quinta-feira, 30 de novembro de 2023

AS EMOÇÕES DE UM MÉDICO


Todo médico, no alto de seus sessenta anos de exercício da profissão, guarda, nos escaninhos da alma, um baú de lindas emoções.


Esse oceano de sentimentos, a meu ver, semelha ao nascimento dos meus filhos, netos e bisnetos. Quantos partos, cirurgias e atendimento ambulatorial em minha vida profissional!


A Medicina não é uma ciência infalível. Se bem assim, na marcha do seu desempenho, pode haver pedaços inexplicáveis.


Embora tenha presenciado um pouco de tudo, não titubeio em afirmar que só não me foi dado assistir à ‘ressureição dos mortos’.


Hoje, privilegiados, os médicos têm, à sua disposição, uma moderna tecnologia. Conseguem prolongar o caminho dos enfermos graves, aqueles que se debatem agarrados à vida cerebral.


O que trago comigo é que o profissional da área é um intransigente defensor da vida, que é finita.


Uma, em meio às mais significativas emoções que senti, foi no atendimento a pacientes no consultório e no hospital universitário.


Não me apagam da mente aquelas que vivenciei nos ambulatórios e, de igual, nos prontos-atendimentos, orientando alunos de medicina, hoje médicos de erguida estatura.


É gratificante municiar um aluno seu, preparando-o para receber um paciente! Passar a ele a técnica de uma eficaz anamnese, sequenciada do exame físico detalhado, que bênção!


Orientá-lo nos pedidos de exames laboratoriais, quando necessidade houver, e na hipótese diagnóstica, isso não tem preço!


Não existe um paciente igual ao outro. O médico tem que estar preparado para atendê-lo, recorrendo ao melhor da ciência. Isso sem emprestar relevo a seu nível social, cultural, nem religioso. 


Não se faz relevante saber da opção de gênero, nem atentar à cor política do paciente. Desimportante é sua procedência e sua atividade profissional. Importa, isto sim, respeitá-lo sempre.


Antigamente, os clientes

 ficavam tão próximos do seu médico, que acabavam por se tornar ‘parentes’. Daí, batizavam seus filhos, nascendo o ‘compadre e a comadre’, em vez do ‘doutor’. Mas o respeito profissional, esse não esmorecia.


O resultado do tratamento se agiganta quando a relação ‘médico–paciente’ flui tranquila. O homem é, antes de tudo, um ser emocional, e a maioria das doenças encarta um fundo amarrado à mente.


Muitos pacientes, à simples ‘presença do médico’, ficam curados. Esse relato reproduz o pensar deles próprios. É de cair o queixo!


Tenho comigo que aí está uma das maiores emoções do médico, tão frequente em meu fazer clínico.


Uma paciente a quem eu muito atendi, sendo parteiro da sua primeira e segunda gerações, em certa ocasião sugeriu que eu ‘aumentasse o valor dos honorários’. Não soou.


Pus, em funcionamento pleno, duas faculdades de Medicina em Cuiabá: uma pública federal, outra particular.


Ambas — isto me orgulha — obtiveram nota cinco, a maior no crivo de avaliação do MEC!


Essas emoções vividas estão inscritas no meu âmago. Jamais foi do meu feitio compartilhá-las com aqueles que pouco me dizem. 


No crepúsculo da minha existência, alimento a certeza de que elegi não só a profissão certa. Soube escolher o local ideal — melhor não poderia encontrar! — para exercê-la: Cuiabá.


Embora assim, a despeito das inesquecíveis venturas que a Medicina, ao longo dos meus dias, me pôde proporcionar, não me furto a assinalar que ela encerra uma profissão ‘ingrata’!


Que o confirmem meus colegas médicos!


Gabriel Novis Neves

02-7-2023




quarta-feira, 29 de novembro de 2023

ESTRANHA TORTURA


De uns bons tempos para cá, domina-me uma ‘estranha tortura’ durante o curto pedaço de sono pós-prandial.


Sim, por incrível que pareça, eu início e concluo um texto no decorrer do sono, um tanto superficial, que me concedo após o almoço.


Não me escapa um só de seus parágrafos. Mas, ao chegar ao escritório para digitá-lo no notebook, já se desabalou por inteiro: não me recordo de nada mais.


Meu inconsciente não tem sido generoso comigo, e eu não sei o que fazer diante de perda tão sentida.


O processo de criação é, de todo, cerebral. Quando o inconsciente se desconecta da parte consciente, a sensação é de frustração.


