quarta-feira, 30 de abril de 2025

VENTO SUL


Cuiabá sempre foi uma cidade quente durante todo o ano, com um curto período de chuvas.

 

Estamos nos últimos dias de abril e a chuva se faz presente com seus benefícios.

 

Os dias têm sido de temperaturas amenas, acompanhados por um ventinho agradável denominado pelos antigos de vento sul.

 

Lembro-me muito do meu pai, com seu gorro de lã, esfregando as mãos, sentado na cadeira de balanço na calçada de nossa casa, dizendo, com uma alegria inesquecível, o quão gostoso era o vento sul.

 

Era uma corrente de ar frio, vinda do sul do Estado de Mato Grosso, de São Paulo e do Paraná.

 

Cresci ouvindo essa expressão, e em dias como hoje, a lembrança do meu pai me invade — e que saudades sinto dele!

 

Gostaria de saber, não por vaidade, como os meus filhos se lembrarão de mim.

 

Do homem caseiro?

 

Do médico generalista do interior?

 

Do professor universitário, reitor, secretário de Estado?

 

Do marido de uma mulher que mandava em casa, mas com quem vivia em plena harmonia?

 

Do homem pobre que, embora sem dinheiro, tinha credibilidade?

 

Meu pai, homem humilde e de pouca escolaridade, marcou-me intensamente com suas simples e sábias observações.

 

Quantos ensinamentos ele me transmitiu, de maneira tão fácil quanto profunda!

 

Foi um defensor intransigente do meu retorno à cidade natal para exercer a Medicina.

 

A figura do médico, pendurado no balaústre do bonde lotado, de terno e gravata, com punhos e colarinho da camisa branca encardidos pela poeira — era assim que ele me imaginava indo ao hospital, no Rio de Janeiro.

 

Esse quadro forte me fez retornar o mais rápido possível, deixando para trás dois excelentes empregos públicos concursados.

 

Hoje sei que ele tinha razão, diante da carreira que aqui construí.

 

Fica a curiosidade: como meus filhos me recordarão?

 

Eles não pertencem à geração do vento sul, mas da Inteligência Artificial.

 

Como se lembrarão de mim?

 

Gabriel Novis Neves

28-04-2025




terça-feira, 29 de abril de 2025

ESCREVER DEITADO


Houve uma época em que eu escrevia e estudava deitado na cama.

 

Curioso é que eu gostava dessa posição.

 

Aos poucos fui deixando esse hábito.

 

Assistindo a um jogo de futebol pela televisão do quarto, lembrei-me dessa antiga prática e resolvi unir o útil ao agradável, escrevendo esta crônica.

 

Impossível realizar bem as duas funções.

 

Dei sorte ao meu time, que não vencia uma partida há muito tempo.

 

Supersticioso, decidi escrever sempre uma crônica, enquanto assisto a um jogo do meu time pela TV.

 

Minha sorte é que, com a tecnologia, a televisão repete os lances mais importantes.

 

Na verdade, escrevo, ouvindo o jogo. Não assisto ao gol — vejo apenas suas reprises.

 

Com o advento dos celulares, tornou-se frequente o uso dos fones de ouvido. Muitos escrevem ouvindo músicas, seja no transporte, caminhando ou na espera por um atendimento.

 

Conheço uma escritora, autora de vários livros impressos, que realiza todo o seu trabalho na cama. Transforma-a em uma imensa mesa de trabalho. Acho ser um caso único.

 

Escrever versos deitado ainda é compreensível.

 

Hoje, quase todos escrevem no computador, bem mais prático.

 

Lápis e caderno para rascunhos já não se usam mais — e nem se fala em borracha.

 

A máquina que veio para nos ajudar, caminha a passos largos para substituir muitas funções humanas.

 

A Inteligência Artificial já substitui a escrita, sendo muita utilizada, especialmente em escritórios.

 

A falta do que fazer nos leva por caminhos esquecidos.

 

O domingo à tarde é um grande espaço à disposição da criatividade, que nunca se esgota.

 

Os pioneiros jamais acreditariam que chegaríamos onde estamos.

 

Música, imagem e escrita se entrelaçam, qualquer que seja a posição do indivíduo.

 

Mesa de bar, plantão de hospital, deitado na cama, olhos na tela da TV, ouvidos no rádio.

 

Esse é o nosso momento atual: deitado na cama, escrevendo no iPhone, ouvindo a TV.

