Chego ao hospital e caminho para o meu consultório.
Na “Praça da Alimentação”, encontro elegantemente vestido lendo um jornal, um famoso economista, ex-aluno da UFMT.
Aproximo do meu amigo consagrado pelos estudos para cumprimentá-lo e adverti-lo.
Mestre, este é um hospital feminino.
Sua presença aqui levanta suspeita.
O professor entendeu a brincadeira.
O seu clínico geral, tem o seu consultório no segundo andar, mas, distante da Praça de Alimentação, polo dos consultórios dos ginecologistas e obstetras.
Como seu médico estava atrasado, o ex-dirigente do Diretório Acadêmico da UFMT na década de 70, espontaneamente, me fez um depoimento que desconhecia durante o nosso cordial bate papo.
O senhor conhece a verdadeira história da primeira greve da UFMT?
Disse-lhe que foi uma greve de adolescentes e que não deixou cicatrizes.
Então, em homenagem a história, ele me relatou com minúcias os acontecimentos que eu desconhecia totalmente.
Fui o único reitor encarregado de implantar uma Universidade Pública Federal no período do regime militar e que dispensei o serviço de inteligente (SNI), na instituição de ensino, e nem me interessei por ideologias, raças, religião, preferência sexual e outros penduricalhos do sistema social da hipocrisia.
Também nunca apliquei o temido artigo 477, que desligava o aluno da universidade por motivos ideológicos.
Tinha como único foco implantar a maior usina de conhecimentos em Cuiabá e, só.
Trabalhei com os mais variados perfis humanos e profissionais, e sempre aproveitei as suas virtudes.
A tentação para o desvio e provocações foram inúmeras.
Diante do relato do ex-aluno, fiquei perplexo.
O comando do diretório da UFMT era do MR-8.
O relacionamento dos estudantes com o reitor era o melhor possível.
Nunca foi aplicado nenhum ato revolucionário contra um aluno ou professor.
O reitor sim foi cassado por motivos políticos.
Depois recuperou o seu cargo.
A ordem nacional revolucionária era uma greve geral em todas as universidades públicas brasileiras.
Foi solicitada a presença do presidente da UNE, que clandestinamente veio para cá e se infiltrou entre os nossos estudantes, fato esse confirmado anos depois pelo próprio ex-dirigente da UNE, que se tornou político profissional.
Precisavam de preferência de um cadáver para que o movimento tivesse projeção nacional e internacional.
Conseguiram um voluntário que simulou uma agressão por empalamento, que o levou ao suposto abdômen agudo.
Conduzido a Santa Casa de Misericórdia por seus colegas, foi atendido por especialistas e internado para observação.
Nada de anormal foi encontrado pelo exame físico e laboratorial.
Só então fui informado do que estava acontecendo.
Passei no Restaurante Estudantil ao lado da reitoria onde os estudantes, meus amigos, estavam concentrados e revoltados.
Disse-lhes que lamentava o ocorrido e que iria visitar o seu colega no hospital, mas voltaria para informar-lhes sobre a real situação de saúde do universitário.
Com mais de seis anos de prática no maior hospital de urgência e emergência da América Latina, o Hospital Souza Aguiar do RJ, após ouvir o relato dos meus colegas que estavam cuidando do garoto, me permiti a examiná-lo, a pedido dos mesmos.
Meu diagnóstico batia com o da equipe de especialistas: “simulação”.
Fomos para a sala dos médicos onde discutimos o assunto sob todos os ângulos, e considerando que a medicina não é uma ciência exata, decidimos que o melhor seria fazer um procedimento clássico e ético: “laparotomia exploradora”.
Não quis entrar no campo cirúrgico, embora estivesse presente no Centro Cirúrgico, pela minha condição de reitor.
Após inventário minucioso de toda a cavidade abdominal, nenhum sinal de trauma foi constatado.
Concluído com êxito o procedimento médico, apressei-me em trazer aos jovens acampados no restaurante a boa notícia.
Ao fazer o relato das boas condições de saúde do seu colega, sem nenhuma possibilidade de ter sofrido um trauma ou risco de morte, levei a maior vaia da minha vida.
Toda aquela gente inocente precisava de um cadáver.
Esses fatos com nomes dos autores me foram fornecidos pelo renomado e respeitado economista.
Até onde a paixão política transforma seres humanos privilegiados em frequentar uma universidade pública, em país de analfabetos, em seres irracionais.
Assim, terminou melancolicamente a primeira greve geral na UFMT.
Essa é a história não escrita.
Gabriel Novis Neves
16-11-2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.