sexta-feira, 1 de agosto de 2025

ENQUANTO O PÃO ASSA


Morei durante dez anos quase vizinho à padaria Latorraca, na rua de Baixo.

 

Nasci sentindo o aroma dos pães, o calor dos miolos e as bicadas dos pássaros; via pessoas caminhando pelas calçadas com suas sacolas de pão.

 

Descalço, de calção e camiseta, cedo eu ia comprar o pão quentinho para o café da manhã, com o dinheiro contadinho.

 

Pessoas e pássaros me faziam companhia —cada um em busca do pão da hora ou de uma bicada nos miolos.

 

Latorraca, migrante italiano, trouxe a tradição de trabalhar com massas e produzia o pão francês, mandi, canhão, doce — todos inesquecíveis.

 

À tarde, era tarefa do meu pai comprar os pães. Vinham sempre quentinhos, e o forno da padaria trabalhava o tempo todo.

 

Enquanto o pão assava, seu aroma se espalhava entre os vizinhos, convidando todos à padaria.

 

Não sei porquê os pássaros não participavam da festa à tarde.

 

Até hoje guardo na memória a enorme mesa da copa da minha casa, com dois pacotes de pão, manteiga Aviação, queijo prato, presunto e salaminho —o lanche da noite.

 

Chegando ao Rio de Janeiro, descobri que o pão da padaria do português era mais saboroso que o nosso.

 

Fui informado de que o trigo deles era melhor — mais fresco, mais próximo do consumidor.

 

Via pessoas e muitas pombas disputando os miolos jogados no chão.

 

Até hoje gosto mais do pão do Rio do que do de Cuiabá.

 

Mas o melhor pão que já saboreei foi o de Paris. Nada igual.

 

Na minha casa, não se comia pão adormecido. Ou minha mãe preparava o pudim de pão, que todos adoravam, ou distribuía os pães aos mais pobres.

 

Hoje como o pão adormecido com manteiga e queijo branco — e acho muito bom.

 

As padarias atuais viraram estabelecimentos industriais. São raras as de rua.

 

Geralmente, estão instaladas em supermercados e shoppings.

 

O aroma vindo dos fornos desapareceu, os pássaros sumiram, e as pessoas agora encomendam, sem mais ir às as padarias buscar o pão com as próprias mãos.

 

Gabriel Novis Neves 

17-07-2025






quinta-feira, 31 de julho de 2025

VENDEDORES AMBULANTES


Eram pequenos comerciantes que fazem parte das lembranças da minha infância. Sabiam de tudo sobre a vida dos moradores.

 

Vendiam pequenos objetos pelas calçadas, quando não de porta em porta. É com saudade que me lembro do tempo em que vendia jornais percorrendo as ruas da cidade.

 

Com o tempo passei a saber quem os compraria — uns para me ajudar, outros por hábito de leitura.

 

Fui vendedor ambulante das mangas colhidas no quintal da minha casa, na rua do Campo, assim como dos pastéis feitos pela minha mãe.

 

Esses vendedores tornavam-se amigos dos fregueses, chegando até a trocar confidências.

 

A cidade sentia falta e nutria simpatia por aqueles pequenos comerciantes.

 

Com o crescimento urbano aos poucos eles foram desaparecendo.

 

O vendedor ambulante caminhava sem ponto fixo — o seu comércio era o movimento.

 

Hoje ainda encontramos alguns vendedores nas calçadas em pontos fixos, geralmente oferecendo comestíveis: cachorro-quente, churrasquinho, pipoca, caldo de cana, milho assado.

 

As calçadas passaram a ser território apenas de transeuntes apressados.

 

O velho guarda na memória um passado saboroso — e que não volta mais.

 

E a saudade dói.

 

Sempre que penso na Cuiabá de outrora, sinto tristeza por aquela cidade tão boa para se viver, sem violência ou crimes.

 

Ela tinha donos: seus moradores, todos amigos entre si.


Era uma cidade acolhedora, que recebeu com carinho seus migrantes — portugueses, espanhóis, italianos, franceses, libaneses, armênios, turcos e japoneses — formando uma única família.

 

Inicialmente ocuparam todo o nosso Centro Histórico, onde montavam seus comércios e moravam nos fundos das casas.