Não lhes posso negar: isso, por vezes seguidas, comigo tem ocorrido. 


Fica-me esta dúvida: como é difícil saber o que é normal e o que escapa da normalidade. Do nada, salta-me uma ou outra pergunta à feição destas: a quem devo procurar? Será melhor deixar como está?


Não é por qualquer motivo que alguém, tão só por ser questionador, necessite de tratamento. Considerado um chato, não por outra razão se agiganta o número deles.


Habitam por todos os cantos, estando de constante a nos importunar. Todo cuidado é pouco, dado que se fazem bem espertos.


O conhecimento voltado à saúde mental e à psicologia avançou neste quarto de século. De bom-tom talvez fosse recorrer a uma consultoria que espalhe sobre mim um pouco de luz.


Até hoje não tenho respostas para certas perguntas que me endereço. Entre essas, qual é, na real, o ‘conceito de normalidade’.  


Também me ocorre outra que me embanana: ‘quem sou eu’? E tantas mais há que cruzam comigo nos volteios da vida.


Não devemos envelopar os humanos com estatísticas. Estas buscam reduzi-los a números, sem levar em conta o enxame de dramas que os afligem.


A incerteza que envolve a pergunta ‘quem sou eu’’, nem mesmo nossos poetas populares conseguiram desatá-la com seus versos. 


Só me resta a possibilidade de me ancorar num ser superior. Este, por inteiro, comanda nossos sentidos. Portanto, também nossa vida.


O mundo está absorto em mistérios. E não há mistério maior do que a vida, a nos maravilhar a cada manhã que se espreguiça diante dos olhos.


Quem estuda genética, ao estilo dos que abraçam a Medicina, não tem por que não crer na onipotência de um Deus, que a tudo criou.


Baste-nos, para não navegar por águas mais revoltas, tão só imaginar que duas células — uma feminina, associada à outra, masculina — definem a origem do ‘homem’!


E saber que — como num passe de mágica —, quando se encontram na trompa feminina, ‘destampa’ a vida! É de pasmar! À medida que me escorregam as horas, mais pequenino me sinto!


Que meus seguidores me desculpem! Não se trata de um mero devaneio mental. Fosse, não o haveríamos de contabilizar, hora após hora, não às dúzias, mas aos milhares. 


Dia sim, e outro também, eu me proponho a administrar a ‘estranha tortura’ que me atropela. Dia chegará, e ela será, de uma vez por todas, aclarada. Que as borboletas da esperança me afaguem!


A Deus, toda a glória!


Gabriel Novis Neves

19-10-2023



La siesta, 
Autor: BERNI, Antonio (Argentina, Rosario, 1905 - Argentina, Buenos Aires, 1981), Museo Nacional de Bellas, Argentina

terça-feira, 28 de novembro de 2023

ASTRÔNOMO DA MENTE


O psiquiatra e laureado cientista Jorge Alberto Costa e Silva lançou seu livro autobiográfico. Primoroso. Assim se intitula: ‘Um astrônomo da mente’. 


Da lavra de Fernanda Mello Gentil, envereda pela história da psiquiatria.


Carioca de Vassouras, veio ao mundo em 1942. Graduou-se em Ciências Médicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos idos de 66.


Em criança, desejo seu era ser ‘astrônomo’, inquietado sobre o enorme e antigo universo que habitamos. O pai, médico, acabou por demovê-lo desse intento.


No ano seguinte, malas prontas, rumou para a Suécia. Aí se especializou no Instituto Karolinska.


Ao retornar, com a láurea do doutorado, fundou sua clínica na zona sul do Rio de Janeiro. É onde atende os pacientes até hoje, com a assessoria de uma equipe de assistentes que arregimenta psicólogos clínicos e outros médicos psiquiátricos.


Competente, lidera o grupo de pesquisas na área de neurociências e neuroimagem, à frente do Instituto Brasileiro do Cérebro.


Exerceu, por anos seguidos, a função conjunta de médico e professor universitário.


Atua como titular e diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Releva sublinhar que foi Presidente da Associação Mundial de Psiquiatria, ao tempo em que também era Diretor do Departamento da Organização Mundial da Saúde Mental, em Genebra.


Presidente da Academia Nacional de Medicina, fundou e presidiu o Instituto Brasileiro do Cérebro. Integra a Academia Francesa de Medicina.


Segundo ele, ‘saber o que somos, para onde vamos e de onde viemos, aí estão as interrogações vivas que me levaram a estudar medicina’.


