domingo, 9 de abril de 2023

OS PITORESCOS 66


Bem antigamente a Semana Santa era um período de ritual católico em que toda a população de Cuiabá se envolvia.


A partir da quarta feira das trevas, tudo parecia um quarto de UTI.


A reza da Catedral era fúnebre, os altares dos santos das igrejas ficavam encobertos por cortinas escuras.


O coroinha ia vestido de batina preta à residência da dona Elza Nigro, ao lado do Grande Hotel, no fundo da Igreja, pegar carvão para o turíbulo.


Era uma honraria para as crianças da minha geração esse trabalho, só comparável ao do colega responsável pelo toque dos sinos de mão no altar.


Naquela época a língua oficial cristã era o latim e o celebrante e auxiliares ficavam de costas para o público.


O sino da torre da Catedral não tocava à noite na semana santa.


Era uma tristeza verdadeira sem fim.


As procissões eram de uma beleza ímpar e emocionantes que só a Fé é capaz de produzir.


A “Procissão da Fugida” da Igreja do Senhor dos Passos até a Igreja do Seminário.


A “Procissão do Encontro” entre Nossa Senhora das Dores que saia de uma igreja e o Senhor dos Passos, da igreja do Senhor dos Passos.


Quinta feira da Semana Santa havia a celebração do “Lava Pés`” com Dom Aquino à tarde, e a “Via Sacra”.


Minha mãe na quinta-feira santa à noite, avisava a gurizada que limpasse à casa e tomasse banho.


Bem antigamente, na sexta-feira santa pela manhã, ninguém falava em voz alta, por que Nosso Senhor Jesus Cristo iria morrer às três horas tarde.


Não era celebrada missa.


Jejuava-se, e no almoço não se comia carne vermelha.


Só funcionavam em Cuiabá os serviços essenciais e o bar do Bugre.


O sábado de Aleluia era um dia alegre, e naquele tempo logo pela manhã, para a alegria da meninada era celebrada nas ruas a “Malhação de Judas. ”


Judas eram enormes bonecões de pano que se amarravam nos postes das calçadas das ruas, árvores ou encostados nos muros das casas.


Eram jogados contra eles, limões, tomates, pedaços de pau, chutes e terminava na queima do boneco.


O corpo de Cristo ficava exposto na Catedral para adoração.


No domingo era celebrada missa de gala na Catedral às nove horas da manhã pelo nosso Arcebispo Dom Aquino Correa.


O acompanhamento musical era de D. Zulmira Canavarros no órgão e soprano Maria Canavarros, sua filha.


O coral era dos seminaristas do Bom Despacho, com vocal do Padre Pedro Cometti.


Antes de viajar para estudar, era escalado pelo Vigário da Catedral, para entrar na igreja cuidando da imensa cauda do vestuário religioso de D. Aquino Corrêa, o celebrante da missa.


No sábado de aleluia os católicos estavam alegres, como aliviados pela Ressurreição de Cristo.


Hoje essas festas religiosas da semana santa estão bem diferentes.


Não sei se a causa foi o crescimento da cidade ou se o Vaticano alterou muito o ritual religioso.


Meu grande trauma religioso-cultural aconteceu em 1953 chegando ao Rio de Janeiro.


Na primeira sexta-feira santa que passei longe de Cuiabá, fui almoçar no apartamento dos meus tios, na Avenida Atlântica esquina com a rua Duvivier, no Posto 2, em Copacabana.


Assim que o almoço terminou, fui caminhando pela Atlântica para retornar para minha pensão em Botafogo.


Assim que passei pelas portas do “Bar e Restaurante Bolero”, um barulho de música em volume alto.


No seu interior prostitutas dançavam e bebiam com turistas estrangeiros.


Nas mesas sobressaiam pratos com carne vermelha.


Todos alegres, nem se lembravam da sexta-feira, ou pertenciam a outras religiões.


No outro ano, morando em outra pensão no Flamengo, fui convidado pelo filho da dona da pensão, poucos anos mais velho que eu, para escalar a Pedra da Tijuca na sexta-feira santa.


Eu, louco para conhecer os pontos mais lindos do Rio de Janeiro, não titubeei em aceitar o inocente convite para um católico praticante.


A matula ficava por conta de quem me convidou.


Entramos no meio do mato ouvindo o barulhinho das pedrinhas rolando nas inúmeras correntezas existentes.


Meu amigo me convida pra lancharmos, para evitar que encontremos a escuridão da noite no nosso retorno.


O lugar onde escolhemos para passar a sexta-feira santa não penetrava o sol.


Recebi um sanduiche para almoçar e uma latinha de refrigerante.


Não perguntei de que era feito e matei a minha fome.


Depois é que perguntei a origem do sanduiche: de carne de boi!


Veio o arrependimento, mas já era tarde.


Domingo fui me confessar para comungar na missa da Igreja do Largo do Machado.


O padre havia me perdoado e eu nunca mais me esqueci das duas primeiras sextas-feiras santas, que passei no Rio de Janeiro.


Hoje está tudo mudado.


Continuo católico não praticante, sem esquecer da semana santa, sem comer carne vermelha, assim como toda a minha família.


Gabriel Novis Neves

02-04-2023




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