 

Depois expandiram-se pela rua 13 de Junho até a 15 de Novembro, no Porto.

 

Tinham um cuidado especial com a educação dos filhos, não medindo esforços para que concluíssem o ensino superior.


A rede de saúde e os estabelecimentos médicos da cidade hoje estão repletos de descendentes desses migrantes.

 

Os humildes vendedores ambulantes de antigamente, muito fizeram para o desenvolvimento de Cuiabá.

 

A eles devemos boa parte da miscigenação do nosso povo e de tantas conquistas sociais.

 

Gabriel Novis Neves

24-07-2025






quarta-feira, 30 de julho de 2025

ABORRECIMENTOS


Tive alguns aborrecimentos ultimamente — não muitos. Mas como incomodaram nos primeiros dias!

 

A maioria deles veio na forma de golpes eletrônicos, que se aproveitam dos momentos de fragilidade.

 

Nada que assustasse, mas que irrita e entristece.

 

O último aconteceu enquanto eu estava em um leito de hospital.

 

Procurar a razão é inútil.

 

As quadrilhas estão tão bem organizadas que uma pequena distração pode ser fatal.

 

E como há quadrilhas em nosso país!

 

Ao puxarmos o fio da meada, quase sempre encontramos sua origem em algum órgão público.

 

Pequenas falhas podem ser a porta de entrada para o golpe.

 

Vivemos dias sob o domínio do crime, até que a poeira baixe. Mas esquecer ... é difícil.

 

Quem tem a vida organizada, mesmo diante de um pequeno abalo, sofre.

 

Felizmente, meus dissabores se resumem à perda de modestos recursos financeiros — saqueados de contas bancárias anêmicas.

 

Ninguém gosta de ser roubado, nem mesmo de pequenas quantias, fruto de um trabalho honesto.

 

Não me recordo de outros aborrecimentos, seja por perdas empresariais ou afetivas.

 

Estou em paz com o que tenho —especialmente com a saúde, o maior patrimônio que possuo.

 

O que sinto é uma profunda vulnerabilidade social. Uma impotência total.

 

Não é agradável viver em um ambiente assim. Traz desilusão e tristeza.

 

E por quanto tempo durará essa fase? Dias? Semanas? Meses?

 

A cicatriz emocional de algo conquistado e roubado permanece.

 

Por menor que seja o valor, a lembrança custa a desaparecer.

 

Lembro-me do velho ditado popular, tão sábio: ‘Se arrependimento matasse, eu já estaria morto’.

 

Escrevo para me acalmar, e não ficar com a ideia fixa no ocorrido.

 

Amanhã receberei visitas e pedirei orações para atravessar esse temporal emocional.

 

Terei de consertar aquilo que me induziu ao erro.

 

Será necessário deixar minha casa — na cadeira de rodas, e ir ao Banco.

 

Acredito que só depois disso poderei repousar em paz.

 

O mundo é assim — e até os mais atentos são, às vezes surpreendidos.

 

Gabriel Novis Neves

23-07-2025




terça-feira, 29 de julho de 2025

O CACHORRO DO VIZINHO


Meus pais nunca tiveram o hábito de criar animais em casa, como cachorros, gatos.

 

Ao retornar à minha cidade natal para exercer a Medicina, mantive-me afastado desses animais durante os primeiros dez anos.

 

Certa ocasião, após um plantão de sábado na antiga Maternidade de Cuiabá, fui convencido pelo casal de colegas Loureiro Borba a ficar, ao menos, com um dos filhotes da cadela de raça deles, que havia dado à luz oito machos.

 

Disseram-me que seria bom para o desenvolvimento psicológico dos meus dois meninos.

 

Cheguei à casa da rua Major Gama, no Porto, com o pequeno presente.

 

Minha mulher não opinou, tampouco minha filha.

 

Os meninos levaram o cachorrinho recém-nascido para o quarto deles.

 

Dormia na cama com eles.

 

Cresceu rápido e tornou-se um grande animal, totalmente domesticado.

 

Com o tempo, passou a estranhar pessoas.

 

O cachorro era como irmão para os meus filhos.

 

Às vezes, encontrava a porta da rua aberta e fugia, colocando em risco a integridade física de quem passasse.

