quarta-feira, 10 de junho de 2015

Amor e desilusão


Por mais de meio século exerci com amor a profissão de médico da área básica de saúde – Ginecologia e Obstetrícia.
Dedicação, comprometimento, despojamento, humanismo, solidariedade e um profundo respeito a todos que me procuravam, independente da classe social e econômica, marcaram a minha trajetória.
Acho até que abusei do fato de praticar assim o meu ofício de médico, muitas vezes sacrificando a atenção que deveria prestar à minha família.
O tempo passou, o mundo foi globalizado e a medicina judicializada.
Neste momento, o ingrediente mais importante na profissão de cuidar de doentes é impedido quando o que realizamos não é ciência ou arte, e sim, entrega ao nosso semelhante fragilizado.
Com esse corte na indispensável relação médico-paciente, o meu amor pela medicina foi se transformando em uma enorme desilusão.
Pelos critérios atuais o exercício dessa antiga profissão está totalmente descaracterizado da concepção de Hipócrates, o pai da medicina.
Não é possível exercer industrialmente essa ocupação apenas para sobreviver com um mínimo de dignidade.
O tempo que cada paciente necessita de seu médico não pode ser mensurável pela produtividade.
O pior é que neste estado de coisas desapareceu a confiança entre médico e paciente, situação impensável há alguns anos.
O médico passou a não ter tempo disponível para fazer uma boa anamnese, onde se inicia o processo da hipótese diagnóstica.
A grande maioria não possui mais este essencial equipamento a uma boa consulta, pois, Planos de Saúde e SUS, roubaram essa possibilidade.
Este é o perfil do profissional oferecido pela medicina socializada (!). 
Assim como existem bons e maus médicos e clientes, aumentou cada vez mais esse fosso, impedindo o exercício da mais humana das profissões, com tudo nivelado por baixo nesse binômio médico-cliente.
A medicina mudou de rumo onde, para o seu desempenho, é obrigatório ter preparo de um atleta velocista no atendimento para receberem um salário aviltante.
Sentimos que os jovens que ainda procuram a medicina como profissão fogem das especialidades básicas – pediatria, clínica geral, cirurgia geral e ginecologia-obstetrícia, e optam por uma atividade voltada à vaidade humana e às máquinas de impressionantes resultados tecnológicos.
Os nossos serviços públicos de atenção básica à saúde, estão em níveis inaceitáveis de atendimento por falta de profissionais, embora o Brasil seja um dos países com o maior número de escolas médicas do mundo. Aqui, importamos médicos!
O amor pela profissão foi vencido pela desilusão.
A reversão dessa situação só será minorada quando resolvermos nossos problemas educacionais.
Sem educação não se faz saúde, aliás, não se constrói nada.

Gabriel Novis Neves
24-05-2015

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