terça-feira, 16 de dezembro de 2025

FALTANDO OPINIÃO

 

Nem todo assunto pede posição.

 

São tantos os temas sobre os quais não tenho opinião que fui buscar abrigo nos livros.

 

E lá descobri algo reconfortante: muitas vezes, a sabedoria está justamente em não saber o que pensar.

 

Na medicina, por exemplo, a prudência se manifesta no pedido de uma ‘junta médica. ’ Quantas vezes recorri a essas reuniões, consciente de que decidir sozinho poderia ser arrogância disfarçada de segurança.

 

Nos regimes democráticos, a organização do poder se distribui entre o Executivo, com seus ministros; o Legislativo com senadores, deputados e vereadores; e o Judiciário com ministros, juízes, promotores e desembargadores.

 

Mesmo assim, nos colegiados, nem todos dominam os assuntos em pauta, ainda que exista um relator para conduzir o debate.

 

Nas ditaduras, ao contrário, apenas alguns pensam.

 

Ergue-se uma verdadeira cortina de ferro entre os mandatários e o povo.

 

Com a evolução do conhecimento e das ciências, paradoxalmente, passamos a saber cada vez mais sobre cada vez menos.

 

Isso dificulta a convivência e confunde a vida em sociedade.

 

Os cursos superiores já não têm terminalidade, e quem paga o preço dessa fragmentação é a própria sociedade.

 

Isso vale para todos os níveis do saber.

 

Na última sexta-feira, o aparelho de ar-condicionado do meu escritório deixou de funcionar.

 

Ouvi a opinião do técnico que me atende há anos.

 

Diagnosticou a necessidade de trocar uma peça.

 

A peça foi substituída, e paguei por ela e pela visita técnica.

 

Quarenta e oito horas depois, o aparelho começou a vazar água.

 

O técnico voltou, fez uma limpeza e cobrou nova visita.

 

É assim em quase todos os ramos do conhecimento humano.

 

Torna-se impossível ter opinião segura diante de todos os desafios que se apresentam.

 

Outro exemplo: quando conclui o curso de Medicina, existiam o clínico geral e o cirurgião geral.

 

Hoje são tantas as especialidades e subespecialidades que, muitas vezes, não sei responder.

 

O pior é que, após a graduação, o médico ainda precisa cumprir residência, especialização, mestrado, doutorado e, não raro pós-doutorado — entrando no mercado de trabalho aos trinta e cinco anos, se for bom aluno.

 

Talvez, afinal, não ter opinião seja apenas reconhecer os próprios limites.

 

Gabriel Novis Neves

15-12-2025



segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

CAUTELOSAMENTE INÉDITAS


Alguns textos nascem completos, mas não seguem adiante.

 

Permanecem guardados — não por medo, mas por respeito ao silêncio que carregam.

 

Como escrevo quase diariamente, acumulei um bom estoque de crônicas.

 

Gosto de todas elas.

 

Cada uma revela um fragmento da minha personalidade.

 

Algumas estão guardadas há mais de um ano.

 

Outras se tornam públicas assim que termino de escrevê-las.

 

Descobri, com o tempo, que escrevo antes de tudo para mim.

 

Essas, eu guardo.

 

Há textos que não divulgo por cautela.

 

Quando o motivo é covardia, arrependo-me — pois a covardia é um ato imoral.

 

Só escrevo sobre temas que considero úteis à sociedade e à memória.

 

Tenho pouca inclinação para registrar fatos históricos friamente, porque acredito que a própria existência já é uma história.

 

Gosto dos textos que nascem completos.

 

Parecem armazenados na memória e, de repente, pedem para sair.

 

Outros também nascem inteiros, mas permanecem guardados.

 

Respeito esse silêncio.

 

Para evitar conflitos interiores, há muito deixei de escrever sobre política e futebol.

 

No esporte, ainda escorrego ocasionalmente; na política, deixo o ofício aos profissionais da escrita especializada.

 

No momento atual, comentar política interna ou internacional tornou-se um risco: o que vale hoje, amanhã já não vale.

 

O pior é que vivemos nesse mundo real, longe de fantasias.

 

Dizem que os tempos são outros — e acredito que seja verdade.

 

Quem já viveu bastante, como eu, sabe que os valores de antes eram diferentes, e, ouso dizer, mais éticos.

