas cuiabanas de outrora.

 

Cada qual mais elegante que o outro, muitos importados da Europa.

 

Cuiabá sempre manteve, de forma curiosa, afinidade com países europeus.

 

Primeiro, a colonização portuguesa.

 

Depois, vieram alemães, holandeses, poloneses, italianos, franceses.

 

E não foram poucos os libaneses, sírios, armênios e turcos que aqui se estabeleceram, deixando marcas na cidade.

 

As antigas casas cuiabanas eram desenhadas com sala, quartos, corredores, varanda, copa, cozinha, banheiro e quintal.

 

Os quartos serviam tanto como dormitórios quanto como sala de visitas, onde se recebiam as pessoas consideradas importantes.

 

Já os amigos íntimos eram acolhidos na varanda, entre conversas e confidências.

 

Meu pai jamais se envolveu na arrumação da casa, essa era tarefa de minha mãe.

 

Por pura intuição, ela trocava as cores das paredes e promovia rodízios de uso entre os quartos e sala de visitas.

 

Na infância, com meus irmãos, ocupei todos os quatro quartos da casa como dormitório em diferentes tempos.

 

Curioso é lembrar que quando alguém batia palmas no portão, cabia a mamãe decidir se o visitante seria recebido na sala de visitas — onde reinavam os espelhos — ou na varanda, mais acolhedora e simples.

 

Gabriel Novis Neves

07-10-2025




quinta-feira, 16 de outubro de 2025

CADERNOS DE RECEITAS CULINÁRIAS DA FAMÍLIA


Lembro-me com nitidez do caderno de receitas da minha mãe e da minha esposa.

 

As páginas eram escritas à mão, já amareladas pelo tempo, com manchas de gordura, açúcar e lembranças.

 

Ali estavam guardadas memórias de sabores que atravessavam gerações.

 

Muitas receitas carregavam o nome de pessoas da família.

 

No aniversário do meu pai, por exemplo, a sobremesa era sempre a ambrosia, receita herdada da mãe dele, doceira-quituteira de mão cheia.

 

Minha mulher, por sua vez, inventava sobremesas e às vezes as batizava com o nome de uma das suas cinco netas, como quem eterniza o afeto em açúcar e leite.

 

Com a chegada da internet, desapareceram os cadernos de receitas.

 

Hoje qualquer prato está a um clique de distância.

 

Como sinto falta da companhia de minha mãe Irene e da Regina, minha mulher, folheando na cozinha aquelas páginas marcadas pelo uso, numa tradição que o progresso tratou de apagar.

 

As moças de antigamente eram preparadas para serem donas de casa.

 

Hoje, por mais simples que seja o almoço, a sobremesa é comprada nas confeitarias, e não guarda memórias como as de antes.

 

É como se tivéssemos uma geração sem lembranças, onde a tecnologia tomou o lugar do sabor guardado no papel.

 

Outro dia, a cozinheira que trabalhou quarenta anos com a Regina, me perguntou seu eu havia guardado o caderno de receitas da família. Recheado de guloseimas, era um tesouro de ‘bem antigamente’.

 

Infelizmente desapareceu!

 

Recordo, porém, algumas páginas.

 

No capítulo das sopas, havia a curiosa ‘sopa fria de ervilhas e pepino’.

 

Mais adiante, a ‘salada de palmito light’ e, entre tantas delícias, o ‘suflê de doce de leite’. Esses fragmentos são o que nos restou, vivos na memória.

 

Escrevo hoje sabendo que tenho sempre o passado puxando para as minhas raízes, como quem folheia um velho caderno invisível.

 

Gabriel Novis Neves

06-10-2025






quarta-feira, 15 de outubro de 2025

BILHETE DA PADARIA


Na mesa da cozinha minha mãe deixava um bilhete rápido, escrito a lápis: “Comprar pão e trazer café. ”

 

Esses recados curtos tinham a simplicidade de quem organizava a vida sem precisar de grandes discursos.

 

A vida de então era simples — e as pessoas faziam de tudo para não complicá-la.

 

Fui educado nessa escola da simplicidade. Durante toda a minha vida, como médico e administrador público, procurei seguir o mesmo princípio: facilitar a vida de quem dependia de mim.

 

Diferente de minha mãe, eu não escrevia bilhetes.

 

Preferia ir pessoalmente até as pessoas para ajudá-las a resolver suas dificuldades.

 

Hoje tudo é complicado.

 

A burocracia parece querer nos engolir, e quase ninguém está disposto a compartilhar seus problemas.

 

Pequenos favores se transformam em grandes dificuldades.

 

Em qualquer setor da sociedade a simplicidade é o melhor caminho para organizar a vida.

 

Ela é tão simples de ser vivida — por que complicá-la?

 

Nas classes mais humildes ainda há solidariedade nos pequenos gestos: comprar um pão na padaria da esquina, emprestar uma xícara de açúcar para o café da tarde, oferecer ajuda sem esperar nada em troca.

