quarta-feira, 3 de setembro de 2025

RETRATO TORTO NA PAREDE


Na Cuiabá antiga, as pessoas tinham o hábito de pregar na parede da sala de visitas — ou em lugares de grande visibilidade da casa — um quadro com a fotografia do casal.

 

Com o tempo e a falta de cuidados, o retrato ficava torto.

 

Ninguém ajeitava, mas todos olhavam —como se ele guardasse um segredo de que só a própria imagem sabia.

 

Meus pais recém-casados tiraram uma foto artística: meu pai de terno e gravata; minha mãe debruçada sobre o ombro dele com o rosto sorridente.

 

Ele tinha quarenta anos e ela vinte.

 

Esse retrato está hoje em minha casa, não preso à parede, mas embelezando a prateleira de um móvel na cobertura do meu apartamento.

 

A beleza do casal permanece como um prêmio silencioso para seus descendentes.

 

Nunca precisou que alguém o endireitasse, pois, o porta-retratos é guardião fiel daquele passado.

 

E, olhando a foto de quase cem anos, ninguém ousa tirá-la do seu lugar para um banho de modernidade tecnológica.

 

Ela preserva, intacto, o segredo que carrega.

 

A minha geração já não cultiva o retrato do casal.

 

Foi substituído pelas fotos dos filhos e netos, guardadas em álbuns especiais.

 

E, com a evolução das máquinas fotográficas e a invasão das câmeras dos celulares, milhares de imagens são arquivadas em pastas de computador.

 

Dos meus bisnetos tenho centenas de registros — do nascimento às visitas ao odontologista para a retirada do primeiro dentinho de leite.

 

Como presente pelos meus noventa anos recebi um belo álbum de fotografias, preparado por um profissional de talento.

 

Mas temo que, com o tempo, esses retratos que marcam uma época acabem esquecidos em alguma gaveta da biblioteca, ao lado de papéis da universidade.

 

As fotos da minha lua de mel foram feitas em antigas máquinas japonesas, no formato três por quatro.

 

Sinto saudades, sim, dos velhos casarões cuiabanos, onde, na sala de visitas reinava o enorme retrato do casal — às vezes torto, mas sempre imponente na parede.

 

Gabriel Novis Neves

02-09-2025






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