 

Gabriel Novis Neves

27-04-2025




segunda-feira, 28 de abril de 2025

EXEMPLO


Eu ainda era criança mas já sabia ler e escrever. No dia do meu aniversário fui visitar meu avô, na rua Voluntários da Pátria, entre a rua de Cima e a do Meio.

 

Naquele tempo, era comum manter diários em grossos cadernos de contabilidade, de capa dura e preta. Os acontecimentos mais importantes eram registrados ali e, ao fim do ano, arquivados no imenso armário do escritório.

 

Tudo o que envolvia meu avô ficava anotado.

 

Nesse aniversário, ele levou-me ao escritório e me perguntou, se eu me lembrava do presente que recebera dele quando completei meu primeiro ano de vida. Claro que eu não fazia ideia.

 

Subiu então numa pequena escada, identificou o caderno pelo ano —1936 — e o colocou sobre a mesa.

 

Encontrados a data e o dia, leu em voz alta:

 

— 6 de julho de 1936: aniversário de um ano do meu netinho Gabriel, filho de Irene e Bugre. À tarde, levarei o presente: uma escovinha de dentes.

 

Foi assim que descobri qual fora meu primeiro presente de aniversário.

 

Tenho filhos, netos e bisnetos, mas, por falta de registros, não sei que presentes lhes dei nesses dias especiais.

 

Minha bisneta caçula acaba de completar um ano.

 

Soube do presente que lhe ofereci por meio de uma vídeochamada: minha filha, agora avó, vestira a pequena com um delicado vestido cor-de-rosa, laço combinando, e me chamou, a menina no colo, para que eu participasse do momento.

 

Assim ficou registrada essa data —oitenta e nove anos depois da minha!

 

O presente que recebi de meu avô carrega a simbologia do cuidado com a saúde bucal; o de minha bisneta traz o selo da tecnologia do seu tempo.

 

Eis as metamorfoses do mundo, ontem e hoje.

 

Que ela seja muito feliz, mais do que eu —são os meus votos.

 

Gabriel Novis Neves

25-04-2023




domingo, 27 de abril de 2025

BALANCETE DO PRIMEIRO QUADRIMESTRE


Embora pareça que não tenhamos produzido nada, muita coisa fizemos neste primeiro quadrimestre do ano.

 

A travessamos o Carnaval com firmeza e a Semana Santa, com a agonia e a morte do Papa.

 

Tivemos muitas perdas — de amigos, parentes, pessoas queridas e até desconhecidas — que deixaram um vazio em nossas vidas.

 

A contadora já entregou minha declaração de rendimentos à Receita Federal, que, felizmente, não caiu na malha fina.

 

Consegui desfazer-me de um imóvel no Rio de Janeiro que já não me interessava — nem a meus filhos —, localizado num prédio centenário, sem garagem.

 

Participei de vários aniversários em família e aguardo com ansiedade o meu próximo ‘enta’, dentro de dois meses.

 

De todos os ‘enta’ que já vivi, o dos ‘oitenta’ foi o mais difícil de ultrapassar. Ainda tenho dois longos meses até mudar de casa.

 

Só depois que estiver instalado na nova morada dos noventa é que me tranquilizarei.

 

Muitos chegam à soleira dos noventa e por ali ficam.

 

Na minha nova casa sei que cada dia será lucro — e o que eu tinha de ser feito, já o foi.

 

Continuarei cuidando da minha saúde preventiva, com o mesmo zelo de sempre: infusões mensais de imunoglobulina; exames cardiológicos, oftalmológicos e odontológicos duas vezes por ano; dieta equilibrada e sessões de fisioterapia duas vezes por semana.

 

O que me sobra é tempo para administrar, junto às cuidadoras, o cotidiano da casa.

 

Aguardo com avidez a visita dos meus filhos, netos e bisnetos, sempre aos sábados.

 

É quando fico sabendo das novidades do mundo em que estão inseridos.

 

A caçulinha completará um ano de idade e, neste sábado, certamente estará cheia de novidades para contar ao biso.

 

Ela ainda estranha rostos desconhecidos, chorando ao encontrá-los.

 

Sou um apaixonado convicto por esses pequerruchos que só me dão motivos para ser feliz.

 

Gabriel Novis Neves

24-05-2025




sábado, 26 de abril de 2025

CASA DOS AVÓS


Como as crianças amam a casa dos avós! O brilho em seus olhinhos revela felicidade. Passar o dia na casa dos avós — almoçar, brincar, tomar banho, jantar e se possível dormir —completa o cardápio da alegria.

