quinta-feira, 1 de maio de 2025

TEMPO SEMPRE EXISTE


É comum dizermos que não temos tempo para nada — especialmente para nós mesmos.

 

De tanto repetir essa frase acabamos por acreditar nela.

 

Mas sempre encontramos um espaço para realizar aquilo que nos é útil —seja para nós, seja para os outros.

 

E com que prazer nos dedicamos a essas tarefas que nos trazem satisfação.

 

Desde criança aprendi a fazer o tempo render. A ociosidade, para mim, é fonte de dissabores.

 

Quanto mais ocupado estou, menos horas de repouso preciso para me recuperar.

 

Falamos e ouvimos tantas besteiras, que acabamos sofrendo por motivos tolos.

 

Daí para uma vida sem sentido é um passo —e logo nos vemos no consultório de um psiquiatra, com uma farmácia particular instalada em casa.

 

Uma vida familiar organizada também nos ajuda a escapar dessas armadilhas.

 

Os profissionais vitoriosos costumam estar satisfeitos trabalhando o dia todo naquilo que gostam — e que lhes dão prazer.

 

Parece um fardo trabalhar o tempo inteiro, mas isso é uma inverdade.

 

O idoso, em especial, precisa estar atento para não passar o dia inteiro sem nada a fazer.

 

Observar o dia escorrer apenas acompanhando os ponteiros do relógio, é um exemplo a não ser seguido.

 

Mesmo sem ter um tema definido, procuro me esforçar para que brote ao menos um risco de inspiração —só para preencher o vazio intelectual.

 

Fazer o cérebro trabalhar é um santo remédio. Não se pode deixar esse órgão tão precioso desocupado — ou pior, sem tempo para fazer nada.

 

Tenho pressa em terminar este texto, só para saber qual será a minha próxima inspiração. Essa é, hoje, minha principal atividade: brincar de ocupar o tempo.

 

Quero não ter tempo o dia todo teclando no meu computador.

 

As funcionárias, que me observam escrevendo pela manhã e à tarde, às vezes perguntam se não me canso.

 

Mas é exatamente essa falta de tempo que me faz trabalhar sem parar —e, curiosamente, isso não me cansa.

 

Qual será o assunto do próximo texto?

 

Gabriel Novis Neves

24-04-2025




quarta-feira, 30 de abril de 2025

VENTO SUL


Cuiabá sempre foi uma cidade quente durante todo o ano, com um curto período de chuvas.

 

Estamos nos últimos dias de abril e a chuva se faz presente com seus benefícios.

 

Os dias têm sido de temperaturas amenas, acompanhados por um ventinho agradável denominado pelos antigos de vento sul.

 

Lembro-me muito do meu pai, com seu gorro de lã, esfregando as mãos, sentado na cadeira de balanço na calçada de nossa casa, dizendo, com uma alegria inesquecível, o quão gostoso era o vento sul.

 

Era uma corrente de ar frio, vinda do sul do Estado de Mato Grosso, de São Paulo e do Paraná.

 

Cresci ouvindo essa expressão, e em dias como hoje, a lembrança do meu pai me invade — e que saudades sinto dele!

 

Gostaria de saber, não por vaidade, como os meus filhos se lembrarão de mim.

 

Do homem caseiro?

 

Do médico generalista do interior?

 

Do professor universitário, reitor, secretário de Estado?

 

Do marido de uma mulher que mandava em casa, mas com quem vivia em plena harmonia?

 

Do homem pobre que, embora sem dinheiro, tinha credibilidade?

 

Meu pai, homem humilde e de pouca escolaridade, marcou-me intensamente com suas simples e sábias observações.

 

Quantos ensinamentos ele me transmitiu, de maneira tão fácil quanto profunda!

 

Foi um defensor intransigente do meu retorno à cidade natal para exercer a Medicina.

 

A figura do médico, pendurado no balaústre do bonde lotado, de terno e gravata, com punhos e colarinho da camisa branca encardidos pela poeira — era assim que ele me imaginava indo ao hospital, no Rio de Janeiro.

 

Esse quadro forte me fez retornar o mais rápido possível, deixando para trás dois excelentes empregos públicos concursados.

 

Hoje sei que ele tinha razão, diante da carreira que aqui construí.

 

Fica a curiosidade: como meus filhos me recordarão?

 

Eles não pertencem à geração do vento sul, mas da Inteligência Artificial.

 

Como se lembrarão de mim?