 

Não sou saudosista, embora assim possa parecer para quem lê meus textos.

 

Apenas relato como a vida era —e para mim, era melhor.

 

Ficou difícil escrever sobre o cotidiano, tão descaracterizado ele se encontra, cedendo espaço à ficção.

 

As prateleiras das poucas livrarias restantes estão tomadas por romances.

 

O texto que não publiquei nasceu de uma catarse cerebral e permanece guardado por respeito ao silêncio de seus personagens.

 

Gabriel Novis Neves

14-12-2025




domingo, 14 de dezembro de 2025

EDUCAÇÃO QUE VEM DO BERÇO


Existem pessoas altamente tituladas que não sabem esperar, pedir licença ou agradecer.

 

A vida segue exigindo provas que a universidade não aplica.

 

As coisas elementares da existência aprendemos em casa; a universidade, muitas vezes, passa ao longe.

 

A verdadeira universidade da vida está nas ruas, praças, bosques, cinemas, teatros, asilos e hospitais.

 

É nesses espaços que se aprende aquilo que nenhuma sala de aula ensina.

 

Esperar, pedir licença e agradecer são virtudes forjadas no convívio coletivo e revelam uma educação que não aparece no diploma.

 

Quem melhor definiu o ato de esperar foi o jogador Romário, campeão mundial.

 

No ônibus do clube que levava os atletas aos jogos, os assentos da janelinha eram reservados aos craques.

 

Dali, observavam o caminho das ruas e a chegada aos estádios.

 

Certa vez, ao entrar no ônibus, Romário encontrou todas as janelas ocupadas por jovens aspirantes ao time principal.

 

Aproximou-se de um deles e pediu o lugar: — você está chegando agora ao clube e já quer sentar na janelinha?

 

E completou: — você precisa aprender a esperar.

 

Quando for jogador do time principal, terá esse direito.

 

Na vida é assim.

 

Existem caminhos mais longos e outros mais curtos.

 

Conclui meu curso de Medicina no Rio de Janeiro.

 

Tinha condições excepcionais de permanecer ali, tornar-me professor e manter um consultório disputado.

 

Meu pai, porém, aconselhou-me a voltar para cá, onde a fila era curta e, em pouco tempo, eu estaria entre os melhores médicos da cidade.

 

Ele tinha razão.

 

Da minha turma, ocupei cedo a janelinha do ônibus da vida, enquanto muitos colegas permaneceram esperando.

 

Na pequena cidade onde nasci e cresci até os dezessete anos, todos pediam licença e agradeciam por qualquer gentileza.

 

Esse hábito não era comum na cidade grande, apesar de suas universidades e faculdades.

 

Como foi bom ter nascido no interior e ter sido educado em casa!

 

Gabriel Novis Neves

13-12-2025




sábado, 13 de dezembro de 2025

GABRIEL PARA SEMPRE


O tratamento muda com o tempo: de ‘menino’ a ‘moço’, depois ‘doutor’ e, por fim, ‘seu’.

 

Cada forma de chamar carrega uma idade escondida, um lugar que o tempo nos reserva.

 

Hoje sou chamado de ‘seu’.

 

Confesso que ainda estranho.

 

Debito esse hábito, talvez injustamente, na conta dos migrantes do Sul.

 

Gosto mesmo é de ser chamado simplesmente de Gabriel.

 

Era 1955.

 

Eu acabara de ser aprovado no vestibular de Medicina, na Praia Vermelha.

 

Consegui, com o cuiabano brigadeiro Anísio Botelho, uma passagem pelo Correio Aéreo Nacional, nos velhos aviões DC3, que faziam a rota da Integração Nacional até Cuiabá.

 

Aproveitaria a viagem para descansar, rever meus pais e conhecer minha irmã caçula, recém-nascida.

 

Nas férias de dezembro não poderia vir, pois iniciaria as aulas no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva —CPOR, no bairro imperial de São Cristóvão.

 

Na minha curta permanência, passava as tardes ao lado do meu pai, no bar.

 

Certa ocasião, encontrei o professor Ezequiel de Siqueira acompanhado de seus cachorros, sentado à primeira mesa do salão, executando tarefas escolares encomendadas.

 

Professor poliglota, possuidor de vasto conhecimento em matemática, ciências e línguas recebia encomendas de trabalhos escolares e cobrava honorários por isso.

