quarta-feira, 22 de novembro de 2023

A ELETROLA DO BAR DO BUGRE


Como não me lembrar do bar do meu pai! Entrou-me pela cachola e aí ficou: havia um imenso móvel de madeira lá no fundo do salão.


Esse móvel bonito tinha os quatro pés de madeira, algo próximo de meio metro de altura. Na parte de baixo ficava o rádio, que operava em ondas curtas.


Registro que era difícil ouvir as emissoras de rádio, seja do Rio de Janeiro, seja de São Paulo.


Ainda me ocorre que havia intensa interferência. Somada ao ‘chiado’ constante, a audição albergava péssima qualidade.


A Rádio ‘A Voz d’Oeste’, de Cuiabá, foi fundada pelo professor Jerci Jacob. Quando começou a funcionar, o bar já ostentava vinte anos de portas abertas. 


Para alegria dos seus fregueses, papai adquiriu uma grande eletrola. Era fechada por uma tampa de madeira, presa por dobradiças.


Desde logo, passou a desfilar os sucessos nacionais, verdadeiros ‘bolachões’ em vinil, com 78 rotações por minuto.


Muito criança ainda, foi-me dado o ensejo de entrar em contato com a música popular brasileira. Isso me fascinou.


Meu pai, solteiro convicto, conheceu minha mãe no já distante 1933. Tomava o cuidado de colocar os discos na eletrola, com as canções em volume máximo…


Até quem estivesse sentado nos bancos do ‘Jardim’ — da aprazível Praça Alencastro —, mesmo de costas para a rua de Cima, a tudo ouvia.


Meu pai, na porta do bar, apreciava! Impossível esconder a alegria que guardava em seu interior!


Uma ocasião houve em que ele notou o interesse que um sucesso gravado pela cantora Carmen Miranda despertou em uma moça no banco do ‘Jardim’. Ela se fazia acompanhar de algumas amigas.


Ao fitá-la de relance, não lhe escapou o fato de que era bem mais nova que ele.


Contou-me que se tratava de uma marcha-canção — ‘Pra Você Gostar de Mim’ —, mais tarde conhecida por ‘Taí’.


Recorde de vendas, a canção fora escrita por Joubert de Carvalho, em 1930. Os arranjos musicais, estes couberam ao maestro Pixinguinha.


Quando não havia retreta no ‘Jardim’, o som musical vibrava pelas alturas da eletrola do já prestigiado dono do bar do Bugre. Bar que ficava na rua de Cima, esquina com a Presidente Vargas. Ponto mais do que privilegiado para o comércio daqueles tempos, que apenas tateava.


Mais importante do que qualquer outra coisa, foi daí que se desencadeou o namoro, a se consumar em casamento, da minha mãe, Irene Novis, com Olyntho Neves. Isso já no ano seguinte, em 1934.


Já meninote, espadaúdo, cabia a mim tomar conta da eletrola do bar. Num espaço de três em três minutos, virava e desvirava o disco de vinil. E saber que dispunha de uma única música de cada lado!


O ‘cardápio’ variadíssimo arregimentava marchinhas carnavalescas de sucesso. Quisera ter contado o número de vezes tantas, que coloquei o pesado braço da eletrola, com agulha, na ponta do disco circulando, para ouvir o magistral Chico Alves.


Um dos seus grandes sucessos carnavalescos, imaginem se não foi ‘Bota o retrato do velho, outra vez’! Registro: foi composto por Haroldo Lobo e Marino Pinto.


Por ocasião da Copa do Mundo, em pleno Maracanã — corria julho de 1950 —, meu pai, por não ser adepto de futebol, premido pela economia, acabou por mandar esse ‘trambolho’ do seu bar para nossa casa.


Foi assim que ouvi a transmissão dos jogos dessa Copa. Por já ter caído no esquecimento, recordo ter sido a Copa em que o goleiro Barbosa falhou. Em tempo: era jogador do Vasco. 


Para não mais atiçar fogo em algo que ficou no passado, fiquemos só com isto: o Uruguai foi campeão!


A despeito de lembranças amarrotadas de tristezas, daria tudo para encontrar de novo a eletrola. Tivesse essa peça de museu na sala do meu apartamento, nada o decoraria tanto!


Dado o seu significado, esse belíssimo ‘trambolho’ — para mim uma arca inigualável de reminiscências — retrata um tempo que não volta mais. 


Ao trazê-lo à tona, ponho, lado a lado comigo, a figura augusta de meus inesquecíveis pais. Eu era feliz, e nem de longe me dava conta disso!


Gabriel Novis Neves

18-11-2023





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