quarta-feira, 22 de junho de 2022

MAIS SOBRE O ADAUTO BOTELHO


Recebi o pedido de um amigo para escrever mais sobre a minha experiência no Hospital Colônia de Alienados do Coxipó da Ponte.


Fui das últimas turmas de médicos generalistas com foco em ginecologia e obstetrícia.


Retornei para Cuiabá na segunda metade de 1964.


Em 16 de março de 1966 assumi a direção do Hospital dos Loucos, como era conhecido o hospital.


Como diretor fiquei até maio de 1968, quando assumi a secretaria de educação do estado, sendo substituído pelo psiquiatra José Guilherme Esmela Curvo.


Como médico e professor de psiquiatria forense fiquei atendendo em um período da manhã, até o dia 16 de março de 1971, quando me afastei definitivamente agora do Hospital Adauto Botelho, para implantar a universidade federal de Mato Grosso, no Coxipó da Ponte, em Cuiabá.


Quando fui dirigir o Hospital de Alienados, não tinha condições de avaliar o quanto necessitava dos ensinamentos de uma realidade diferente daquela adquirida na minha formação universitária.


Mesmo na área das minhas afinidades, ginecologia e obstetrícia, era completamente diferente cuidar dessas mulheres em enfermarias de um hospital psiquiátrico.


A começar pela anamnese, onde a história da doença contada pelas internas eram muitas das vezes diferentes da realidade.


Todos que fazem medicina sabem muito bem da importância das informações dos pacientes para um encaminhamento diagnóstico.


O mundo dos pacientes internados é bem diferente do nosso mundo consciente.


Os psicóticos agudos, de personalidades psicopatas, ausências epiléticas, dependentes químicos e neuróticos graves, vivem no mundo inconsciente.


E o médico de um modo geral não está treinado para essas situações, onde as relações e reações dos pacientes, são as mais inesperadas possíveis.


Certa ocasião fui chamado por um funcionário do hospital, que naquela época era chamado de guarda, numa alusão aos soldados que guardavam os criminosos em penitenciárias, para atender a uma jovem internada.


Pelo relato ela me disse que havia sido incomodada por um interno.


O lençol da cama estava com uma grande mancha de sangue.


Ao fazer o exame físico constatei que ela havido costurado os grandes lábios da vagina com agulha e fios de costura.


Passei a melhor compreender as mulheres diferenciadas e discriminadas a lidar com a sua sexualidade.


Gostava, apesar da dificuldade, de conversar com elas.


Me tornei mais humano ao mergulhar no universo feminino.


Fiz o parto de algumas internas, e contemplava a relação com o seu neném em um ambiente coletivo de doentes mentais.


A reação das outras pacientes no ambiente com um recém-nascido.


Uma coisa maravilhosa que não se aprende em livros de medicina, onde era comum a psicose puerperal, cujo medicamento era a aplicação do eletrochoque


E dos homens?


Percebi fumaça saindo em média quantidade pela janela da enfermaria dos homens.


Abri a porta e percebi um colchão de palha pegando fogo, originário de um cigarro abandonado por um interno.


Os outros pacientes da enfermaria a tudo apreciavam, ignorando que corriam risco de morte pela disseminação do incêndio, tendo seus corpos queimados e pulmões afetados por aspiração do gás carbônico.


Para os antigos funcionários do hospital aquilo era um fato normal, que me obrigou a rever esse conceito daquilo que é normal.


Percorrendo enfermarias, corredores, ambulatórios, refeitórios, sempre deveríamos estar preparados para situações não desejadas.


A maior lição de vida que recebi foi atender e ver como viviam os pacientes nas celas fortes, para “os loucos furiosos”.


Eles tinham uma perna amarrada em uma corrente de ferro e presa numa argola no chão.


O sanitário consistia em uma abertura no chão, ao lado do colchão onde o paciente dormia.


O banho era feito por canecas de água, e não havia higiene bucal.


A comunicação com o mundo exterior era por uma pequena janela, por onde o paciente recebia os medicamentos, refeições e água para as suas necessidades.


Passados cinquenta anos, não sei como anda o tratamento dos doentes mentais do SUS, e essas recordações pertencem a um passado recente onde o diretor do hospital jogava futebol com pacientes e funcionários e um cliente crônico teve autorização para construir a sua casa fora do hospital, verdadeira obra de arte do inconsciente.


A antiga casa para pacientes crônicos e sem família, onde era frequente encontrar um corpo boiando no rio Coxipó, foi totalmente demolida.


As celas fortes foram transformadas em pequenas oficinas, a antiga cozinha passou a ser um centro de recreação, com mesa para o jogo de bilhar, sendo o médico José Guilherme nossa estrela principal.


Lá eram ministradas aulas práticas de Direito Forense, muito do agrado dos acadêmicos.


Foram construídos campo de cimento para futebol de salão, vôlei e basquete.


Campo de futebol de grama com dimensões oficiais para campeonatos entre pacientes e funcionários, centro de treinamento do Mixto, de Ruiter Jorge de Carvalho Neto.


Foi construída uma parte nova de dois pavimentos, com entrada independente, por administração direta, onde pacientes que foram abandonados pelas suas famílias participaram.


Foi aberta, com tratores cedidos pelo Estado, uma rua de acesso direto da parte nova ao asfalto da avenida do Coxipó.


As obras foram supervisionadas gratuitamente pelo engenheiro civil Luís Lotufo.


O hospital ampliou a oferta de leitos, que atendia a todo o Estado não dividido.


Melhorou a qualidade do atendimento, contratando enfermeiras de nível superior como a Geralda e Maria Remilda, farmacêutico Balbino Latorraca, dentista Silvério Correa da Costa, farmacêutica Affif Bussick.


Novos médicos especialistas em psiquiatria começaram a chegar.


Depois de 1971 nunca mais voltei ao hospital Adauto Botelho, que em 1966 tinha gestão compartilhada, onde médicos e funcionários participavam da receita das internações dos pacientes particulares.


Gabriel Novis Neves

18-06-2022


O Diretor Dr. Gabriel Novis Neves 
participando do time de futebol dos internos 


Fotografias do acervo do Sr. Francisco das Chagas Rocha:







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