quarta-feira, 24 de maio de 2023

COBRANÇA IMPLACÁVEL


Fui obrigado a fazer um serviço não programado e urgente no meu apartamento.


Canos da piscina da cobertura, pelos anos de uso, se romperam e a água caiu no meu banheiro, danificando o teto de gesso e obrigando o pedreiro a fechar as torneiras da piscina.


Terminado o serviço com a retirada da piscina, houve aumento da área do jardim.


Foram cinco dias integrais de serviço e seu custo bastante salgado para o meu gosto, dividido em duas parcelas.


Metade no início dos trabalhos e a outra parte após trinta dias.


O dia combinado para o pagamento da segunda parcela da obra venceu em um sábado, e eu esperava a visita do cobrador na segunda-feira.


Estava tranquilamente trabalhando no meu escritório quando o interfone tocou e a minha cozinheira atendeu.


Era a cobrança do pedreiro.


Paguei como sempre faço com as minhas dívidas e retornei ao trabalho.


Fiquei lembrando dos meus serviços prestados sábados, domingos, de madrugada e da dificuldade que tinha para receber meus honorários, quando recebia.


Herdei do meu pai esse hábito de não cobrar ninguém e ser pontual para pagar as dívidas.


Durante cinquenta anos no bar, diante da sua “Caixa Registradora”, meu pai vendeu fiado.


Anotava a compra, o valor e o nome do freguês em um pequeno pedaço de papel de embrulho que pegava na hora.


Ele ficava sentado em um banco alto de madeira com quatro longos pés.


Na mesa, à sua frente, ficava a Caixa Registradora.


Enfiava em uma pequena haste metálica com suporte de uma pequena rodela de madeira para não perder.


Quando ia para casa almoçar ou jantar, ele as arrancava da haste e as guardava no seu escritório, que ficava nos fundos do bar.


O lugar ficava atrás das prateleiras, escondido e protegido pelos armários, e era proibida a entrada de pessoas.


Meu pai trabalhava naquela “espelunca “calorenta sequer com um pequeno ventilador, e sempre com a porta fechada com chave.


Trajava sapatos pretos com cadarços, meias pretas, calça cinza comprida de casimira inglesa, camisa de manga comprida e gravata.


Seus sapatos eram engraxados diariamente e seu escritório estava sempre com a porta fechada com chave, que ele carregava na cintura, hábito na época.


No outro dia, antes de abrir o bar, passava tudo isso em livros chamados de “guarda-livros”.


Meu pai foi cobrador antes de inaugurar o bar em 1920, porém no bar nunca teve cobradores.


Ele não cobrava seus devedores e estes, quando podiam, pagavam tudo de uma vez ou em parcelas ditadas por eles.


Meu pai nunca jogou fora documentos e anotações de dívidas.


Também não permitia que limpassem o seu escritório, que era um quarto cheio de livros comerciais e montões de papéis. 


Teias de aranha por todo o escritório, uma cadeira de palhinha sem braços e um canto, de uma enorme mesa redonda, com coisas para ele escrever.


Uma burra com dinheiro e documentos.


Meu pai nunca teve contas em banco e as faturas que chegavam ele pagava em dinheiro no Banco do Brasil


Quando fui estudar no Rio de Janeiro em 1953, o bar do Bugre completaria 33 anos em 29 de junho, eu abri uma conta no Banco do Brasil onde ele depositava a minha mesada.


Quando meu pai encerrou as suas atividades comerciais em 1970, fui ao seu escritório e encontrei uma infinidade de contas para receber e a “burra” vazia.


Meu pai não faltou a um dia de trabalho, pois nunca adoeceu.


Talvez se ele tivesse cobrado aos sábados os seus devedores, não tivesse morrido apenas com a aposentadoria do INSS de dois salários mínimos, que deixou para a minha mãe como pensão.


Gabriel Novis Neves

20-05-2023




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