 

Ao me ver ao lado do meu pai, chamou-me para sentar à sua mesa.

 

Cuiabá era uma cidade pequena e o bar o grande centro de convivência.

 

As notícias corriam por suas mesas, e meu pai era o homem mais bem informado da cidade.

 

Sentei-me ao lado do professor e ele me disse que soubera que eu seria médico.

 

Em uma folha de papel em branco, pediu que eu escrevesse meu nome completo.

 

Disse que, em breve, eu seria doutor e que estudaria a melhor forma de escrever meu nome na placa do consultório, no receituário médico e nos cheques do Banco do Brasil.

 

Fez, então a numerologia do meu nome inteiro.

 

Ao final, recomendou-me nunca usar o Dr. antes do nome.

 

O melhor, dizia ele, seria assinar apenas Gabriel ou o nome completo.

 

E assim fiz.

 

Gabriel Novis Neves

11-12-2025




sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

IGNORAR O QUE NÃO CONVÉM


O pano esquecido, endurecido de sol, testemunha as ausências e pequenas distrações da vida.

 

Somos eternos distraídos nesta vida que passa tão rápida!

 

O pano esquecido no varal é o de menos para quem já viu pai esquecer filho no aeroporto de Cuiabá.

 

E o pai era um sociólogo, professor da Universidade Federal de Mato Grosso.

 

Pensador dos mais elogiados, era distraído ao cúmulo de deixar a porta da rua de sua casa aberta por ocasião de suas viagens.

 

Esquecia-se de pagar as contas e estava sempre mudando de endereço — e até de cidade.

 

Chegou a morar com a família na Bolívia, enquanto a mulher vivia em Moscou.

 

Essa característica o acompanhou por toda a vida.

 

Fui o médico parteiro de sua mulher e, no dia do batizado da filha, com o padre Adalberto, jesuíta, ao meio-dia de um sábado, na igreja de São Benedito, com as portas fechadas, descobrimos que, por distração ele havia esquecido de se casar.

 

Para realizar o batizado, o jesuíta propôs o casamento religioso ali mesmo.

 

Eu e minha mulher fomos as testemunhas.

 

Após o casamento, a criança foi batizada sendo nós dois como padrinhos.

 

Vejam o que pequenas distrações podem causar em nossas vidas!

 

O significado do pano esquecido no varal, desaparece diante de esquecimentos mais robustos, que fazem parte da condição humana.

 

Quantos esquecimentos nos desviaram de rotas, para o bem ou para o mal.

 

Encontros não programados, outros com horários trocados, acabaram dando certo.

 

O paninho esquecido no varal, endurecido pelo sol, talvez nos faça lembrar das mangas maduras colhidas no pé e esquecidas no sol, se estragando.

 

Na vida, sempre penso pelos dois lados diante de situações como esta.

 

Em certas ocasiões é até bom ser distraído: ignoramos muitas coisas que não nos convém.

 

E o pano esquecido no varal, endurecido pelo sol, serve apenas para testemunhar a nossa distração.

 

Gabriel Novis Neves

21-11-2025




quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

CARA AMARRADA


Cumprimentar alguém conhecido é um gesto elementar de boa educação. 

 

Quando ele falta, instala-se uma sensação de indiferença, quase sempre acompanhada de estranhamento e mudança de comportamento. 

 

A educação se aprende em casa; o ensino, na escola. 

 

É possível ter sólida formação universitária e, ainda assim, carecer de boas maneiras — como ocorre o inverso.

 

O cumprimento, afinal, funciona como um cartão de visitas: diz muito sobre quem o oferece, mesmo antes de qualquer palavra. 

 

Há inúmeras formas de cumprimentar.

 

Um simples bom dia, boa tarde ou boa noite. Um aperto de mão, um abraço apertado, um beijo no rosto, ou apenas a aproximação respeitosa dos rostos. 

 

Cada gesto carrega consigo um sentido e uma intenção.

 

Os mações têm seus sinais próprios, discretos, marcados por toques dos dedos. 

 

Os militares se cumprimentam e se despedem pela continência.

 

Os religiosos trocam pequenas orações. 

 

As crianças, com as mãos postas, pedem a bênção. 

 

Cada país, cada cultura, guarda sua forma de saudação, sempre como expressão de respeito. 