 

Eu tive receio das carícias dele, enquanto meus meninos enfiavam a mão dentro de sua boca.

 

Com a idade, faleceu — e os meninos sofreram muito.

 

Meu filho mais velho casou-se cedo e sempre teve cachorros em casa.

 

Hoje, cria três em seu apartamento — tratados como filhos.

 

Já o caçula abandonou a companhia dos cães.

 

No edifício onde moro alguns vizinhos criam cachorros em seus apartamentos, o que costuma causar problemas ao síndico.

 

Do meu apartamento, ouço latidos do cachorro do vizinho para o nada.

 

Talvez estejam pedindo aos donos o necessário passeio pelas calçadas da quadra.

 

Há quem diga que o cachorro é o melhor amigo do homem.

 

E, em nome dessa amizade, muitos arranjam inimizades por conta das necessidades biológicas dos seus bichos.

 

Os animais deveriam ser criados em contato com a natureza — e não presos em gaiolas.

 

Gabriel Novis Neves

25-07-2025




segunda-feira, 28 de julho de 2025

MÊS DE ANIVERSÁRIOS


O mês de julho é tempo de comemorações na nossa família.

 

Logo no dia primeiro celebramos o aniversário da minha neta Fernanda, que nasceu prematura, junto comigo — e me deu muito trabalho.

 

Hoje é uma linda mulher, casada, empresária e advogada. Ainda sem filhos.

 

Na mesma data, comemoramos o aniversário de um neto que ganhei quando Hélio Palma de Arruda Neto se casou com a minha neta Camilla, com quem teve um casal de filhos, meus bisnetos.

 

O dia 4 de julho será sempre lembrado como o aniversário da minha querida Regina — esposa, mãe, avó, bisavó e matriarca da família Borbon Novis Neves.

 

Já o dia 6 foi o meu aniversário. Este ano, completei noventa anos. Reuni à tarde, em meu apartamento, filhos, noras, genro, netos, bisnetos. Irmãos, cunhados, sobrinhos, afilhados e, poucos, mas fiéis amigos, para um chá com bolo.

 

No dia 11 foi a vez do Mikhael, outro neto que herdei com o casamento de minha neta Isabelle. Eles me presentearam com duas lindas bisnetas.

 

No dia 12 aniversariou mais um neto, Lucas, que ganhei com o casamento da minha neta Nathália — ainda sem filhos.

 

Minha nora Ana Thereza comemorou suas bodas no dia 25, na semana de NS de Santana.

 

No dia 26 quem aniversariou foi minha irmã caçula Aninha Novis.

 

Interessante notar: sou o primogênito da família Novis Neves e Aninha a última de nove irmãos.

 

Fiz noventa anos no dia seis, ela setenta no dia vinte e seis.

 

Somos, por enquanto, oito aniversariantes em julho — o mês mais simpático do ano.

 

Minha mãe teve vinte anos de vida reprodutiva. Todos os filhos nasceram em casa, com médico e o auxílio de meu pai.

 

Quando Aninha nasceu eu já estudava Medicina. Fui eu quem sugeriu que se acrescentasse Beatriz ao nome dela: Ana Beatriz

 

A família cresceu tanto que hoje as reuniões só são possíveis em clubes ou salões de festas dos modernos condomínios.

 

Reencontrei sobrinhos que não via há anos. Abraçamo-nos, beijamo-nos, sorrimos, fomos fotografados — tudo com um ar de reencontro solene, quase despedida.

 

Mas no ano que vem tem mais, com certeza!

 

Até lá!

 

Gabriel Novis Neves

26-07-2025




domingo, 27 de julho de 2025

DOMINGO PREGUIÇOSO QUE NÃO QUER ACABAR


O domingo é um dia diferenciado da semana e bem distinto dos demais.

 

Foi feito para o descanso, mas, na prática, acabamos envolvidos com a labuta da casa.

 

As crianças ficam por nossa conta — e como dão trabalho os pequeninos!

 

O dia começa com o clarear, mas caminha em passos preguiçosos.

 

Fazemos uma porção de coisas, e, quando chega o almoço ele vem sempre acompanhado de barulho.

