quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

CONTINGÊNCIAS RELIGIOSAS


Morava no mesmo quarto de pensão com Carlos Eduardo Epaminondas, em um prédio da Rua Almirante Tamandaré, no Flamengo, Rio de Janeiro.


A pensão estava lotada para receber novos hóspedes. Nessa circunstância recebi, com surpresa, carta de um contemporâneo e amigo da Rua do Campo, do qual não tinha notícias dele há tempos.


Rememorei que ele havia deixado Cuiabá para estudar o 2º grau na cidade de Lins (São Paulo) e se preparar para a vida religiosa. Como “noviço” dos padres salesianos, usava a batina preta obrigatória naquela época.  Era pouco mais “velho”’ que eu. A diferença de idade era de uns cinco anos.


Naquela época, quando de seu primeiro retorno para a primeira visita aos seus pais, depois da sua ida para o Seminário em Lins, ficou hospedado no Palácio do Arcebispo em Cuiabá.


Desde criança eu morava em frente à sua casa, e quando soube da sua presença com seus pais e a notícia que depois iria visitar minha mãe, meu desejo foi o de fugir.


Não sabia como tratá-lo, já que vestia batina e quem usava essa vestimenta era padre, e eu não sabia conversar com padre amigo de infância.


Enfim, fui fazer companhia a minha mãe e observá-lo. Ele já se comportava como um verdadeiro padre salesiano, igual aos meus professores do “colégio dos padres”.


Voltando à carta que me enviara, já agora no Rio de Janeiro, ele comunicava a sua saída da Congregação. Pedia que lhe arrumasse uma vaga na pensão. Também iria prestar vestibular para um curso superior da área das ciências humanas.


Em razão da razoável demora das entregas postais dos Correios, a carta pouco o antecedeu. Ele chegaria ao Rio de Janeiro no dia seguinte, na Rodoviária, e seguiria direto para a Rua Almirante Tamandaré! Estava decidido e ingenuamente imaginando que eu deveria possuir meios mágicos para acomodá-lo. Desta vez também nada serviria ter o desejo de fugir. 


Aflito,  falei com a dona da pensão sobre o “embrulho” que estava metido. Ela foi compreensiva e ajeitou uma solução improvisada, colocando um colchão no chão do seu quarto para seu filho maior de idade dormir, cedendo o lugar ao amigo até que ele pudesse arranjar outro local, outra pensão.


Implorei ao Carlos Eduardo para não contar ao pessoal da pensão que o meu amigo foi quase padre! Na época existia preconceito com padres que deixavam o seminário.


Bem no horário do almoço, em que todos da pensão estavam reunidos, a campainha da porta social toca! Era meu amigo “branquela” com roupa de padre, mas sem a batina.


Recebido pela dona da pensão, foi logo convidado para sentar-se à mesa para o almoço. Fez o sinal da cruz, rezou baixinho, para só depois se servir.  Ninguém se assustou ou se antagonizou com ele por esse e outros gestos de fé religiosa.


Não fez muita diferença ter deixado a batina, parece; mas daí em diante, teve uma vida de sucesso profissional esse meu amigo "quase padre", que hoje é lembrado pelo nome de um prédio, em Cuiabá.


Gabriel Novis Neves

04-12-2021













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