Consertava o tempo alheio, mas já não dominava o próprio.
Cada relógio devolvido era um ato de fé — um segundo a mais roubado da eternidade.
O tempo parece castigar quem vive sempre desafiando a finitude.
É o caso do relojoeiro de mãos firmes e vista aguçada que resolveu enfrentar o próprio tempo.
Mesmo aposentado pela idade, continua em sua oficina tentando consertar o tempo dos outros.
A sua idade já não lhe permite tanto, e isso é considerado normal.
Cada relógio revivido é mais um segundo arrancado da eternidade.
Mas as mãos trêmulas — que ele insiste serem de família — dificultam o percurso pelas engrenagens outrora tão conhecidas!
O relojoeiro precisa de mãos firmes para exercer com esmero o seu ofício, além de uma visão privilegiada para apertar minúsculos parafusos.
O relógio mudo que chega às suas mãos faz o velho renascer ao ouvir novamente o seu tic-tac.
Em todas as profissões temos limites, e chega a hora de parar — é melhor não insistir.
O obstetra de idade avançada pode não conseguir ouvir o feto, mesmo com o sonar.
Pior ainda quando se confunde ante o canal de parto, complicando tudo mais
Eu parei de aparar crianças, por causa dos meus joelhos, aos oitenta anos — lúcido, com boa visão e mãos seguras.
Meu avô, mesmo sem audição, exerceu a sua especialidade de otorrinolaringologista até o final da vida.
Ele tinha um pacto com Deus ao atender seus clientes.
Mas o relojoeiro de mãos trêmulas já não dominava o seu tempo, e mesmo assim insistia em consertar o tempo alheio — verdadeiro ato de fé.
Como são bonitos esses atos de perseverança.
A minha mãe, longeva, foi adaptando suas atividades profissionais até os últimos anos de sua existência.
Eu segui o seu exemplo e descobri, neste meu crepúsculo, a literatura que me oxigena.
Com boa memória e todo o tempo disponível — escrevo sem parar.
Gabriel Novis Neves
12-11-2025
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