 

Depois tiramos uma soneca e acordamos tão cansados que nos assustamos — bem antes do futebol — com a sensação de que a segunda-feira já começou.

 

Volto ao computador e escrevo enquanto aguardo o início da partida.

 

Gosto de manter um estoque de crônicas para alguma emergência — comum na minha idade.

 

O domingo segue preguiçoso. Termino de escrever e o jogo ainda não começou.

 

Parece que o domingo não quer acabar.

 

No escritório, o único som é o do aparelho de refrigeração e o das teclas do computador.

 

Daqui há pouco, assistirei ao jogo do meu time.

 

Durante a partida fico nervoso. E o tempo não anda, principalmente se o meu time estiver ganhando.

 

Em caso de derrota, ele voa...

 

O jogo terminou — e o domingo, ainda não.

 

Aproveito para assistir a outra partida, empurrando o domingo para mais perto do seu fim.

 

As crianças tomaram banho e agora esperam o lanche que anuncia o encerramento do dia.

 

Amanhã será segunda com aulas pela manhã.

 

Finalmente escureceu — sinal de que o domingo terminou.

 

Vou me aprontar para o lanche e dormir cedo.

 

O domingo preguiçoso chegou ao seu fim. Agora espero a semana passar para enfrentar o próximo domingo.

 

Com a idade os dias vão ganhando um novo ritmo.

 

As crianças, porém, continuam a amar o domingo.

 

Vivem dias inteiros a espera dele. E sempre perguntam: por que o domingo passa tão depressa?

 

Gabriel Novis Neves

27-07-2025




sábado, 26 de julho de 2025

AS RUAS QUE MUDARAM COM O TEMPO


Passeando por Cuiabá constatei uma enormidade de ruas que mudaram com o tempo.

 

Muitas tornaram-se irreconhecíveis.

 

Onde estão as famílias que moravam nas ruas de Baixo, do Meio, de Cima?

 

O local onde fui educado não existe mais — e eu perdi minhas raízes emocionais.

 

Casas vazias, com portas e janelas fechadas. Abandonadas. Demolidas. Muitas funcionam hoje como estacionamento de veículos.

 

As casas em que nasci e cresci não existem mais. As dos meus avós, também não.

 

Ruas antes movimentadas, com residências familiares, estão com as portas e janelas cerradas. Sem moradores. Sem cuidadores.

 

Fico preocupado com as ruas do centro da cidade — onde todos viviam.

 

Seus antigos moradores buscaram outras áreas para construir suas casas, nos chamados condomínios fechados, bem distantes do nosso Centro Histórico.

 

Outros se isolaram nos espigões de concreto armado, onde a convivência social ficou muito a dever.

 

Costumo dizer que a minha cidade passou de vinte e dois mil habitantes em 1935 — ano em que nasci —, para mais de seiscentos mil nos dias atuais. Tornou-se uma cidade sem alma.

 

Do bairro mais glamoroso, Popular, até a casa da minha filha, em um dos recentes condomínios, levo vinte e cinco minutos de carro, sem trânsito.

 

Daqui há dez anos, não sei como serão as ruas onde fui criado.

 

Daquela cidade pacata e nostálgica — das serenatas e das músicas chorosas tocadas nas rádios...

 

Dessa minha cidade conto histórias aos meus bisnetos.

 

Eles têm dificuldades em compreender tamanha transformação neste mundo globalizado.

 

Até a menorzinha, com pouco mais de um ano, já está visitando Roma — e deu seus primeiros passinhos lá.

 

Cuiabá virou uma cidade sem esquinas, onde sempre se encontrava um conhecido para uma boa conversa.

 

As praças outrora lugares de recreação e distração, transformaram-se em espaços perigosos, ocupados por criminosos e malfeitores.

 

Da ‘minha terra agarrativa e linda’, como diziam os poetas cuiabanos, restou o texto no Instituto Histórico de Mato Grosso.

 

Gabriel Novis Neves

25-07-2025





























sexta-feira, 25 de julho de 2025

A FLOR QUE NASCEU NA CALÇADA RACHADA


Os caprichos da natureza enchem a alma de encantamento!

 

Que beleza há no nascimento de uma flor na rachadura de uma calçada!

