segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

RETROVISOR


Por mais que me martelem com conselhos, para que pare de escrever a respeito do meu passado, faço ouvidos de mercador. Afinal, retrata minha história. E relembrá-la é ir ao meu encontro.


Houve quem dissesse que acabo me fazendo repetitivo, e tudo que tinha a escrever já o fiz no ato de despetalar mais de três mil crônicas.


Por mais que me esforce e fique meses publicando temas outros do cotidiano, sempre caio em tentação.


Sabe por quê? Aprecio, e muito, escarafunchar os escombros do vivido. De repente, topo com algo que estava escondidinho nas frestas do antigamente.


Tenho uma explicação para esse ‘fenômeno’ que vem sucedendo comigo.


Com oitenta e oito anos completos, o rio que passou — retrata minha vida — é muito mais profundo do que, à primeira vista, supus. Nessa hora, vem-me a indomável tentação de explorá-lo mais e mais.


Quanto ao meu futuro, só diviso correntezas superficiais com águas rarefeitas.


Tenho predileção por aquilo que se esconde em suas profundidades. Quem sabe, dia chegará em que forças, advindas de não sei onde, haverão de destampar os guardados.


Pergunto-me: será que o esconderijo só se conservou num passado remoto por conta das implicações sociais que a tanto me obrigavam?


O futuro do ser humano, dadas as limitações próprias da idade que, dia a dia, caminha passos novos, nos convida a sermos bem repetitivos.


No fundo, no fundo, reedita muito da própria vida: no girar dos dias, passa-nos a impressão de que são iguais.


Alguém me disse que a única coisa que muda no idoso é sua profissão, uma vez que todos já usufruem da aposentadoria.


Tenho comigo que o idoso saudável sabe exatamente como lhe será o seu amanhã. E isso vem pavimentado de longe.


Uns há que ficam viciados com os noticiários — alguns bem banais — da televisão. Esta sabe jogar no ventilador, com dose alta de espalhafato, as desgraças do mundo. Cá entre nós: de última!


Escrever sobre esses entrechoques não me provoca. Ah, um amigo me diz sempre que ‘provocar’ — isto é dos latinos — é chamar para a briga!


Desde que o mundo é mundo, o homem luta pelo poder, ceifando milhares de inocentes.


Deixemos o historiador desses fatos a quem sabe fazê-lo com maestria, de longe maior que a que acumulei.


Os livros que daí resultam, são abraçados pelas livrarias especializadas. Estas é que se locupletam, a mais não poder, vendendo aos que saboreiam essa literatura que esguicha horrores.


Dia destes irei escrever pelo menos uma crônica sobre o racionamento de alimentos e combustíveis em Cuiabá, ainda no decurso da Segunda Guerra Mundial.


Nasci durante esse grande conflito mundial e, no fundo do rio da minha existência, sinto-me impelido a esclarecer esse conteúdo, já no esquecimento.


Para um momento mais convidativo, cuidarei de tecer nova crônica sobre o ontem, vista pelo ‘retrovisor de meus dias.


O ‘retrovisor’ abriga o intento de mostrar o que só os olhos do passado tiveram o privilégio de ver. Por ora, contentemo-nos com o que nos afaga.


Gabriel Novis Neves

01-01-2024




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