 

A educação — antigamente chamada de boas maneiras — transformou-se muito ao longo do último século. 

 

Com a globalização, as sociedades se aproximaram e muitos conceitos se tornaram universais.

 

Nesse movimento, diversas tradições foram se perdendo, e o modo de cumprimentar talvez seja uma das perdas mais sensíveis.

 

Hoje, multiplicam-se os gestos rápidos: um simples ‘oi’, um aceno distante, um polegar erguido indicando que está tudo bem.

 

Mas o cumprimento que não veio, quando esperado, não passa despercebido.

 

Ele é sentido.

 

Às vezes, a ausência de um cumprimento soa como rompimento silencioso de uma amizade longa, sem explicação ou motivo aparente.

 

Para os idosos, isso machuca ainda mais.

 

Cumprimentar alguém conhecido é um ato primário de civilidade.

 

Sua falta provoca inquietação, podendo até levantar suspeitas de doença, distração excessiva ou distúrbio de comportamento.

 

Quem fica sem o cumprimento esperado carrega consigo a dúvida — e, muitas vezes, a dor.

 

Gabriel Novis Neves

08-12-2025




quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A FILA QUE NÃO ANDA


É uma espera longa e silenciosa.

 

Um lugar excelente para refletir sobre a paciência, as desigualdades, a burocracia e o tempo do outro.

 

Os velhos parecem ter mais paciência.

 

Os jovens querem tudo na hora e não suportam enfrentar longas filas — a não ser para comprar ingressos de shows de bandas estrangeiras famosas.

 

Muitos chegam a adormecer no local destinado à venda desses ingressos, sob chuva ou frio.

 

Quem costuma enfrentar filas são os menos favorecidos pela fortuna.

 

Os ricos pagam — e bem — para receber os ingressos em casa.

 

Os desocupados, também chamados de agenciadores ou profissionais de biscates, encaram filas que não andam recebendo alguns trocados por esse serviço.

 

E quem pensa que não existe burocracia nessas filas se engana.

 

Há um comércio paralelo, extremamente organizado, onde se vende café, pão com manteiga, sanduiche de mortadela, salgadinhos, espetinhos de carne, água, refrigerante, cerveja e a indispensável pipoca.

 

O ponto nesses locais tem dono e é negociado.

 

Não é qualquer um que chega e encosta sua barraquinha para vender.

 

Fico a pensar o que faria com o tempo do outro, que considero perdido.

 

Tempo vale ouro, diziam os antigos.

 

Quanta coisa útil poderia fazer enquanto a fila não anda — inclusive dormir.

 

O sono alimenta o corpo e a alma, afirmam os filósofos.

 

Vale lembrar que existem filas que nem andam, como as dos processos nos tribunais de justiça do nosso país.

 

Cavalgo em um desses processos há trinta anos, lutando por justiça.

 

A maioria dos colegas desse processo já partiu para outro mundo.

 

Em certas ocasiões, porém, a fila voa nesses tribunais, e carcerários se transformam em julgadores.

 

Isso fica no depósito das coisas sem explicação, embora todos se calem.

 

Vivemos em uma nação onde um dos poderes se impõe aos outros, com filas que não andam — ou voam.

 

Gabriel Novis Neves

05-12-2025




terça-feira, 9 de dezembro de 2025

UFMT 2025


A Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) é uma das maiores e mais importantes instituições de ensino superior do Estado de Mato Grosso.

 

Fundada em 10 de dezembro de 1970, completa 55 anos de história, marcados pelo compromisso com a educação pública, a pesquisa e a extensão universitária.

 

Ao longo dessas décadas a UFMT consolidou-se como referência acadêmica, contribuindo de forma decisiva para o desenvolvimento da região Centro-Oeste e do Brasil.

 

Sua criação representou um marco pois, até então, o acesso ao ensino superior era limitado e restrito a poucos.

 

A ideia de implantar uma universidade pública em Mato Grosso surgiu em um período em que o país buscava interiorizar o ensino superior, levando conhecimento e oportunidades para além dos grandes centros urbanos.

 

À frente dessa empreitada esteve o primeiro reitor da UFMT, grande defensor do projeto, que trabalhou incansavelmente para transformá-lo em realidade.