 

Criança sempre gostou de dormir na casa dos coleguinhas e voltar triunfante no dia seguinte para a sua própria casa.

 

Na rua de Baixo, onde nasci e morei até os dez anos de idade, guardo até hoje a satisfação de ter dormido na casa da dona Rosa Mutran, com Rosa, Leila e Janete.

 

Acordava com ares de vencedor e, feliz voltava para casa. Tudo que era servido no café da manhã tinha um gosto especial — bem diferente do meu tradicional ‘quebra torto’.

 

O inverso também acontecia.

 

Crescemos, mudamos de endereço e esses elos de amizade foram se esvaindo. Ainda assim, mantenho contato com algumas colegas de infância.

 

Já passei da fase de avô em que minhas netas eram apaixonadas pela avó.

 

Quando a minha primeira neta nasceu, o puerpério foi na casa da avó — embora o avô fosse médico e parteiro.

 

Morávamos em endereços distintos, mas, todas as sextas-feiras, ao entardecer, minha neta vinha passar o final da semana conosco, retornando para casa no domingo à noite.

 

Assim foram celebrados seus primeiros aniversários, sempre na casa dos avós, no Porto.

 

Hoje, a casa dos avós, continua despertando fascínio nos meus bisnetos.

 

Em março, minha bisneta mais velha completou 8 anos. Embora seus pais tenham uma excelente casa, ela fez questão de receber os amiguinhos na casa dos avós.

 

A bisneta caçula também celebrará o seu primeiro ano lá.

 

Para as crianças é uma felicidade esse aconchego. Para os avós, um verdadeiro motivo de vida.

 

As festas de Natal e Ano-Novo marcaram a inauguração da nova casa da minha filha. Daqui em diante, os grandes eventos serão realizados por lá.

 

Estive reparando no último almoço aqui em casa: com exceção da minha neta que vive em Portugal — ausente com marido e o filho — a mesa do almoço ‘encolheu’. Já não cabe mais ninguém.

 

Lembrando que os bisnetos almoçam com as suas babás, na mesa de seis lugares, na copa da cozinha.

 

Poderíamos usar o salão de festas da cobertura, mas meus joelhos não me permitem subir a escada.

 

Por enquanto, vamos mantendo a tradição.

 

Gabriel Novis Neves

20-04-2025




sexta-feira, 25 de abril de 2025

TODOS OS FERIADOS DE NOSSOS DIAS

 

Os feriados, esses respiros no calendário, sempre despertaram sentimentos variados nas pessoas. Para alguns são sinônimos de descanso merecido. Para outros, apenas uma pausa no corre-corre da rotina. Há ainda os que nem percebem que o dia é feriado — trabalhadores da saúde, segurança, do campo, do transporte, que seguem seu ofício como se nada houvesse. 

 

Quando eu era menino, feriado era quase um acontecimento solene. A cidade mudava de ritmo. As escolas fechavam os portões e as ruas se enchiam de crianças, pipas no céu e bicicletas no asfalto. Alguns feriados eram comemorados com desfiles e bandeiras — como o de Sete de Setembro. Outros, com silêncio e reverência — como a Sexta-feira Santa. 

 

Com o tempo, os feriados foram mudando de cor e de função. Tornaram-se mais oportunidades para viagens, festas, promoções comerciais, emendas e prolongamentos. A alma cívica de certas datas se dissolveu no apelo turístico. Hoje em dia muita gente descobre o significado do feriado só ao procurar no Google. “Por que é feriado hoje? ”, perguntam os curiosos, entre um clique e outro. 

 

Mas, mesmo assim, continuo vendo neles algo valioso. Os feriados nos lembram que a vida precisa de pausa. Que não somos máquinas. Que o trabalho é necessário, mas o descanso também é sagrado. Seja para rezar, dormir até mais tarde, visitar a família, ou simplesmente fazer nada. 

 

Há algo bonito em ver a cidade mais quieta, os carros em menor número, o comércio com as portas entreabertas. É como se o tempo se esticasse um pouco mais, nos permitindo observar o que normalmente passa correndo. 

 

Os feriados não são apenas folgas — são convites ao recolhimento, à contemplação, ou à simples arte de não fazer nada. E isso, no nosso mundo tão apressado, é um presente raro. 