Este, seu modo de pensar: o ‘cérebro’ processa todas as informações e cria o mundo em que ouvimos, sentimos e vemos. Ele foi criado para observar tudo aquilo que a natureza encerra de belo.


Compete ao psiquiatra — ele o assegura — investigar o papel no tocante ao que o cérebro faz. Bem mais: o estigma da psiquiatria iniciou o seu fim em meados do século que nos antecede.


 Pondera: os medicamentos para distúrbios emocionais iniciaram a ser utilizados, em larga escala, no ano de 1960.


No entender dele, tudo que ajuda a mente tem que ser utilizado. Sejam exemplo os ansiolíticos, antidepressivos e psicotrópicos.


Não se estagnou nesses pontos sua visão de uma psiquiatria amadurecida: a doença caracteriza um estado de mal-estar físico, psicossocial e espiritual.


Bate na tecla de que a oração se faz fundamental nos transtornos mentais, o que facilmente se comprova, de modo científico, por equipamentos de imagem.


No revisitarmos o livro de Jorge Alberto, astrônomo da mente, chegamos à conclusão de que ele traça um panorama significativo de uma singular carreira na ciência.


Não esquece de trazer à tona inquietantes reflexões por ele engendradas sobre a saúde mental, o psiquismo humano, os desafios da inteligência artificial, sempre com rara capacidade de romper fronteiras.


A bem-dizer, põe sobre a mesa uma iguaria deliciosa, daquelas que até se comem com os olhos. 


Só assim para bem justificar o adjetivo que o professor emérito e raro oncologista Gilberto Schwartsmann lhe dirigiu: Em verdade, Dr.Jorge Alberto é um ‘notável’!


Gabriel Novis Neves 

3-11-2023







EM FAVOR DA MEMÓRIA


Antes da criação da nossa Universidade, quem vinha de fora é que brilhava, detentor de todo prestígio. Esse modo de pensar flutuava no ar como se fora um ‘veredicto’.


A Universidade, diga-se, não conseguiu pôr fim à ‘farra do conhecimento’. Abriu, porém, oportunidade aos ‘nativos’.


Com uma universidade bem estruturada, já abrigando, em seu seio, alguns Museus, considero estranho que o Museu de Arte Sacra de Mato Grosso esteja dela alijado, sob os cuidados de uma Secretaria do Estado.


O Museu de Arte Sacra foi fundado em 10 de março de 1980.


Incorpora diversas peças do período setecentista, que são remanescentes da antiga Matriz do Bom Jesus de Cuiabá. De igual, objetos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Senhor dos Passos.


Agasalha também parte do acervo pessoal do saudoso Dom Aquino Corrêa, a que se soma um sem-número de doações particulares.


A missão do Museu — não há quem a ignore —, tem o fim de preservar, conservar, divulgar e transmitir a memória e a história do seu acervo.


As coleções são compostas de alfaias, pratarias, imagens, paramentos, retábulos e indumentárias provenientes dos séculos XVII a XX. São preciosidades que conduzem os visitantes a uma viagem no tempo.


Meninote ainda, afilhado de crisma do ‘Príncipe dos Poetas’, eu o visitava aos domingos à tarde. Posso lhes afiançar que, em seu gabinete, a simplicidade reinava. Soberana. 


Seu acervo, quase todo, pertence ao Museu. Dom Francisco de Aquino Corrêa foi o Arcebispo mais jovem do Brasil. Filho da terra, coube a ele assumir, numa atitude de conciliação, o Governo do Estado. É de assinalar que o futuro arcebispo nasceu numa chácara, à beira do Cuiabá.


Embaixador Plenipotenciário do Brasil — isto é, investido de plenos poderes —, honrou muito seu Estado natal, ao ser aclamado membro da Academia Brasileira de Letras.


Importa registrar que esta honraria não lhe foi dada por mera cortesia. Quem o conheceu, pôde comprovar o magnífico orador sacro que foi. Seus sermões e discursos arrastavam multidões! 


Reporto-me à histórica e, por que não dizer, pra lá de questionada demolição de nossa Catedral. Não havia símbolo de religiosidade que a ela se comparasse.


Alvo de descontentamento, mais que tudo da parte de quem lhe desconhece os meandros da história. Mas asseguro que técnicos, de gabarito comprovado, após detido estudo, concluíram que sua manutenção haveria de implicar alto risco. 