 

Os primeiros anos foram marcados por desafios significativos: escassez de infraestrutura, carência de professores e limitações orçamentárias.

 

Ainda assim, com perseverança e dedicação, a universidade cresceu e se fortaleceu.

 

Hoje, a UFMT possui câmpus em diversas regiões do Estado, como Cuiabá, Rondonópolis — hoje Universidade Federal de Rondonópolis —, Sinop, Barra do Garças, Pontal do Araguaia e Várzea Grande.

 

Essa expansão possibilitou que milhares de jovens, de diferentes origens, tivessem acesso ao ensino superior público e gratuito.

 

Além do ensino, a UFMT destaca-se nas áreas de pesquisa e extensão, desenvolvendo projetos relevantes nos campos do meio ambiente, da saúde, da agricultura e da educação.

 

Sua atuação ganha ainda mais significado pela localização estratégica no coração do Pantanal e da Amazônia.

 

Ao longo de seus 55 anos, a UFMT formou milhares de profissionais — como médicos, professores, engenheiros, advogados, entre tantos outros — que hoje contribuem ativamente para a sociedade brasileira.

 

Apesar das dificuldades enfrentadas, como os recorrentes cortes orçamentários e a necessidade constante de modernização, a UFMT mantém-se fiel à sua missão de transformar vidas por meio do conhecimento.

 

É impossível contar a história da UFMT sem reconhecer o papel fundamental dos professores e servidores fundadores, especialmente da primeira reitoria, que lançaram com dedicação e coragem as bases desta instituição.

 

Seu legado permanece vivo, influenciando o presente e inspirando o futuro de Mato Grosso e do Brasil.

 

Gabriel Novis Neves

10-12-2025




segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

INSTALAÇÃO DA UFMT

 

Nasci numa Cuiabá pequena, tranquila, onde todo mundo se conhecia.

 

A vida acontecia nas ruas, sem pressa.

 

As portas ficavam abertas, as conversas eram longas, e a cidade tinha um jeito humano de existir.

 

Foi ali que cresci. 

 

O Bar do Bugre, do meu pai, teve grande influência na minha formação.

 

Foi ali que aprendi a ouvir.

 

Entre risos, causos e silêncios, comecei a entender as pessoas, suas diferenças e suas dores.

 

Aquilo tudo me ensinou muito sobre o ser humano. 

 

Guardo com carinho as ruas de Cima, de Baixo e do Meio, as mangueiras, os amigos e as brincadeiras simples da infância.

 

Era uma vida livre, sem grandes medos, que me ensinou a conviver e a respeitar. 

 

A vontade de ser médico foi nascendo devagar. Fui percebendo o sofrimento das pessoas simples e sentindo o desejo de cuidar.

 

Foi uma escolha mais do coração do que da razão.

 

A razão veio depois. 

 

Ir para o Rio de Janeiro ampliou meus horizontes.

 

Lá entendi melhor o tamanho do Brasil, conheci a ciência de perto e aprendi disciplina.

 

A medicina me ensinou que nem sempre é possível curar, mas sempre é possível cuidar.

 

E talvez essa tenha sido a maior lição. 

 

Escolhi caminhos que cuidavam da mente e do começo da vida, porque ali estão nossas maiores fragilidades.

 

Quando voltei a Cuiabá, encontrei um Brasil com muitas carências, mas também com grande vontade de avançar.

 

Sabia que teria muito trabalho pela frente. 

 

Aceitei o convite para a Secretaria de Educação com receio, mas também com disposição para servir.

 

Acreditava que Mato Grosso precisava preparar caminhos para crescer.

 

A ideia da universidade nasceu dessa necessidade: formar gente aqui, sem precisar mandar nossos jovens para longe. 

 

A criação da Universidade Federal de Mato Grosso foi obra de muitas mãos.

 

Muita gente ajudou, nem todos ficaram conhecidos.

 

Houve articulações importantes, algumas discretas, mas decisivas.

 

Era um tempo difícil, exigia cuidado em cada passo.

 

Ainda assim, a universidade nasceu também como parte de um projeto maior de integração do país. 

 

Quando recebi o convite para ser o primeiro reitor, senti emoção e preocupação.

 

Faltava quase tudo, mas sobrava vontade.

 

O começo foi simples, improvisado, mas carregado de esperança.

 

Cada pequeno avanço era uma vitória. 