 

E se o feriado cair numa segunda ou sexta, então… que sorte a nossa.

 

Gabriel Novis Neves

20-04-2025



quinta-feira, 24 de abril de 2025

UM PAPA EM CUIABÁ


Com os feriados da Semana Santa, de Tiradentes e a morte do Papa Francisco, talvez tenhamos a semana de trabalho mais curta do ano.

 

Não foi decretado feriado nacional pela morte de Francisco, mas, como sempre acontece no Brasil, estabeleceu-se ponto facultativo — e, na prática, a nação parou.

 

O impacto de sua partida para o Reino de Deus mobilizou de tal maneira a população, que, perplexa, não desgruda da televisão, acompanhando os funerais.

 

Escrevo numa manhã de terça-feira, totalmente diferente das outras da semana.

 

O mundo anda tão carentes de líderes — e o nosso maior partiu, como sempre, antes da hora.

 

Chefes de Estado se dirigem ao Vaticano para se despedirem do Papa.

 

A primeira vez que vi o Papa não foi em Roma, mas na esquina da rua Major Gama com a avenida 15 de Novembro.

 

Voltei para casa com minha mulher, filhos e funcionárias, sem entender bem o que havia presenciado.

 

Até então, para ver o Papa, era preciso ir a Roma!

 

Foi um dos muitos mitos que vi desabar no século XX.

 

O Papa comandava o mundo a partir do Vaticano — uma nação dentro de Roma, na Itália.

 

João Paulo II esteve em Cuiabá em três oportunidades: 1980, 1991 e 1997.

 

A segunda visita ao pais foi especial para os mato-grossenses, pois Cuiabá estava entre as dez cidades brasileiras em seu roteiro.

 

Em 1991 recebeu o título de cidadão cuiabano.

 

Passados mais de quarenta anos desde aquele encontro nas ruas de Cuiabá, ainda sinto a mesma emoção daquela manhã calorenta.

 

Não podia acreditar no que via. Católico, apostólico e romano, sempre vi o Papa como uma figura celestial, que vivia no reino dos céus.

 

Vê-lo em Cuiabá parecia impossível — o mesmo que surgia na janela de seus aposentos em Roma para abençoar os fiéis.

 

Sua morte nos lembra: ele era humano.

 

Gabriel Novis Neves

22-04-2025







quarta-feira, 23 de abril de 2025

O PAPA FRANCISCO


Quando o cardeal Jorge Mario Bergoglio surgiu na sacada da Basílica de São Pedro naquela tarde de março de 2013, poucos sabiam que estariam diante de um pontífice destinado a romper tradições seculares com gestos simples e palavras profundas.


Primeiro Papa jesuíta, primeiro das Américas, primeiro Francisco. O nome já dizia muito: inspiração em São Francisco de Assis, símbolo maior da humildade, da paz e do amor pelos pobres.


Desde então o mundo passou a ouvir mais um líder, que não apenas falava, mas vivia o que pregava.


Francisco trocou o trono dourado por uma cadeira comum. Recusou o palácio e foi morar numa casa de hóspedes.


Insistia em andar de carro simples e desafiava as vaidades que historicamente rondam o Vaticano.


Em vez de julgar, acolhia. Em vez de condenar, compreendia. E em tudo o que fazia, parecia nos lembrar: “A Igreja deve ser hospital de campanha, não tribunal”.


Era amado por muitos e criticado por outros . Talvez por ser, como os grandes homens, inquieto. Falava de justiça social, do cuidado com o planeta, da inclusão dos mais frágeis.


Aproximava-se dos que vivem à margem: refugiados, presos, homossexuais, indígenas.


Ele os chamava de irmãos, e os abraçava sem cerimônias.


Francisco foi o Papa que pedia orações ao povo antes de abençoá-lo. Que escrevia encíclicas, como “Laudato Si’”, sobre o meio ambiente, e “Fratelli Tutti”, sobre a fraternidade universal.


Foi também aquele que, mesmo enfrentando dores físicas e resistências internas, seguia firme, com o olhar sereno de quem acreditava na bondade humana.


Neste tempo tão carente de líderes verdadeiros, sua figura nos consolava. Não pela autoridade que carrega, mas pela humanidade que transbordava.


Francisco não era perfeito, e talvez fosse aí que morava sua grandeza: um pastor com cheiro de ovelha, que caminhava conosco, semeando esperança.


