domingo, 5 de setembro de 2021

JOÃO DE DEUS


Um colega me confessou, em plena sexta feira à tarde, que estava assistindo na Netflix o seriado “João de Deus”. Estava tão revoltado que me aconselhou a assistir, para me inspirar num texto no blog. São apenas quatro episódios!


Acontece que assisti esse seriado e não me inspirei em nada, e sim, em reconhecer a grande carência educacional da nossa gente, presa fácil do “sobrenatural”, charlatães, vigaristas e formadores de quadrilhas.


Conheci pessoalmente o personagem João de Deus em sua Casa de Milagres, onde fui por insistência de um amigo portador de câncer, político de grande prestigio na região de garimpos do médio norte mato-grossense em 1984. 


Eu era Secretário de Saúde do Estado, e ele Prefeito da região dos garimpos de pedras preciosas. Ele queria que eu, secretário e médico, visse como se tratava as doenças incuráveis e achava que podia trazê-lo aqui para curar os nossos pacientes incuráveis. O que eu não sabia era que ele era amigo do Governador da época, que acatou a decisão da minha ida até Anápolis para conhecer as curas do famoso João de Deus.


Pensei muito antes de aceitar o convite e decidi ir, pois a medicina é uma ciência para todos e essas curas traduziam o povo que iria tratar.


Ao chegar à enorme Praça da Cura, uma multidão se aglomerava, e no estacionamento de ônibus ao lado pude perceber placas de todo o país. Meu amigo, paciente antigo, tinha muito prestígio entre os auxiliares de João de Deus e em poucos minutos estava sendo apresentado ao “milagroso”.


Fui alertado que iria conversar com a ”Entidade”, e logo iria começar as “cirurgias espíritas” na Praça, e eu convidado a assistir de perto. 


Vi seus auxiliares portando uma bandeja com material para cirurgia: bisturi, tesoura, pinça, água oxigenada e algodão. O alto-falante começou a chamada – “cirurgias de catarata”, e os pacientes enfileirados iam até onde nos encontrávamos em um lado onde todos poderiam ver os atos praticados.


Com bisturi, contrariando a técnica cirúrgica e ele logo colocou a parte cortante colada ao seu punho e pelo cabo do bisturi “escareava” a córnea até que os pequenos vasos superficiais sangrassem.  Pediu algodão, e lhe foi passado preso em pinça reta e,  após aparecer leve mancha de sangue, mostrava ao público o êxito da cirurgia! Era um delírio e as orações de agradecimento aumentavam o tom.


Terminada a fila de catarata, anunciou que iria operar um tumor abdominal, para meu desespero! 


Os pacientes iam até a sua frente de avental branco fechado na frente. Pegou o bisturi, palpou por cima do avental o possível “tumor”, e com o bisturi furou o avental dando saída a grande quantidade de liquido vermelho que, para aquela multidão,  era sangue do tumor retirado. 


O “milagroso” apenas tinha perfurado uma “bolsa com mercúrio cromo” que o infeliz mantinha amarrado pelos auxiliares da "divindade" em seu corpo!


Corri até o risco de ser cassado pelo Conselho Regional de Medicina se me vissem presenciar essas cenas divulgas.


Quando saí de Cuiabá com o meu amigo, iria apenas acompanhá-lo. Lá é que a história mudou,  embora tivesse dito ao João a minha profissão.


O homem era um fenômeno de comunicação e famosos da política como Presidentes da República, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Ministros de Estado, Ministério Público, Senadores, Deputados, Governadores, artistas, empresários, profissionais liberais com títulos de doutores, jogadores de futebol, estavam atrás da cura que acreditavam ser possível encontrar ali. 


Passei o dia todo na verdade sem saber onde estava, pois nunca tinha visto coisa igual.


Demorou a “cair” o João de Deus,  hoje um velho rico e doente, desmoralizado socialmente, estuprador, cheio de processos e condenações e seu Império em extinção. Meu amigo logo veio a morrer de câncer.


Fica nítida a carência do nosso povo à educação, com ensino para melhorar com seus títulos - os holerites.


Gabriel Novis Neves

04-09-2021




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