 

Sempre trabalhei guiado pela emoção.

 

Acreditei que a universidade precisava ser humana.

 

Por isso, a arte também tinha lugar ali.

 

O teatro nasceu dessa certeza.

 

Mesmo em tempos difíceis, procuramos manter o pensamento vivo e o diálogo possível. 

 

Nunca me preocupei muito com rótulos.

 

Fiz o que precisava ser feito.

 

Depois vieram outros cargos, outras responsabilidades.

 

A política ensinou que o cargo passa, mas o que fica é aquilo que se faz com honestidade.

 

A vaidade decepciona, o serviço verdadeiro compensa. 

 

A escrita veio mais tarde, quase como necessidade.

 

Escrever alivia, organiza por dentro.

 

Mistura saudade, inquietação e alguma esperança. É também uma forma de cuidar da memória. 

 

Sempre achei que o Centro-Oeste precisa ser mais ouvido.

 

Há muita produção intelectual fora dos grandes centros.

 

Gosto de autores que refletem em silêncio, como Fernando Pessoa, talvez por afinidade com quem observa mais do que afirma. 

 

Vejo a universidade como ponte.

 

Ela precisa se aproximar mais das pessoas, ajudar o Estado a crescer com equilíbrio e responsabilidade.

 

Ciência e iniciativa caminham melhor juntas. A juventude tem um papel grande nisso tudo. 

 

Hoje, olhando o tempo passado, sinto gratidão. Aprendi a aceitar o tempo e seus limites.

 

A criação da universidade continua sendo a lembrança mais marcante.

 

Ela sempre me emociona. 

 

Se tiver que deixar algo, é só isso: cuidem bem da UFMT.

 

Ela nasceu de um sonho simples, feito com trabalho, emoção e compromisso. 

 

Gabriel Novis Neves 

07-12-2025



domingo, 7 de dezembro de 2025

O CAMPUS CUIABÁ DA UFMT


Numa noite tranquila de domingo, sem muito o que fazer, naveguei pelo Youtube e encontrei um vídeo da TV Universitária sobre o local escolhido para a implantação da nossa querida UFMT. 

 

O passeio começa pela guarita da Avenida Fernando Corrêa, tratada como se fosse a entrada principal da universidade. 

 

Senti falta de referências importantes, como a escultura de Wlademir Dias-Pino, marco simbólico e artístico da Cidade Universitária, carregada de significado. 

 

O narrador observa, com razão, que Cuiabá é uma cidade quente e que o campus é bastante arborizado. 

 

O que não se diz é que aquelas árvores não nasceram ali por acaso: foram plantadas, uma a uma, sobre o antigo cerrado do Coxipó. 

 

Ao longo da apresentação, percebe-se como o tempo transforma os lugares e, por vezes afasta a universidade de sua comunidade. 

 

O antigo zoológico universitário foi fechado; a piscina, antes frequentada por visitantes com carteirinha de saúde, hoje permanece silenciosa. 

 

O chamado casarão, aparece nas imagens, mas sem a explicação de sua origem: construído pelo MEC para formar professores da rede pública, ali eles estudavam, se alimentavam e moravam. 

 

O vídeo mostra também o Teatro Universitário, porém deixa de registrar detalhes simbólicos que fazem parte de sua história. 

 

O mesmo acontece com as antigas sedes da Reitoria, sendo a atual, provisória, instalada na Biblioteca Central, há mais de quatro décadas. 

 

Ainda assim, prefiro acreditar numa utopia possível: a de uma universidade que abraça sua cidade, preserva sua memória e conta sua própria história com o cuidado que ela merece. 

 

Campus não é só prédio e árvore. 

 

É gente, memória e significado. 

 

Gabriel Novis Neves 

30–11–2025










sábado, 6 de dezembro de 2025

CONTAS PAGAS


Aprendi com meu pai que uma dívida deve ser paga sempre antes do prazo, para evitar transtornos de última hora.

 

Meu pai era de uma geração em que a palavra empenhada precisava ser cumprida, e pagar uma conta se transformava em motivo de satisfação.

 

Não sei viver devendo.

 

Envelheci sem contas a pagar, com tranquilidade, mantendo a vida sob controle.

 

Não me acostumo com a geração atual, em que a palavra empenhada pouco vale e as contas não têm prazo definido.