Verdade seja dita: a Matriz foi construída de ‘pau a pique’. Por inteiro de adobe. Estava machucada, e como, pelo tempo. Quando da fundação, tinha só uma torre. Bem depois, fizeram-lhe outra, mantida a estrutura pra lá de centenária.


Foi demolida em 1968. À luz do parecer técnico, o prédio estava prestes a ruir. Daí por que se decidiu por construir a atual, toda de concreto.


É indispensável pontuar que as histórias religiosas das igrejas de Cuiabá são recheadas de encanto!


Ainda nos dias que correm, ricas de fervor religioso são as missas de madrugada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito.


A Igreja do Senhor dos Passos, por sua vez, encerra uma história incrível, tendo sido construída por um rico comerciante português. Por sinal, ele está sepultado em sua cripta.


Esquecer não podemos de conferir o merecido crédito às devotas procissões que invadem nossas igrejas!


O tempo passou. Respeito os que palmilham outro pensar. A meu ver, contudo, encerro a convicção de que não há lugar mais apropriado para preservar a memória religiosa do Estado. 


De mãos dadas com a UFMT. Sempre.


Gabriel Novis Neves

13-7-2023














segunda-feira, 27 de novembro de 2023

RECONFORTO À VISTA


Sou feliz! Melhor seria dizer: tenho experimentado uns momentos de intensa felicidade. Em bem da verdade, ninguém consegue ser feliz o tempo todo.


Um amigo intelectual de São Paulo, bem desgastado com a vida que levava, certa vez cantarolou, dedilhando seu violão.


A canção, de sua autoria, desfilava uma estrofe com este verso: ‘pra meu consolo, tenho as estrelinhas do céu, os livros e o violão’.


De minha parte, seus dons não me causam inveja. Sim, também eu me orgulho de os ter. Mas devagar com o andor! Embora tenha me esforçado, manejo o violão sem destreza alguma.


Se as estrelinhas sorriem para ele, a mim foi dado, por igual, o privilégio de que elas também brilhassem no meu céu. Estamos empatados nesse quesito, um e outro agraciados por Deus.


No respeitante aos livros, fui à farta aquinhoado por meus pais. Desde tenra idade, este era o desejo deles: que me fascinasse com a leitura.


Olhos no futuro, sabiam eles que os livros haveriam de me abrir os caminhos da vida, fazendo-me útil à sociedade.


Já o violão, quem me deu de presente, em um aniversário, foi um desses irmãos cuja saudade nem o tempo consegue apagar: Benedito Pedro Dorileo. 


É de notar que meu amigo paulista, embora fosse criado, desde o alvorecer de seus dias, num ambiente em que a música imperava, apenas arranhava as cordas do seu violão.


A vida nos reserva fases em que a felicidade parece ter brigado conosco. Sinto até dificuldades em saber como proceder nessas ocasiões. 


Jeito é buscar algo que tenha o poder de suavizar a jornada. Algo que, ao menos, nos devolva o prazer de viver, revigorando-nos.


Sei, são instantes isolados. Mas não há quem não passe por isso. Ainda que fugazes, deixam marcas doídas, que nos machucam em cheio.


 Meu amigo tentou externar os reveses da sorte com uma música. Taí, uma boa e oportuna saída.


Dias há em que nossas flores não abrem. Quando algo me põe para baixo atingindo-me em cheio, procuro abraçar a minha solidão com a frieza do teclado do computador.


Esse estado d’alma, chego a pensar, parece não abalar nossos jovens. Bem sei: têm mais com que se distrair. É um tormento que aflige em especial os idosos.


Dado o desconforto geral, não conheço remédio ou psicanálise que cure. Violão, não aprendi a tocar. Penso que ele pode ser reconforto nessas intempéries.


Houve um tempo em que contratei um bom professor de violão. Embora assim, não obtive êxito no tocá-lo com um mínimo de qualidade.


Espero que as horas que invisto nos meus afazeres junto ao computador, consigam minorar esse desconforto que, de quando em vez, me abate.


Sei que o Criador, por sua graça e bondade, está a me conceder um ‘extra’. Nesse lapso, que o bom uso do tempo seja convidativo para me amenizar as horas.


Tendo emprestado boa parte do dia para a feitura de minhas crônicas, resolvo fechar meu notebook.


A televisão me convida para assistir a uma partida de futebol internacional. Que me delicie! Fiapos de reconforto à vista! 


Gabriel Novis Neves

19-7-2023




sábado, 25 de novembro de 2023

FAMÍLIA DE ARTISTAS

 

Meus filhos me mimosearam com quatro bisnetos: duas meninas e dois meninos. Três são cuiabanos da gema. O bisneto mais velho, cinco anos, filho de português, nasceu e mora em Portugal.