Gabriel Novis Neves

21-04-2025




DEMORAS FELIZES


Aprendi ainda criança a enfrentar filas. Filas para entrar na escola — do primário, do ginásio, do científico. E tudo era demorado.

 

Na faculdade de Medicina enfrentei filas para ser servido no restaurante universitário durante os seis anos do curso, e também no bonde, meu meio de transporte.

 

Foi assim que comecei a admirar o encanto da espera.

 

Quando me recordo dessa época tenho a impressão de estar sonhando.

 

A tecnologia acelerou tudo, e hoje já não espero mais nada.

 

Mas, naquela espera, quantas demoras foram felizes! E quantas vezes fui conduzido a um mundo quase irreal !

 

Amizades surgiram, amores brotavam, fazendo-me sentir o encanto da espera.

 

A mesma escola, o mesmo bonde o mesmo restaurante... a mesma espera pelo despertar de sentimentos tão nobres.

 

A espera por um telefonema fixo da recepção da maternidade — traduzido em instantes de pura felicidade.

 

A tecnologia assassinou as distâncias. E nos roubou o encanto da espera que existia nos meus tempos de criança.

 

Fico pensando que as crianças de hoje têm pressa — e talvez nem saibam o que é o encanto de esperar.

 

Tudo é tão rápido, e essa velocidade embruteceu as relações humanas.

 

Sinto saudades dos domingos preguiçosos, em que as horas demoravam a passar, com a certeza de que depois viria a segunda-feira — dia da preguiça com demoras nem sempre felizes.

 

O fim de semana era sempre aguardado, e começava na sexta-feira.

 

Os longos noivados, cheios de espera, quase sempre terminavam em finais felizes. E o casamento... uma demora feliz que durava a vida toda.

 

Ninguém se casa por um fiapo de tempo — isso seria a derrota da espera, mesmo que longa, mas cheia de sentido.

 

Nada na vida é duradouro. Nem mesmo a própria vida.

 

Na verdade, nem sempre a demora da espera nos tornará mais felizes.

 

Mas como eu gostaria de ter uma longa vida com demoras felizes!

 

Quanto mais o tempo demorar a passar, mais felizes serão as nossas esperas. A espera tem seus encantos que a tecnologia nos roubou.

 

O melhor é caminhar pela longa estrada da vida... com moderação.

 

Gabriel Novis Neves

01-04-2025




segunda-feira, 21 de abril de 2025

FERIADÃO


Entrarei em um feriadão, desta vez, para comemorar a Semana Santa. Serão cinco dias corridos, da Quarta-feira das Trevas ao Domingo da Páscoa.

 

Muitos, porém, anteciparam o descanso e já estão nas praias brasileiras — ou naquela Copacabana estrangeira chamada Miami — mesmo correndo o risco de serem deportados pelo governo americano.

 

O brasileiro é um povo difícil de entender.

 

Mesmo com a crise da picanha, nossos aeroportos vivem lotados de passageiros voando para os quatro cantos do mundo.

 

O Brasil é um dos países mais ricos do mundo e, paradoxalmente, um dos mais pobres no dia a dia. Vulnerável, desigual, contraditório.

 

Há um mês, meus filhos, netos e irmãos estão perambulando pelas praias nordestinas e por cidades turísticas internacionais.

 

Casamentos, em boa parte, são realizados em destinos litorâneos, quando não no exterior.

 

É difícil para um idoso entender a sociedade atual.

 

Os valores são tão diferentes que o melhor a fazer é fingir que se entende tudo o que acontece nos dias de hoje!

 

Para confundir ainda mais a minha cabeça, leio que o caviar está mais barato que pescoço de galinha...

 

Depois que o presidente dos Estados Unidos instituiu o ‘tarifaço’ na economia mundial, tudo virou uma barata tonta.

 

Quem tinha, já não tem. Quem não tinha, agora tem.

 

Terei esses dias do feriadão para pensar no meu próprio futuro.

 

Não me atrevo a imaginar o futuro dos meus netos e bisnetos, esses, perdidos em alguma linha do horizonte.

 

Hoje, acordei preocupado.

 

Por pura incompetência deixei de resolver um problema tecnológico com meu email no servidor Terra.

 

O sistema não liberava minha caixa de entrada, e eu me vi impossibilitando de trabalhar.

 

Graças aos conhecimentos da enfermeira plantonista, estou escrevendo novamente.

