sexta-feira, 30 de julho de 2021

A FREGUESIA


Bar Moderno só existiu com esse nome nos registros comerciais, pois foi  reconhecido publicamente como "apêndice" do apelido carinhoso do proprietário, distinguido pela alcunha de "Bar do Bugre" 


Embora fosse conhecido como bar, os frequentadores sabiam que ele possuía uma extraordinária sorveteria, setor de salgadinhos e bolos - que muitos compravam para comsumir em casa - , biscoitos, chocolates e queijos importados, salaminhos, vinhos franceses e portugueses, além de uma variedade de marcas de cigarros.


Além do que o telefone privado instalado em uma de suas paredes e o mictório do bar eram os únicos "bens sociais" para uso constante da população que vinha ao centro de Cuiabá, na época com menos de cinquenta mil habitantes.


Nos anos 40 e 50, o Bar do Bugre foi um grande centro de vivência onde as pessoas se reuniam para conversar, saber das fofocas, também fazer fofoca, tomar uma cervejinha “Teutônia” bem gelada.


Praticamente todos os dias, por volta das 10 horas da manhã, imensa mesa unida abrigava o Padre  Theodoro, secretário do Arcebispo de Cuiabá (Dom Aquino Correa), em companhia de desembargadores, juízes, promotores, membros do Instituto Histórico e Academia Matogrossense de Letras, funcionários federais; reunidos para um papo descontraído e em voz alta, saboreando pasteis e empadinhas feitas em minha casa!


Essa mesa se desfazia por volta das 11 horas e outros frequentadores ilustres passavam a se fazer presentes, como artistas, poetas, funcionários públicos importantes, pessoas comuns, com a característica de sentarem em pequenos grupos, não unindo muitas mesas.


Lembro-me do violinista Tote Garcia, que preferia consumir uma boa dose de conhaque do Porto, com a bebida encoberta pelo descanso do copo - para não cair mosca dentro. O “homem da febre” era “seo” Antônio da Rua de Baixo, que procurava sempre o bar para uma cervejinha antes do almoço. Eu o atendia e todas às vezes que levava o seu pedido perguntava se estava com febre, pois não sorria e eu, demasiado jovem e ainda completamente inexperiente nas coisas da vida e antes de pensar estudar medicina, imaginava, como as crianças, que não sorrir naquele tempo só poderia implicar em estar doente e o sintoma mais frequente da gripe era ter febre.


Foi apelidado por mim de “homem da febre”, fato e alcunha aceitos por meu pai. Leva uma gelada para o “homem da febre”, pedia o meu pai. A total inexperiência com crianças por "seo" Antônio, julgava decorrer do fato de ser casado e não ter filhos, sendo o caçula de uma família de cinco irmãos.


O público da tarde procurava o bar para comprar cigarros, fechar negócios, comprar picolés e usar o mictório. Somente o professor Ezequiel de Siqueira e seus cachorros sentavam na primeira mesa do bar, próximos à porta principal, para corrigir e criar as tarefas escolares e fazer numerologia.


Tempos passados, quando o professor Ezequiel de Siqueira soube pelo meu pai que eu estudava medicina, em uma tarde fui ao bar ele me convocou pela alcunha de "Biézinho" (diminutivo do apelido do meu avô paterno), pediu que sentasse à sua mesa, e com um lápis e folha de papel calculou o que apresentou como minha "numerologia" e lançou uma sentença que cumpri pelo resto da vida: nunca assinei doutor antes do seu nome completo ou sobrenomes. Nas minhas receitas, cargos públicos que exerci nunca o doutor antecedia meu nome próprio.


À noite, o público do bar era outro, no qual pontificava o historiador Rubens de Mendonça, emérito "gozador" do cotidiano com as suas fantásticas quadrinhas. O meu amigo adorava passar pela manhã no bar e inventava e contava uma "fake news", disseminando a título de "fofoca" sem maldades. À noite, ao chegar ao seu ponto de criatividade, logo era interpelado por um "novidadeiro" sobre a notícia falsa que a coletividade se encarregava de esparramar durante aquele dia - nada mais que o fake inventado pelo Rubens, acrescentado por outras invenções e detalhes que surgiam ao ser replicado -, a um  tal ponto que o mesmo fake, agora dito pelo interlocutor com ares de incorporada verdade, levava o historiador a não reconhecer o fato, admirando-se da criatividade alheia.


Após mais de setenta anos passados, tenho enormes saudades daqueles tão queridos personagens da freguesia, frequentadores mais assíduos do Bar do Bugre!


Gabriel Novis Neves

27-07-2021


Nota do Editor: Em reverência ao proprietário, sua melhor e mais sintética  descrição está em CURRÍCULO DO BUGRE 



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