 

Gabriel Novis Neves

28-04-2025




terça-feira, 29 de abril de 2025

ESCREVER DEITADO


Houve uma época em que eu escrevia e estudava deitado na cama.

 

Curioso é que eu gostava dessa posição.

 

Aos poucos fui deixando esse hábito.

 

Assistindo a um jogo de futebol pela televisão do quarto, lembrei-me dessa antiga prática e resolvi unir o útil ao agradável, escrevendo esta crônica.

 

Impossível realizar bem as duas funções.

 

Dei sorte ao meu time, que não vencia uma partida há muito tempo.

 

Supersticioso, decidi escrever sempre uma crônica, enquanto assisto a um jogo do meu time pela TV.

 

Minha sorte é que, com a tecnologia, a televisão repete os lances mais importantes.

 

Na verdade, escrevo, ouvindo o jogo. Não assisto ao gol — vejo apenas suas reprises.

 

Com o advento dos celulares, tornou-se frequente o uso dos fones de ouvido. Muitos escrevem ouvindo músicas, seja no transporte, caminhando ou na espera por um atendimento.

 

Conheço uma escritora, autora de vários livros impressos, que realiza todo o seu trabalho na cama. Transforma-a em uma imensa mesa de trabalho. Acho ser um caso único.

 

Escrever versos deitado ainda é compreensível.

 

Hoje, quase todos escrevem no computador, bem mais prático.

 

Lápis e caderno para rascunhos já não se usam mais — e nem se fala em borracha.

 

A máquina que veio para nos ajudar, caminha a passos largos para substituir muitas funções humanas.

 

A Inteligência Artificial já substitui a escrita, sendo muita utilizada, especialmente em escritórios.

 

A falta do que fazer nos leva por caminhos esquecidos.

 

O domingo à tarde é um grande espaço à disposição da criatividade, que nunca se esgota.

 

Os pioneiros jamais acreditariam que chegaríamos onde estamos.

 

Música, imagem e escrita se entrelaçam, qualquer que seja a posição do indivíduo.

 

Mesa de bar, plantão de hospital, deitado na cama, olhos na tela da TV, ouvidos no rádio.

 

Esse é o nosso momento atual: deitado na cama, escrevendo no iPhone, ouvindo a TV.

 

Gabriel Novis Neves

27-04-2025




segunda-feira, 28 de abril de 2025

EXEMPLO


Eu ainda era criança mas já sabia ler e escrever. No dia do meu aniversário fui visitar meu avô, na rua Voluntários da Pátria, entre a rua de Cima e a do Meio.

 

Naquele tempo, era comum manter diários em grossos cadernos de contabilidade, de capa dura e preta. Os acontecimentos mais importantes eram registrados ali e, ao fim do ano, arquivados no imenso armário do escritório.

 

Tudo o que envolvia meu avô ficava anotado.

 

Nesse aniversário, ele levou-me ao escritório e me perguntou, se eu me lembrava do presente que recebera dele quando completei meu primeiro ano de vida. Claro que eu não fazia ideia.

 

Subiu então numa pequena escada, identificou o caderno pelo ano —1936 — e o colocou sobre a mesa.

 

Encontrados a data e o dia, leu em voz alta:

 

— 6 de julho de 1936: aniversário de um ano do meu netinho Gabriel, filho de Irene e Bugre. À tarde, levarei o presente: uma escovinha de dentes.

 

Foi assim que descobri qual fora meu primeiro presente de aniversário.

 

Tenho filhos, netos e bisnetos, mas, por falta de registros, não sei que presentes lhes dei nesses dias especiais.

 

Minha bisneta caçula acaba de completar um ano.

 

Soube do presente que lhe ofereci por meio de uma vídeochamada: minha filha, agora avó, vestira a pequena com um delicado vestido cor-de-rosa, laço combinando, e me chamou, a menina no colo, para que eu participasse do momento.

 

Assim ficou registrada essa data —oitenta e nove anos depois da minha!

 

O presente que recebi de meu avô carrega a simbologia do cuidado com a saúde bucal; o de minha bisneta traz o selo da tecnologia do seu tempo.

 

Eis as metamorfoses do mundo, ontem e hoje.

 

Que ela seja muito feliz, mais do que eu —são os meus votos.

 

Gabriel Novis Neves

25-04-2023




domingo, 27 de abril de 2025

BALANCETE DO PRIMEIRO QUADRIMESTRE


Embora pareça que não tenhamos produzido nada, muita coisa fizemos neste primeiro quadrimestre do ano.