Os que aqui residem, têm um pré-requisito básico para se tornar artistas: são pra lá de desinibidos. Coisa difícil de ver nessa faixa etária.


As crianças frequentam um excelente Conservatório de Música. As meninas estão aprendendo piano. Com esta ressalva: a mais mocinha também estuda canto!


Esperto, o guri acompanha as músicas, nos aparelhos de percussão: bombo, pandeiro e bateria. E não é que o danado leva jeito! A harmonia das músicas o encanta.


Na última apresentação musical com alunos do Conservatório, num grande teatro da capital, lotado até as tampas, estavam eles lá. 


Quando pequeno, eu era de todo inibido. Por isso, até me chamavam de ‘bicho do mato’. Vivia agarrado às saias da minha mãe.


Em tempo algum, pensei em me apresentar num palco de teatro. Mas quem manda no destino? Quis ele que eu fosse para a ‘boca do palco’, acompanhando a atriz Tônia Carrero. 


Foi em 1982, na inauguração do Teatro da Universidade Federal. À época, tínhamos só uma sala de cinema em Cuiabá. Era o Cine-Teatro.


À presença da bela atriz, não lhes nego, tremeram-me as pernas. Alunos, servidores e professores da UFMT, gente querida da sociedade, todos ali se apinharam. Não havia poltrona vazia.


Afinal, um acontecimento único. De notar, as palavras elogiosas de uma das damas do teatro brasileiro.


Encenou-se Macunaíma, de Oswald de Andrade. Tanto a direção quanto o elenco do espetáculo couberam a Antunes Filho, da Academia Brasileira de Letras. Show! Nada havia que destoasse.


Volto ao cerne: criança aprende com extremada facilidade. O mesmo não se dá com um ‘burro velho’. 


Faço parte da geração de crianças que obedeciam, às cegas, aos mais antigos. Aos cinco anos, morei um tempo com meu avô. Para que não me rendesse ao ócio, ele resolveu me ensinar o difícil jogo de xadrez.


Além do lazer, foi-me bem educativo: abriu-me o ensejo de raciocinar melhor, de controlar as emoções, hábil a me mostrar que nós todos somos importantes.


A verdade é que aprendi a jogar xadrez antes da alfabetização. Quanto isso não me facilitou para a aprendizagem escolar!


Fosse meu avô um músico, é muito provável que também eu fosse alguém de destaque na música. Talvez até um artista…


Mero devaneio. A bem-dizer, palmilhei a avenida que eu mesmo elegi, no intento de cumprir o que Deus de mim arquitetara.


Bem por isso, sou ao extremo realizado!


Gabriel Novis Neves

21-11-2023



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sexta-feira, 24 de novembro de 2023

COISA DO CORAÇÃO


Minha relação com a Congregação Salesiana é bem antiga, arraigada na alma. No período que medeia entre 1946 e 1950, fui aluno do ‘Colégio dos Padres’, em Cuiabá. Ostenta este nome oficial: Colégio Salesiano São Gonçalo.


Aí estudei não só para o exame de admissão. Fiz igualmente os quatro anos do antigo curso ginasial. Foi um tempo de descobertas raras. Mas sobretudo de realizações.


Com os salesianos, muito aprendi. Não bastassem as disciplinas próprias do currículo, pude adquirir o essencial de ética, religião, esportes e artes.


Todos os dias, antes do início das aulas, o padre conselheiro, ao empunhar pequena campainha de bronze, no pátio ao lado da Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, organizava os alunos por série. Todos em fila.


O Hino Nacional era cantado, sob a batuta do padre Pedro Cometti. A ‘ordem do dia’ era dada. Depois, assistíamos à Santa Missa no Santuário.  


Findo o ato religioso, sempre em fila e em total silêncio, dirigíamos às salas de aula.


As meninas estudavam no Colégio Coração de Jesus, das irmãs salesianas, que ficava na rua Comandante Costa. Conhecida, à época, como rua da Fé.


A Congregação Salesiana foi fundada por Dom Bosco em 18 de dezembro de 1859. O grande desejo dele, pequeno ainda, era ‘cuidar das crianças pobres’.


O oratório festivo tinha o intento de socializar os jovens, por meio do esporte e das artes. 


Focados na educação, os salesianos implantaram, em Mato Grosso, inúmeras obras sociais. É meritório o trabalho evangelizador deles, em meio às populações indígenas.