 

A natureza nos ensina, com simplicidade, que o belo nem sempre precisa de cenário. Basta ser.

 

Nem mesmo um pintor futurista seria capaz de nos brindar com a imagem de uma flor brotando de uma fissura no cimento, desafiando todas as condições adversas.

 

Nem a inteligência artificial conseguiria reproduzir essa maravilha.

 

O homem do campo é rico em belezas visuais —do nascer ao pôr do sol.

 

Ele precisa apenas viver em harmonia com a natureza.

 

Se a flor falasse, eu perguntaria sobre a dificuldade de nascer naquele lugar inóspito, e porque o escolheu.

 

Sem paisagista para protegê-la, vai vencendo todos os desafios que a vida lhe impõe.

 

O que a motivou a surgir num espaço tão insalubre aos nossos olhos?

 

Seria uma prova de resistência, uma competição silenciosa entre os elementos da criação?

 

Que bela lição ela nos dá, mostrando que para a natureza não há impossível.

 

Será que ninguém a pisou? Como reuniu forças para seguir florescendo em meio ao concreto bruto?

 

Tenho um jardim em casa e sei o quanto é trabalhoso mantê-lo florido.

 

A jardineira o rega duas vezes ao dia, cuida da limpeza. Um paisagista orienta a poda, aplica inseticidas, prepara enxertos com terra preta e vitaminas — e faz as trocas necessárias.

 

E a flor da calçada? Será regada por alguém?

 

Quantos pisoes suportará? Quem combaterá as pragas ou lhe dará nutrientes naquele mínimo punhado de terra?

 

Tenho uma vontade imensa de conversar com essa flor enigmática e perguntar: será que você fala com Deus?

 

Será que pediu para nascer ali?

 

Que lição deseja nos ensinar?

 

Ela é uma aula viva — dada por Deus.

 

Gabriel Novis Neves

22-07-2025




quinta-feira, 24 de julho de 2025

A BAGUNÇA DOS PEQUENOS


Logo que me casei eram os filhos que faziam a bagunça em minha casa. Depois vieram os netos. Agora são os bisnetos que alegram o ambiente quando aparecem por aqui.

 

Na fase dos filhos, a bagunça era permanente. Com os netos, acontecia nos fins de semana.

 

Com os bisnetos, apenas de vez em quando.

 

A alegria de uma casa vem da presença das crianças — e como é bom senti-la!

 

Casa sem criança é casa sem vida.

 

Passei a maior parte da minha vida em lares animados pela desordem feliz dos pequenos.

 

Na velhice, precisei me reinventar para me acostumar com o silêncio —companheiro constante onde antes reinava a algazarra.

 

Hoje, os sons que ouço vêm das ruas.

 

Pela manhã são os cantos dos pássaros, os latidos dos cães e os ruídos dos veículos que passam.

 

Às vezes, chega aos meus ouvidos a melodia distante de uma moda caipira.

 

E isso me leva a uma tristeza de dar dó!

 

Lembro-me dos tempos em que todos tínhamos rádios, que espalhavam essas melodias pela casa.

 

Meu pai possuía uma enorme eletrola no bar, onde giravam os discos de vinil em 78 rotações por minuto —lado A e lado B.

 

A música de maior sucesso ficava no lado A; a outra, no B, apenas completava o disco.

 

Em casa nos reuníamos para escutar a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com seus programas inesquecíveis: informativos, novelas, auditórios animados e transmissões de futebol.

 

Os ouvintes criavam, em sua imaginação, os cenários daquilo que escutavam. E o rádio preenchia de vida a bagunça dos lares.

 

Ouvíamos os cantores do rádio com seus reis, rainhas e princesas.

 

Saudosos tempos em que a imaginação nos conduzia à alegria e ao bem-estar.

 

Com a televisão, caímos na realidade. A beleza passou a habitar estúdios distantes da nossa cidade.

 

Os artistas do rádio, que nos faziam fantasiar a vida, desapareceram com o advento da imagem.

 

E as românticas serenatas que nos acordavam para sonhar...sumiram com a chegada da cidade grande.

 

Gabriel Novis Neves

20-07-2025




quarta-feira, 23 de julho de 2025

O PESO SUAVE DO TEMPO


A velhice é uma fase da vida que pede reflexão. Tudo é diferente do tempo da juventude.