 

Serviços essenciais como a saúde pública, deveriam seguir o mesmo princípio: serem simples, humanos, rápidos.

 

Mas muitos ainda morrem na fila, esperando um atendimento médico de urgência.

 

E isso, em pleno século XXI!

 

O mais triste é ver que tais tragédias se repetem quase todos os dias, sem despertar o mínimo de compaixão nos técnicos e na sociedade.

 

Repito, hoje é tudo tão complicado que chega a causar revolta.

 

Até as crianças são impedidas de ajudar os pais o que, sob o pretexto de proteção, termina por afastá-las da sensibilidade social.

 

Comparo os meus tempos de juventude com os de agora e noto a imensa distância entre um simples bilhete escrito a lápis e a frieza das mensagens digitais.

 

Um bilhete que, sem palavras rebuscadas, ensinava o valor da responsabilidade, do afeto e da vida.

 

Gabriel Novis Neves

11-10-2025




terça-feira, 14 de outubro de 2025

FACA, ALICATE, PEDRA DE AMOLAR

 

No quintal descansava a pedra de amolar — companheira fiel das facas da cozinha e do canivete do meu pai.

 

Seu som áspero, quando usada, lembrava o cuidado de preparar o instrumento antes da refeição ou do trabalho.

 

Soube da profissão de amolador de facas em 1953 quando fui estudar no Rio de Janeiro.

 

Geralmente era exercida por migrantes portugueses de pouca instrução.

 

Eles adaptavam, sobre uma pequena carrocinha de mão, uma roda de ferro que girava com o impulso de um cabo de aço manual.

 

Em contato com o metal, a roda produzia um ruído agudo que se ouvia de longe.

 

O afiador, para anunciar sua chegada, entoava um bordão em voz alta e musicada, chamando a atenção dos moradores.

 

Os interessados logo desciam dos apartamentos com facas, canivetes, tesouras e alicates nas mãos.

 

Na zona rural amolavam-se também facões, foices e enxadas.

 

O serviço era feito ali mesmo, na calçada, junto ao meio-fio, sob o olhar curioso das crianças.

 

Esses comerciantes ambulantes eram queridos pela população e recebidos com simpatia, sobretudo nos bairros da zona sul, onde morei.

 

Recentemente, a enfermeira cuidadora que mora no bairro Dr. Fábio me contou que ainda tem em sua casa uma pedra de amolar facas — uma raridade nos dias de hoje.

 

Na casa dos meus pais, as cozinheiras costumavam cruzar com força uma faca contra a outra, tentando recuperar o fio das lâminas cegas.

 

Hoje, com o avanço da tecnologia, temos à disposição uma infinidade de instrumentos práticos e eficazes.

 

Não me recordo de ter visto em Cuiabá algum carrinho de mão com o amolador de facas, como os portugueses do Rio.

 

E já não sei se esse serviço artesanal ainda resiste na Cidade Maravilhosa.

 

A profissão, que tem longa história, corre o risco de desaparecer, substituída por comércios fixos e máquinas modernas.

 

Mas eu guardo na memória e no coração, o som inconfundível e o bordão desses artesãos de rua — parte viva de um tempo que não volta mais.

 

Gabriel Novis Neves

13-10-2025












segunda-feira, 13 de outubro de 2025

OS SINOS QUE JÁ NÃO DOBRAM


Nasci próximo da antiga Igreja Matriz na Praça da República.

 

Da minha casa ouvia o repicar do sino, chamando os fiéis para a missa e para a reza da noite.

 

Minha iniciação religiosa foi guiada pelas badaladas do sino.

 

Os grandes eventos católicos — Natal, Ano Novo, Semana Santa — eu acompanhava pelo som das torres.

 

Na rua de Baixo havia uma igreja menor, a do Senhor dos Passos, com poucos festejos, mas com o seu sino à disposição.

 

Mais acima ficava a igreja de São Benedito, esta sim, festeira, repleta de ricas tradições.

 

Mudei-me depois para a rua do Campo, vizinho à igreja da Boa Morte.  

 

Seu sino, instalado em um campanário baixo, dificultava certas solenidades, como os batizados.

 

No meu retorno à Cuiabá, morei entre a igreja da Boa Morte e a da Mãe dos Homens.

 

No Porto vivi entre a igreja de Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Gonçalo.

 

Sempre tive identidade com os sinos das igrejas, e com eles guardei muitas histórias.

 

Hoje já não ouço os sinos tocarem.

 

O sino que emudeceu guarda, em seu silêncio, a memória de festas, celebrações e anúncios de outros tempos.

 

Foi o da Matriz que, em 1945, anunciou o fim da Segunda Guerra Mundial.

 

Esse silêncio que desce das torres das igrejas carrega boa parte da história de Cuiabá, esperando que pesquisadores a transformem em documentos.

 

Mas a cidade cresceu tanto que perdeu suas belezas originais, jogadas no lixo do passado.