Minha única filha é ministra da Eucaristia, atuando, por incrível que pareça, na mesma igreja do Santuário de Maria Auxiliadora, que muito frequentei quando molecote.


Meus filhos — poderia ser diferente? — estudaram no salesiano. Todos se casaram neste Santuário. Netos e bisnetos, sequenciando o que comigo ocorreu, frequentam este espaço de escol, participando da catequese. 


A chegada dos salesianos ao Brasil se deu, precisamente, em Niterói. Corria 14 de julho de 1883. Está isso a justificar os festejos em comemoração dos 140 anos.                                                                                                                                   


Em Mato Grosso, Cuiabá, sua presença data de 16 de junho de 1894. No ano que está para abrir suas portas, os salesianos cuidarão de homenagear esse fato que tanto lhes diz.


Tendo nascido em Turim, na Itália, a Congregação de Dom Bosco só veio a pisar o solo mato-grossense trinta e cinco anos depois de sua fundação.


E pensar que Dom Bosco, o santo dos Jovens, já havia sonhado com uma grande metrópole no Centro-Oeste do Brasil!


É bem provável que o sonho do santo coincidisse com o local onde, mais tarde, viria a se instalar Brasília, a futura capital do Brasil.  


Talvez resida aí o motivo da forte presença da missão salesiana no Centro-Oeste, notadamente em nosso Estado.


Dom Bosco não conheceu os países do novo ‘continente’, sempre presente em seus sonhos. Mas se preocupou em destinar para cá seus filhos, que tanto fizeram em prol dos povos que aqui tinham fincado seus pés.


Tudo que for orquestrado para os 130 anos dos salesianos em Cuiabá, ficará sempre aquém, dada a grandeza do trabalho com que os abnegados filhos de Dom Bosco nos brindaram.


Volvo os olhos ao passado. E revejo — como fosse hoje —, no alto do portão de entrada, uma frase de Dom Bosco: ‘Educação é coisa do coração’.


Ficou-me para sempre gravada. O santo está a nos dizer: jamais pode haver educação sem carinho. Bem nisso, eu o sei, se assenta a razão do carisma salesiano.


Gabriel Novis Neves

16-11-2023



HISTÓRIA DA MISSÃO SALESIANA EM MATO GROSSO

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

DISCRIÇÃO À MODA DA CASA


Sempre fui muito discreto, tanto na minha vida pública quanto na particular. Jamais engrossei o cordão da ‘ostentação’, embora mil facilidades tivesse.


Esse meu modo de proceder talvez resida no temor de vir a ser incompreendido. 


Guardo um sem-número de cobranças absurdas de que fui alvo.


Lembro-me, certa vez, de um multiempresário de Mato Grosso. Sua fama corria fronteiras. Por nadar em dinheiro, conquistou boa parte da sociedade pela ‘boca’.


Na ocasião, para comemorar seu aniversário, ‘fechou’ o principal restaurante da cidade. Um luxo só!


No afã de esbaldar-se, trouxe cozinheiros, garçons, recepcionistas, vinhos, frutos do mar. As toalhas e talheres, que primor! As sobremesas, uma delícia! Veio tudo de uma capital do Sul do país.


0 conjunto musical, pra lá de badalado. Em suma, tudo às maravilhas.


A indumentária dele, nem se diga! Obra-prima de uma loja de roupas exclusivas. É lógico que isso se estendia à sua companheira.


Charutos cubanos, dos mais finos, eram oferecidos aos seletos convidados. Quanto às mulheres, fartou-as de brindes. Que ostentação!


À noite, deslumbramento total. Não havia visto nada igual. Mulheres elegantes desfilavam pelos salões, pavoneando seus ricos vestidos. Dirigentes dos poderes do Estado, todos de queixo caído. 


Dias após o evento, que marcou época, uma socialite que esteve na festa, se dirigiu a meu consultório.


Ao ingressar na sala, antes mesmo de dizer a causa de sua presença, cobrou-me o motivo da ausência no jantar do empresário.


O que acabo de esmiuçar, foi-me reportado por ela. Estonteada com o que viu, pontuou: Você não tem a mínima ideia do que perdeu!


Depois emendou: Tinha frutos do mar à beça. Tanto, que eu me esbaldei: enchi a barriga, empanturrando-me deles. Cada camarão dos graúdos, de dar água na boca!