 

O corpo clama por silêncio e já não suporta mais os dias trepidantes de outrora.

 

Tudo é mais lento e calmo.

 

Até o canto alegre dos passarinhos em namoro, o latido dos cães vadios pelas ruas, o barulho do elevador da construção ao lado — tudo incomoda.

 

Nosso corpo pede silêncio e um repouso quase mortal.

 

O despertar se torna um esforço que a velhice insiste em adiar.

 

O caminhar exige cuidados especiais —uma queda, tão fácil de acontecer, é uma das principais causas de óbito nesse tempo da vida.

 

A casa precisa ser ‘decorada’ para a idade avançada.

 

Nada de tapetes: sim à presença de apoios e equipamentos de sustentação.

 

É tempo de aproveitar a sabedoria dos dias, sabendo que eles caminham para o fim.

 

Conversar com o passado, sem deixar que as mágoas nos acompanhem.

 

Os dias, sempre, nos ensinam a viver melhor.

 

E, com o passar do tempo, viram memórias — e o velhinho, contador de histórias.

 

Todo o tempo disponível se preenche de lembranças. As crianças gostam desse tempo do velho.

 

Ele tem tanto a contar.

 

É na velhice que se aprende a arte da despedida. Sem pressa. Devagar.

 

Só quem vive esse tempo compreende o valor de partir e deixar saudades.

 

A despedida é inevitável — com glórias ou tristezas — sempre devagar.

 

Saber que a hora de partir se aproxima, mesmo lentamente, é uma experiência única.

 

E todos nós a viveremos.

 

Assim é a vida. Felizes são aqueles que conseguem prorrogar o seu tempo aqui na Terra.

 

Esse tempo se tornará lembrança para os que nos amam.

 

Sou um velhinho, consciente do que me espera.

 

Sem sofrimento.

 

Gabriel Novis Neves

09-07-2025




terça-feira, 22 de julho de 2025

EXPECTATIVA SOFRIDA


Nunca imaginei que pudesse sofrer tanto com a expectativa da chegada dos meus noventa anos.

 

Foram meses de ansiedade para alcançar esse desejo íntimo: completar noventa anos de vida.

 

Temia que um imprevisto pudesse impedir esse sonho tão aguardado.

 

Após o seis de julho, tudo se acalmou, e a minha tranquilidade voltou.

 

Acredito que essa nova idade era, no fundo, uma vaidade que eu carregava comigo.

 

Não queria me perder no caminho.

 

Alcançado o meu desejo, tudo voltou ao normal. Quase esqueci que ainda tenho muitos anos pela frente — e, quem sabe, até alcance o meu centenário.

 

Penso na festa que meus filhos, netos e bisnetos certamente prepararão para mim.

 

Terei uma bisneta na faculdade, com toda certeza estudando Medicina — inaugurando a quarta geração de médicos Novis Neves.

 

Pretendo escrever muitas crônicas sobre essa nova etapa.

 

Até lá, continuarei cuidando da minha saúde e farei de tudo para preservar a lucidez.

 

Dez anos na juventude são muito diferentes de dez anos na velhice.

 

Até hoje minha genética não me traiu — e dificilmente me maltratará agora.

 

Tenho muito a escrever. Os assuntos não se esgotam.

 

Gostaria de escrever um livro sobre cada filho, neto e bisneto, e presenteá-los.

 

A memória, com o tempo, deixa escapar muitas coisas — e isso é natural.

 

Mesmo com memória privilegiada, confesso que já perdi muitas lembranças ao longo dos anos — mas nenhuma essencial. 

 

Jamais esquecerei a alegria dos meus pequerruchos subindo a escada para brincar no jardim da cobertura do meu apartamento.

 

Descobriram que além das flores, há jabuticabas doces.

 

Queria entender qual o encanto que a cobertura do meu apartamento desperta neles.

 

Choram quando são chamados a descer, mesmo que suas casas tenham mais atrativos que a minha.

 

Gostaria de compreender essa paixão dos pequeninos.

 

Na minha infância o que me encantava era tomar banho de chuva e nadar no córrego da Prainha.

 

Gabriel Novis Neves

15-07-2025