 

Sou sempre socorrido por ela e pelo fisioterapeuta para resolver questões com a internet e o servidor.

 

O paisagista concluiu a manutenção do jardim da cobertura.

 

Cobrou o equivalente a oito consultas médicas do meu plano de saúde.

 

Vou almoçar.

 

Gabriel Novis Neves

16-04-2025





domingo, 20 de abril de 2025

DEPOIS DO FERIADÃO


Já na segunda-feira após a Páscoa, nos preparamos para mais um feriado nacional: o de Tiradentes.

 

Antigamente, celebrávamos também o feriado do Descobrimento do Brasil, em 22 de abril de 1500, por Pedro Álvares Cabral.

 

Essa data deixou de ser feriado em 1930, por decisão de Getúlio Vargas, mas ainda é lembrada pelos mais antigos.

 

Dez dias depois, chega o feriado internacional do Dia do Trabalho — 1º de maio.

 

Algumas categorias não desfrutam desses dias de descanso. São os servidores de áreas essenciais: saúde, segurança pública, transportes coletivos e trabalhadores do agronegócio.

 

Por outro lado, há quem trabalhe ainda mais nesses dias: o pessoal dos restaurantes, principalmente os especializados em peixes e frutos do mar.

 

A verdade é que temos dois novos feriados pela frente, com possibilidade de emenda no Dia do Trabalho, que este ano cairá numa quinta-feira.

 

Nunca entendi como a população de baixa renda consegue viajar por turismo em todos os feriados prolongados.

 

As funcionárias da minha casa, por exemplo, sempre aproveitam essas datas para conhecer novos lugares do Brasil.

 

O próximo destino de um grupo delas é Natal, no Rio Grande do Norte.

 

Quando eu viajava, tudo era caro. Acabava ficando por aqui mesmo, hospedado em uma chácara de parente às margens do rio Cuiabá.

 

Na maioria das vezes passava os dias em casa com as crianças.

 

O lazer é parte importante da saúde e está previsto na legislação trabalhista.

 

O que não se justifica é o calendário indulgente dos Poderes Superiores de Brasília.

 

Criaram a semana de apenas três dias úteis, prática logo copiada pelos Estados e Municípios, num vergonhoso efeito cascata.

 

Ainda assim, o Brasil avança e figura entre as vinte maiores economias do mundo.

 

Se não fossem tantas perdas internacionais — como dizia Brizola —, este país seria outro: desenvolvido e com justiça social.

 

Os feriadões nunca me prejudicaram. Como profissional liberal, em uma carreira essencial, sempre trabalhei nessas datas.

 

Gabriel Novis Neves

18-04-2025




sábado, 19 de abril de 2025

DOMINGO PASCAL


Acordei cedo neste Domingo de Páscoa. Silêncio. Um silêncio diferente do da Sexta-feira Santa. É um silêncio de renascimento.

 

Nos tempos antigos, a manhã de Páscoa era anunciada pelas badaladas dos sinos da Catedral.

 

As famílias se reuniam para a missa solene, onde tudo exalava perfume de esperança.

 

As moças vestiam seus melhores trajes, e as crianças, de olhos brilhantes, aguardavam os ovos de chocolate com a mesma ansiedade com que os adultos esperavam a bênção do padre.

 

A mesa do almoço era farta, não apenas de comida, mas de afeto. 

 

A Semana Santa se encerrava com abraços demorados e promessas de recomeço. 

 

Na infância a Páscoa era doce, mesmo sem muitos doces. 

 

Bastava um ovo simples, embrulhado em papel colorido para nos fazer felizes. 

 

E o sentido da ressurreição era forte, presente em cada gesto de partilha, em cada olhar de perdão.

 

Hoje, o comércio fala mais alto que os sinos. 

 

A fé silenciou um pouco, sufocada por vitrines e distrações digitais. 

 

Mas ainda há quem compreenda o verdadeiro sentido da Páscoa — o milagre da vida que recomeça. 

 

A Ressurreição de Cristo é o maior símbolo de esperança para quem já sofreu perdas, como eu. 

 

A cada Páscoa sinto que algo em mim renasce — uma lembrança boa, uma oração esquecida, um gesto de gratidão. 

 

A Páscoa de hoje não tem o mesmo alvoroço de antes. Mas ainda guarda o essencial: o amor que resiste ao tempo e a certeza de que a vida, mesmo machucada, pode florescer de novo. 