No fritar dos ovos, quis porque quis saber a razão de não comparecer a essas festas. Verdade é que essa paciente, a quem acompanhei até que a aposentadoria me sorrisse, em tempo algum entendeu a forma discreta do meu jeito de ser. 


Doutra feita, espingardeou: Você poderia ter melhor aproveitado sua vida, mas não fez!


Os pretensos ‘amigos’ do empresário acabaram por se afastar dele, ainda que os ventos da fartura continuem a bafejá-lo. O orgulho imperial não mais o acaricia.


Minha paciente elegeu outro médico para dar-lhe apoio. Eu, no alto dos meus bons anos, mantenho remoçada minha discrição social: de casa só me afasto quando a necessidade extrema me impõe. 


No escrever temas que abarcam tópicos do meu cotidiano, cuido de emprestar a eles a mesma discrição que, vida afora, me tem distinguido.


Para não mais fatigar sua atenção, finalizo com este provérbio que, para mim, soa como um versículo bíblico: ‘boa romaria faz quem em sua casa fica em paz’. 

 

Pauto a minha ‘discrição’ pela dos meus saudosos pais. Prato à moda da casa.


Gabriel Novis Neves

7-11-2023


Fotografias do Cirio de Nazaré, em diversos anos











quarta-feira, 22 de novembro de 2023

QUAL SERÁ O MOTIVO?


Credito à idade avançada, época em que temos todo o tempo a nosso dispor, a razão do apego desmedido que devotamos à religião.


Cuiabá sempre foi uma cidade onde pairou um ar de profunda religiosidade. Não está isso a significar que deixamos de pecar nossos pecadinhos veniais…


Ainda hoje, quantas mulheres não praticam o aborto em casa! No meu tempo, da parte do homem, ter uma ‘companheira’ — o termo concubina não me cheira bem — era algo como carregar um troféu.


Não bastasse ser até chique, certos políticos havia que eram bem avaliados por seus eleitores por conta desse quesito. Pode?!


Os tempos são outros. Sim, o aborto medicamentoso é acompanhado por ginecologistas de erguido padrão. Já as pacientes, atendidas na rede privada, hospitalar ou não.


Com o advento dos motéis, favorecidos por programas da internet, as amantes, em muito, foram lançadas num fosso de esquecimento quase brutal. O cardápio se reveste de contornos outros.


A bem da verdade, a nossa cidade, dada a globalização dos costumes e a indústria da venda de corpos — quer femininos, quer masculinos —, mudou muito seu perfil moral.


Pela ‘lei dos homens’, tudo se permite nos dias que correm. Daí por que me causa até certa estranheza encontrar tantos — já curvados ao peso dos anos — tementes a Deus.


A morte, esta continua indecifrável para a maioria das pessoas. Por curioso que possa parecer, quando chegam a uma certa idade, aí é que se agiganta a sua fé.


Por algum motivo será! A verdade é que, dum nada, eles alteram seus hábitos e voltam a se apegar aos princípios cristãos. Intento é vassourar seu caminho rumo à salvação.


A ninguém é dado ignorar: nascemos e, a cada dia que avançamos, estamos mais próximos do nosso encontro com o Criador.


Os espíritas acreditam na reencarnação. Os católicos, de sua vez, põem a crença na ressureição da carne. No que toca aos agnósticos, argumentam que, após a morte, tudo finda.


É o caso de perguntarmos ao nosso interior: e a alma, tão falada, ela de fato existe?


Ao médico, isto é quase de lei: cabe a ele agasalhar um sentido arraigado de fé. Ao investigar a anatomia, fisiologia, cardiologia, neurologia e patologia geral, o estudo sobre a alma fica escanteado. Tenho comigo que ela pode estar alojada no cérebro ou no coração.


Os médicos que se voltaram ao estudo profundo da Medicina, exercendo-a por anos a fio, não escondem que já presenciaram milagres. Disso, eu mesmo sou testemunha. Deus atua nos casos em que o homem se vê incapacitado de agir.


Não me acanha dizer: a quem tem fé, Deus não passa despercebido.


A carruagem do tempo não para e, maturidade a caminho, há dos que intercedemos por novo milagre: que o Pai não se esqueça de ‘espichar’, pouco que seja, a estrada dos nossos dias.


Certo é que jamais estamos preparados para morrer. Sempre alegamos que ainda há algo que precisamos fazer, não importa quão andados no tempo estejamos. 


Que o Senhor ouça nossa voz!


