sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A XÍCARA ESQUECIDA


Com o passar dos anos percebo minha entrega total às coisas simples da vida.

 

Em outros tempos não daria a mínima atenção a uma xícara esquecida sobre a mesa da cozinha.

 

Um objeto aparentemente banal, entretanto, pode ser o fio da memória: quem a deixou ali? Em que circunstância? Que conversas se passaram em volta dela?

 

A xícara quase sempre está cercada de pessoas.

 

Convidar alguém para um cafezinho em casa não lhe concede o direito de abandonar a xícara na mesa da cozinha.

 

Afinal, a cozinha é um lugar íntimo da casa.

 

Nas cafeterias as xícaras ficam sobre as mesas e logo são recolhidas pelos garçons.

 

Mas que tipo de conversa terá levado os protagonistas até a cozinha?

 

A revelação de um segredo até então guardado?

 

Seria algo importante, ou apenas mais uma fofoca social?

 

Como médico, penso logo em uma confidência grave: a notícia de uma doença ou a confissão de uma paixão impossível.

 

Aquela xícara, esquecida, talvez guarde confidências de uma visita planejada.

 

Ao olhar para as coisas simples, percebo a grandeza que carregam —e a coloco no papel, para compartilhar.

 

Sei, pelas respostas que recebo, que há quem se interesse por esses detalhes aparentemente pequenos.

 

Os poetas e pensadores sempre estiveram atentos às miudezas da vida, transformando-as em arte.

 

Tom e Vinícius de Morais são exemplos luminosos.

 

Quem daria importância à garota que simplesmente ia à praia de Ipanema?

 

Eles a transformaram em poesia e música de alcance mundial.

 

Desde então, a ‘Garota de Ipanema’ passou a ser símbolo da adolescente carioca caminhando rumo ao mar.

 

Todas, a partir de então, despertaram olhares atentos em seus passos.

 

O Corcovado é apenas um morro — menos para o poeta, que nele encontra uma beleza infinita.

 

É quando a balada, sinônimo de alegria, se converte pela mão do artista, em tristeza de rara beleza.

 

E cantamos emocionados a ‘Balada Triste’.

 

Assim também a xícara esquecida na cozinha, pode não passar de um detalhe banal —ou, quem sabe, o motivo para esta crônica nascer.

 

Gabriel Novis Neves

24-09-2025




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