quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

OUTRAS TRÁGICAS RECORDAÇÕES DE UM MÉDICO


Fiz amizades com alguns internos quando diretor do hospital psiquiátrico, o único existente no Estado de dimensões enormes.


Antes de passar a dirigir o nosocômio, o tratamento era quase todo com eletrochoque sem anestesia.


Não era respeitado o número de leitos, insuficientes para receber os pacientes.


O hospital com duzentas camas hospitalares, frequentemente tinha o dever de acomodar trezentos ou mais internos, que dormiam pelo chão.


Além dos pacientes psiquiátricos que precisavam de internação, alguns eram trazidos por viaturas da polícia, a mando de autoridades judiciárias do interior.


Outras vezes, os prefeitos faziam uma "limpa" nos moradores de rua, mendigos e menores abandonados no seu município, sem documentação, e os “jogavam” no hospital dos loucos, para nunca mais buscarem.


O hospital tinha um serviço da ambulância também utilizado para devolver às suas famílias os pacientes crônicos, mendigos de rua e menores, quando possuíamos os seus endereços.


Cuiabá era uma cidadezinha com menos de 100 mil habitantes. Nessa época bastava colocar os pés na rua para se encontrar com toda a gente da cidade.


Uma ocasião, logo pela manhã, me encontrei com um juiz de direito de Cuiabá. Meu contemporâneo e amigo, amistosamente me disse que iria me prender, só não o fazendo ainda por saber que eu não conhecia as leis.


A história era a seguinte: o senhor juiz de direito, todas às vezes que saía à noite andando pelas ruas de Cuiabá, encontrava pessoas dormindo nas calçadas, inclusive menores.


Determinava à policia que os recolhessem no hospital psiquiátrico, que até então funcionava como “depósito” dos menos favorecidos pela sorte. Os militares então seguiam para o hospital psiquiátrico.


Claro que não havia leitos vagos para atender essa demanda de pessoas que nem sequer apresentavam um simples exame médico de encaminhamento.


“Na força”, os funcionários do hospital, chamados de “guardas”, numa alusão as suas funções de “guardar pacientes”, deixavam aquelas pessoas entrarem.


Ao chegar para o expediente, me relatavam o caso e eu os mandava deixar os internados à  força e sem motivos médicos, no centro da cidade.


No outro dia o juiz via que estavam na rua e tomava as mesmas providências.


Eu tinha o trabalho de liberá-los novamente.


Foi então que o juiz me disse em tom amistoso que “juiz não pede, manda” e da próxima vez se não internasse os que a polícia levava, me colocaria algemado atrás das grades, para não ficar desmoralizado.


Somos bons amigos até hoje, e recordo sempre da minha prisão que nunca aconteceu, embora continuasse a não aceitar internações de menores e mendigos de rua.


Queria apenas exercer o mínimo direito de respeito ao ser humano.


Gabriel Novis Neves

04-02-2022




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