Gabriel Novis Neves

14-11-2023




A ELETROLA DO BAR DO BUGRE


Como não me lembrar do bar do meu pai! Entrou-me pela cachola e aí ficou: havia um imenso móvel de madeira lá no fundo do salão.


Esse móvel bonito tinha os quatro pés de madeira, algo próximo de meio metro de altura. Na parte de baixo ficava o rádio, que operava em ondas curtas.


Registro que era difícil ouvir as emissoras de rádio, seja do Rio de Janeiro, seja de São Paulo.


Ainda me ocorre que havia intensa interferência. Somada ao ‘chiado’ constante, a audição albergava péssima qualidade.


A Rádio ‘A Voz d’Oeste’, de Cuiabá, foi fundada pelo professor Jerci Jacob. Quando começou a funcionar, o bar já ostentava vinte anos de portas abertas. 


Para alegria dos seus fregueses, papai adquiriu uma grande eletrola. Era fechada por uma tampa de madeira, presa por dobradiças.


Desde logo, passou a desfilar os sucessos nacionais, verdadeiros ‘bolachões’ em vinil, com 78 rotações por minuto.


Muito criança ainda, foi-me dado o ensejo de entrar em contato com a música popular brasileira. Isso me fascinou.


Meu pai, solteiro convicto, conheceu minha mãe no já distante 1933. Tomava o cuidado de colocar os discos na eletrola, com as canções em volume máximo…


Até quem estivesse sentado nos bancos do ‘Jardim’ — da aprazível Praça Alencastro —, mesmo de costas para a rua de Cima, a tudo ouvia.


Meu pai, na porta do bar, apreciava! Impossível esconder a alegria que guardava em seu interior!


Uma ocasião houve em que ele notou o interesse que um sucesso gravado pela cantora Carmen Miranda despertou em uma moça no banco do ‘Jardim’. Ela se fazia acompanhar de algumas amigas.


Ao fitá-la de relance, não lhe escapou o fato de que era bem mais nova que ele.


Contou-me que se tratava de uma marcha-canção — ‘Pra Você Gostar de Mim’ —, mais tarde conhecida por ‘Taí’.


Recorde de vendas, a canção fora escrita por Joubert de Carvalho, em 1930. Os arranjos musicais, estes couberam ao maestro Pixinguinha.


Quando não havia retreta no ‘Jardim’, o som musical vibrava pelas alturas da eletrola do já prestigiado dono do bar do Bugre. Bar que ficava na rua de Cima, esquina com a Presidente Vargas. Ponto mais do que privilegiado para o comércio daqueles tempos, que apenas tateava.


Mais importante do que qualquer outra coisa, foi daí que se desencadeou o namoro, a se consumar em casamento, da minha mãe, Irene Novis, com Olyntho Neves. Isso já no ano seguinte, em 1934.


Já meninote, espadaúdo, cabia a mim tomar conta da eletrola do bar. Num espaço de três em três minutos, virava e desvirava o disco de vinil. E saber que dispunha de uma única música de cada lado!


O ‘cardápio’ variadíssimo arregimentava marchinhas carnavalescas de sucesso. Quisera ter contado o número de vezes tantas, que coloquei o pesado braço da eletrola, com agulha, na ponta do disco circulando, para ouvir o magistral Chico Alves.


Um dos seus grandes sucessos carnavalescos, imaginem se não foi ‘Bota o retrato do velho, outra vez’! Registro: foi composto por Haroldo Lobo e Marino Pinto.


Por ocasião da Copa do Mundo, em pleno Maracanã — corria julho de 1950 —, meu pai, por não ser adepto de futebol, premido pela economia, acabou por mandar esse ‘trambolho’ do seu bar para nossa casa.


Foi assim que ouvi a transmissão dos jogos dessa Copa. Por já ter caído no esquecimento, recordo ter sido a Copa em que o goleiro Barbosa falhou. Em tempo: era jogador do Vasco. 


Para não mais atiçar fogo em algo que ficou no passado, fiquemos só com isto: o Uruguai foi campeão!


A despeito de lembranças amarrotadas de tristezas, daria tudo para encontrar de novo a eletrola. Tivesse essa peça de museu na sala do meu apartamento, nada o decoraria tanto!


Dado o seu significado, esse belíssimo ‘trambolho’ — para mim uma arca inigualável de reminiscências — retrata um tempo que não volta mais. 


Ao trazê-lo à tona, ponho, lado a lado comigo, a figura augusta de meus inesquecíveis pais. Eu era feliz, e nem de longe me dava conta disso!


Gabriel Novis Neves

18-11-2023