 

A ausência dos sinos fez a cidade perder referências.

 

A alegria do seu badalar está agora guardada na cesta de coisas que não voltam mais.

 

A cidade, sem o som dos sinos, tornou-se apressada, sem tempo para apreciar a beleza de seus detalhes com a serenidade de outrora.

 

Gabriel Novis Neves

03-09-2025




















domingo, 12 de outubro de 2025

ACADEMIA DE MEDICINA DE MATO GROSSO


A nossa Academia de Medicina está prestes a completar dezenove anos de funcionamento.

 

É composta por cinquenta acadêmicos, cada um com seu respectivo patrono.

 

Atualmente contamos com quarenta e três acadêmicos em exercício e sete colegas já aprovados para tomar posse.

 

Nesse período tivemos oito presidentes, sendo um deles já falecido.

 

A atual diretoria, presidida pelo colega Roberto Gomes de Azevedo, decidiu por aclamação da Assembleia Geral, conceder aos ex-presidentes da Academia, o honroso título de Acadêmico Emérito, em reconhecimento à sua trajetória e às relevantes contribuições prestadas à Medicina no Estado de Mato Grosso.

 

A solenidade de posse dos Acadêmicos Eméritos realizou-se em 11 de outubro de 2025 no auditório do Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso.

 

Muito se fez e muito ainda há por fazer quando o assunto é Medicina.

 

Hoje Cuiabá é sede de três Faculdades de Medicina, todas muito bem avaliadas pelo Conselho Federal de Medicina.

 

Além delas, temos cursos de Medicina também em Rondonópolis, Cáceres e Sinop.

 

Estamos nos organizando para que, nas bodas de prata da nossa Academia, possamos celebrar em nossa sede própria.

 

Deus queira que eu tenha vida para participar das festividades da Academia que vi nascer e da qual fui o primeiro presidente.

 

Naquele momento, já longínquo, havia mais dúvidas do que certezas.

 

Hoje temos professores dos mais qualificados ministrando aulas on-line, quase todos os meses para nossos acadêmicos e estudiosos.

 

Queremos incentivar ainda mais a presença dos estudantes de Medicina em nossas reuniões e atividades, bem como o apoio da sociedade e das instituições que cuidam da saúde pública e privada.

 

Precisamos de patrocinadores para imprimir nossas pesquisas e divulgá-las nas mídias sociais.

 

O importante é que temos credibilidade científica para firmar parcerias e ampliar nossas ações.

 

Também necessitamos de espaço físico adequado para crescer — e isso já está sendo providenciado.

 

Neste momento de congratulações, expressamos nossa gratidão aos que partiram, mas que embarcaram conosco no sonho de fundar uma Academia de Medicina em Mato Grosso, hoje uma realidade viva e respeitada.

 

Gabriel Novis Neves

11-10-2025




sábado, 11 de outubro de 2025

AS FLORES E MÚSICAS

 

Para agradar aos leitores envio minhas crônicas diárias por listas de mensagens no WhatsApp, sempre acompanhadas por uma flor do meu jardim.

 

À noite acrescento uma canção, de preferência da música popular brasileira.

 

O editor, por sua vez, capricha nas ilustrações — tão apreciadas pelos leitores que, muitas vezes, recebem mais comentários que as próprias crônicas.

 

O mesmo acontece com as flores que envio, sempre despertando encantamento.

 

À noite, para que não se esqueçam da leitura, escolho uma música do fundo do baú e compartilho.

 

Essas canções reavivam sentimentos adormecidos e, em resposta, recebo elogios pelo bom gosto.

 

Poucos, porém, acreditam que a música também mexe comigo.

 

Mantenho contato constante com o editor, que acompanha o número de acessos ao blog do Bar do Bugre para identificar as preferências dos leitores.

 

Tenho escrito uma série sobre os hábitos da antiga Cuiabá — tema que não desperta tanta curiosidade como esperava.

 

Ainda assim, o editor me anima a continuar, lembrando que a leitura não faz parte dos interesses da maioria dos jovens.

 

Já as flores, por outro lado, conquistam a todos.

 

Têm o charme de serem colhidas no jardim da cobertura do apartamento onde moro.

 

Não sou escritor de best-sellers.

 

Apenas gostaria de ser lido e comentado por metade dos amigos que recebem minhas crônicas.

 

Muitos pedem para ser incluídos na lista de envio, mas depois não leem, não comentam e ainda me cobram por não ter sequer um livro impresso.

 

Tenho, entretanto, o blog Bar do Bugre, de livre acesso, onde é possível pesquisar as crônicas publicadas desde 2009.

 

Ali já caberiam trinta livros, com cem textos cada.

 

É uma fonte inesgotável de leitura — e gratuita.

 

Aos noventa anos, continuo escrevendo duas crônicas por dia.

 

Só deixo de fazê-lo quando as preocupações da administração da casa me tomam o tempo e a serenidade.

 

Gabriel Novis Neves

10-10-2025