quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

ARTE E FÉ ONDE MENOS SE ESPERA


Ainda dormia em uma madrugada escura quando o telefone da cabeceira da minha cama tocou.


Sonolento, atendi ao Vigário da Catedral Metropolitana de Cuiabá.


Este me pediu desculpas pelo horário, mas disse que precisava da minha ajuda para poder celebrar a missa das cinco horas da manhã.


Os fiéis estavam chegando para a missa e um interno do hospital dos Alienados tinha fugido e, de batina em frente ao altar, insistia em celebrar a missa, espalhando terror entre os fieis.


Perguntei ao sacerdote o nome do paciente. Ele me respondeu dizendo-se chamar Esperidião.


Acalmei o reverendo dizendo tratar-se de um esquizofrênico crônico e que no hospital eu permitia que ele celebrasse a missa para os internos.


Em poucos minutos estarei na Catedral para conduzi-lo de volta ao "hospital dos loucos" do Coxipó da Ponte, respondi.


Espiridião era um esquizofrênico crônico, abandonado há anos no hospital, como tantos outros.


Naquela ocasião as famílias de menor poder aquisitivo, abandonavam seus entes queridos no hospital psiquiátrico do Coxipó, que atendia todo o Estado ainda não dividido.


Os de melhores condições financeiras construíam um quartinho no fundo do quintal onde os mantinham, por vezes, acorrentados.


Até hoje pacientes com distúrbios mentais, sofrem discriminação da sociedade, quando são tratados de louquinhos ou maluquinhos.


O Esperidião foi um grande amigo que ganhei no hospital dos loucos.


Preparava o salão para receber alunos para as aulas práticas de psiquiatria forense da faculdade federal de Direito aos sábados pela manhã.


As aulas eram por mim ministradas.


Ajudava na vigilância à ordem nas enfermarias dos homens e tinha um pequeno salário para comprar fumo para preparar seus cigarros de palha e algum material de higiene.


Certo dia, ele foi ao meu gabinete para dizer que não ficaria mais na enfermaria com outros pacientes.


Disse-me ele que era conversa à noite toda, barulho, luz acesa e, noite dessas, um interno deixou cair o cigarro na cama de colchão de capim produzindo um incêndio que ele custou para apagar.


Queria que eu o autorizasse a construir a sua casa própria em terreno fora do hospital.


Meses depois ele me convidou para visitar a casinha que havia construído.


Vi que a casa do Esperidião era um objeto de arte.


Convidei a crítica de arte Aline Figueiredo para a visita, para constatar como um esquizofrênico projetava seu espaço para morar!


Fotografou mil vezes, conversou com o Esperidião, que lhe relatou detalhes das dependências da sua casa.


Concordou comigo que aquilo era uma obra de arte, e o resto se perdeu pelo tempo.


Gabriel Novis Neves

04-02-2022




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