 

Os juros bancários rolam livremente, formando verdadeiros bolões.

 

Tenho a impressão de que as gerações antigas carregavam maior sentido de responsabilidade quando o assunto era honrar compromissos.

 

O sonho era chegar à velhice com serenidade, controlando a própria vida e pouco se importando com o saldo bancário.

 

Na Cuiabá da minha infância, seus habitantes tinham padrões sociais semelhantes e todos viviam relativamente bem, sem que lhes faltassem o essencial.

 

As crianças frequentavam a mesma escola pública, o mesmo postinho de saúde, a mesma igreja, e passeavam no mesmo jardim público.

 

Tudo era simples e prazeroso: as visitas aos domingos, a mesa farta em casa, onde quase tudo era produzido nos quintalões cuiabanos.

 

O que faltava, o rio Cuiabá oferecia, generoso, com sua variedade de peixes.

 

Poucos possuíam automóveis numa cidade em que tudo ficava perto.

 

Quando a primeira mulher passou a dirigir um carro, as pessoas iam às janelas para contemplar tamanha novidade.

 

Meu pai nunca comprou um automóvel; minha jovem cuidadora, por sua vez, tem um recém-tirado da loja.

 

Com o passar dos anos, nossa vida foi se tornando mais complexa, até chegarmos ao estado atual: dependentes de vários especialistas para controlar a própria existência.

 

O pior é que envelhecemos e esquecemos da tranquilidade que ficou para trás.

 

Com tristeza vivemos hoje em uma cidade dividida por classes sociais, gerando conflitos, onde as crianças crescem separadas e a régua que mede as pessoas passou a ser o dinheiro.

 

Gabriel Novis Neves

04-12-2025




sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

USO DE CHAPÉUS


Folheando um antigo álbum de fotografias, notei que, antigamente, a maioria dos homens usava chapéu.


No armário lá de casa, meu pai guardava uma pequena coleção, mas não me lembro de vê-lo usando nenhum deles.


Talvez fosse apenas uma extravagância da juventude. Tenho uma fotografia em que ele aparece de terno, gravata e chapéu, ao lado de amigos, assistindo a uma tourada no Campo D’Ourique.


Os trabalhadores mais humildes iam para o serviço de terno e chapéu.


Aos domingos e feriados, os moradores dos bairros vinham tomar a tradicional cervejinha no bar do meu pai, impecáveis em seus ternos brancos, engomados pelas lavadeiras do Baú, sempre com o chapéu bem posto na cabeça.


Na Praça Alencastro, os engraxates se multiplicavam. Alguns tinham até uma pequena banca na entrada do bar, ao lado das portas de madeira, trancadas com grossas travas horizontais.


Nas casas cuiabanas, os corredores costumavam ter um lugar próprio para pendurar chapéus. Já na entrada, uma argola servia para amarrar os cavalos, principal meio de transporte da época.


Tudo isso eu vi quando menino.


As mulheres também usavam chapéu, mas apenas em ocasiões especiais. Nos casamentos, surgiam com modelos elegantes, enfeitados com finos bordados que lhes protegiam o rosto.


O chapéu-panamá era símbolo de status. Quem o usava era logo tratado por “coronel”.


Quando deixei Cuiabá para estudar, alguns professores do Colégio Estadual ainda davam aulas de terno e gravata. Lembro-me do professor Agostinho de Figueiredo, de Química e Física, e de Cesário Neto, de Português.


Outros, como Francisval de Brito, de Geografia, e Gastão Müller, de História, vestiam terno, mas dispensavam o chapéu.


Desembargadores, políticos e funcionários graduados mantinham a tradição.


Presidentes da Velha República — de Dutra a Vargas, de Juscelino a Jânio Quadros — eram sempre vistos de chapéu.


Com o golpe militar de 1964, os chapéus foram substituídos pelos quepes.


Hoje, o Presidente da República usa chapéu-panamá para proteger a cicatriz de uma cirurgia na cabeça. Ou, então, bonés desenhados por marqueteiros.


O velho chapéu, tão presente no vestuário do início do século XX, caiu no esquecimento, como tudo o que envelhece.


Será que ainda existem lojas de chapéus em Cuiabá?


De cantores sertanejos, há aos montes.


Tudo é questão de moda…


Gabriel Novis Neves

17-02-2025