 

Gabriel Novis Neves

14-04-2025




sexta-feira, 18 de abril de 2025

SÁBADO DE ALELUIA


O Sábado de Aleluia sempre foi para mim um dia de expectativa contida.

 

Após o silêncio sombrio da Sexta-feira Santa, as manhãs de sábado pareciam suspensas no tempo. A cidade seguia em voz baixa. As igrejas ainda mantinham os sinos calados, e a programação religiosa esperava pela Vigília Pascal.

 

Na minha infância no Centro Histórico de Cuiabá, esse dia era marcado por dois rituais: a limpeza da casa e a preparação para a festa da Ressurreição.

 

Minha mãe, com o avental rendado e os cabelos presos num coque, varria cada canto, trocava os panos da cozinha, preparava bolos e reservava um pedaço do melhor assado para o almoço do domingo.

 

Nós, crianças, vivíamos outro tipo de ansiedade: a esperada “malhação do Judas”.

 

Bonecos de pano, recheados de palha e velhos trapos, representavam o traidor.

 

Enforcavam-no em árvores, postes ou nos portões de vizinhos mais animados.

 

Depois, vinham os gritos, os paus, os foguetes e, por fim, o alívio coletivo. Judas estava castigado. O bem vencera o mal — mesmo que simbolicamente.

 

Era uma explosão de alegria após dias de silêncio e recolhimento. E, de certo modo, anunciava a festa que viria com o domingo.

 

Hoje, esse costume desapareceu das ruas. Talvez por medo da violência real ou pela mudança dos tempos, onde o simbólico perdeu força e os rituais se dissolveram no barulho dos dias modernos.

 

Mas ainda guardo no coração aquela esperança silenciosa do Sábado de Aleluia. A certeza de que, depois da dor e da morte, vem sempre um novo recomeço.

 

É o dia em que o mundo parece segurar a respiração, esperando a notícia que transformou a história: Ele ressuscitou!

 

E, dentro de cada um de nós, renasce a fé.

 

Gabriel Novis Neves

15-04-2025








quinta-feira, 17 de abril de 2025

CHOQUE CULTURAL


Já escrevi, ao longo destes anos, sobre um dos maiores choques culturais que marcaram a minha vida. Foi intenso e abalou profundamente minha crença religiosa.

 

Minha mãe era católica praticante; meu pai, católico não praticante.

 

Fiz a catequese para a primeira comunhão, celebrada em oito de dezembro de 1942, na Catedral Metropolitana de Cuiabá.

 

Fui coroinha da Catedral e afilhado de crisma de Dom Aquino Corrêa.

 

Em março de 1953 mudei-me para o Rio de Janeiro para completar os estudos para ingressar na faculdade de Medicina.

 

Fui morar numa pensão, ocupando uma vaga em quarto dividido.

 

Na primeira Sexta-feira Santa que passei no Rio, aceitei o convite do filho da dona da pensão — um pouco mais velho que eu.

 

Era bancário, remador, praticante de esportes.

 

O convite era para subir o Pico da Tijuca, um dos pontos com vista mais deslumbrante da cidade.

 

Ele cuidaria da matula. Pegamos o ônibus no Largo do Machado e seguimos até o ponto final, no Largo da Tijuca.

 

Ali começaria nossa aventura rumo ao topo do morro.

 

No local, havia guias.

 

Mas, para economizar, resolvemos fazer a escalada sozinhos — uma temeridade.

 

Adentramos a mata, atravessamos riachos onde a luz do sol mal penetrava.

 

Chegou a hora do lanche. Meu companheiro retirou da mochila, um generoso sanduiche, envolvido em papel fino, e uma latinha de refrigerante.

 

Devorei a minha parte.

 

Saciada a fome, perguntei do que era feito o sanduiche.

 

 — Pão com carne assada e queijo.

 

— Mas... hoje é Sexta-feira Santa!

 

— Não faz mal — respondeu, com naturalidade.

 

Meu mundo veio abaixo. Naquele instante, não sabia o que fazer!

 

Pensei logo em procurar um padre para me confessar. E foi o que fiz assim que voltei para casa. Achava ter cometido um pecado grave.

 

Senti um alívio profundo quando no confessionário, o padre me perdoou.

 

Nunca mais me esqueci desse passeio que terminou em tragédia espiritual — há 72 anos.

 

Gabriel Novis Neves

14-04-2025