sábado, 24 de julho de 2021

ARCADAS


Duas vezes ao ano vou ao dentista, apenas para prevenção e limpeza da minha arcada dentária original.


Quando criança tive cáries dentárias, sempre tratadas por práticos. Não se utilizava anestesia e os gritos produzidos nos consultórios eram ouvidos à distância. Essa prática era aceita pela população e considerada normal, dentro do conceito estatístico de normalidade da época.


O resultado desse período coincidiu com a fase áurea dos protéticos. Nunca se fabricou tanta dentadura, ou “chapa” como preferem os cuiabanos, como nessa época! Era chique ter dentadura, ou uma enorme ponte na boca. Um dente de ouro, também ia bem.


Significava status e poder econômico. Os pobres,  quando não exibiam falhas acentuadas na arcada dentária, não possuíam um único dente.


Naquele tempo, o mais sábio dos mortais desconhecia que a cárie dentária é produzida por uma bactéria e que podia ser prevenida.


A geração atual, mesmo a de pequeno poder aquisitivo, de um modo geral, possui uma razoável saúde bucal.


As pessoas da minha geração - e que não tiveram a minha sorte -, substituíram a dentadura, considerada obsoleta e antiestética, pelos caríssimos implantes dentários.


Hoje, a dentadura ou a "chapa" viraram marcador econômico: só os pobres as usam.


Mas, como tudo neste mundo, os ricos ganharam o implante, mas perderam o poético ritual do uso da “chapa”.


Que coisa pitoresca é o dia de uma dentadura! Dorme confortavelmente em copos especiais, imersa em água natural com o cuidado necessário para não derramar. Fica no quarto de dormir, sempre em lugar privilegiado, de preferência em cima da cômoda ao lado do oratório. Pela manhã a dentadura é cuidadosamente escovada na pia, com todo o cuidado para não cair no chão.


Após a higiene bucal da dentadura, ou do proprietário, com exímia habilidade é encaixada na arcada dentária. Tinha que ficar bem fixa, do contrário só trocando por uma nova.


Muita gente não se preocupava com a mobilidade da dentadura na boca, e até brincava com ela, enquanto trabalhava.


Já levei muitos sustos com as brincadeiras que se faziam com as dentaduras móveis.


Certa ocasião, na casa do meu avô, jogava xadrez com um parceiro idoso, que prestava atenção no tabuleiro enquanto brincava com a sua dentadura, fazendo-a rodar na boca. Aquilo me desconcentrava e eu achava mais interessante perceber aquela perigosa manobra do que o jogo de xadrez. De repente, num ato mais audacioso desse adversário, a chapa pulou para cima do tabuleiro de xadrez.


Hoje à tarde irei ao dentista - sem nenhum sentimento de medo. Estarei nas mãos de um profissional muito bem capacitado – com nível superior e pós-graduação – e terei toda a moderna tecnologia a minha disposição.


Afora isto, ficarei superconfortável deitado numa cadeira odontológica de última geração – semelhante à de certos deputados – aquela que produz até massagens.


Terei direito até a uma auxiliar para segurar o aparelhinho de aspiração de saliva. Durante o trabalho do odontólogo ouvirei música ambiente, em gabinete refrigerado, e logo estarei de alta, com a recomendação de sempre: “você está ótimo, volte daqui a seis meses”. Assim espero.


Gabriel Novis Neves

23-07-2021

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