 

A travessamos o Carnaval com firmeza e a Semana Santa, com a agonia e a morte do Papa.

 

Tivemos muitas perdas — de amigos, parentes, pessoas queridas e até desconhecidas — que deixaram um vazio em nossas vidas.

 

A contadora já entregou minha declaração de rendimentos à Receita Federal, que, felizmente, não caiu na malha fina.

 

Consegui desfazer-me de um imóvel no Rio de Janeiro que já não me interessava — nem a meus filhos —, localizado num prédio centenário, sem garagem.

 

Participei de vários aniversários em família e aguardo com ansiedade o meu próximo ‘enta’, dentro de dois meses.

 

De todos os ‘enta’ que já vivi, o dos ‘oitenta’ foi o mais difícil de ultrapassar. Ainda tenho dois longos meses até mudar de casa.

 

Só depois que estiver instalado na nova morada dos noventa é que me tranquilizarei.

 

Muitos chegam à soleira dos noventa e por ali ficam.

 

Na minha nova casa sei que cada dia será lucro — e o que eu tinha de ser feito, já o foi.

 

Continuarei cuidando da minha saúde preventiva, com o mesmo zelo de sempre: infusões mensais de imunoglobulina; exames cardiológicos, oftalmológicos e odontológicos duas vezes por ano; dieta equilibrada e sessões de fisioterapia duas vezes por semana.

 

O que me sobra é tempo para administrar, junto às cuidadoras, o cotidiano da casa.

 

Aguardo com avidez a visita dos meus filhos, netos e bisnetos, sempre aos sábados.

 

É quando fico sabendo das novidades do mundo em que estão inseridos.

 

A caçulinha completará um ano de idade e, neste sábado, certamente estará cheia de novidades para contar ao biso.

 

Ela ainda estranha rostos desconhecidos, chorando ao encontrá-los.

 

Sou um apaixonado convicto por esses pequerruchos que só me dão motivos para ser feliz.

 

Gabriel Novis Neves

24-05-2025




sábado, 26 de abril de 2025

CASA DOS AVÓS


Como as crianças amam a casa dos avós! O brilho em seus olhinhos revela felicidade. Passar o dia na casa dos avós — almoçar, brincar, tomar banho, jantar e se possível dormir —completa o cardápio da alegria.

 

Criança sempre gostou de dormir na casa dos coleguinhas e voltar triunfante no dia seguinte para a sua própria casa.

 

Na rua de Baixo, onde nasci e morei até os dez anos de idade, guardo até hoje a satisfação de ter dormido na casa da dona Rosa Mutran, com Rosa, Leila e Janete.

 

Acordava com ares de vencedor e, feliz voltava para casa. Tudo que era servido no café da manhã tinha um gosto especial — bem diferente do meu tradicional ‘quebra torto’.

 

O inverso também acontecia.

 

Crescemos, mudamos de endereço e esses elos de amizade foram se esvaindo. Ainda assim, mantenho contato com algumas colegas de infância.

 

Já passei da fase de avô em que minhas netas eram apaixonadas pela avó.

 

Quando a minha primeira neta nasceu, o puerpério foi na casa da avó — embora o avô fosse médico e parteiro.

 

Morávamos em endereços distintos, mas, todas as sextas-feiras, ao entardecer, minha neta vinha passar o final da semana conosco, retornando para casa no domingo à noite.

 

Assim foram celebrados seus primeiros aniversários, sempre na casa dos avós, no Porto.

 

Hoje, a casa dos avós, continua despertando fascínio nos meus bisnetos.

 

Em março, minha bisneta mais velha completou 8 anos. Embora seus pais tenham uma excelente casa, ela fez questão de receber os amiguinhos na casa dos avós.

 

A bisneta caçula também celebrará o seu primeiro ano lá.

 

Para as crianças é uma felicidade esse aconchego. Para os avós, um verdadeiro motivo de vida.

 

As festas de Natal e Ano-Novo marcaram a inauguração da nova casa da minha filha. Daqui em diante, os grandes eventos serão realizados por lá.

 

Estive reparando no último almoço aqui em casa: com exceção da minha neta que vive em Portugal — ausente com marido e o filho — a mesa do almoço ‘encolheu’. Já não cabe mais ninguém.

 

Lembrando que os bisnetos almoçam com as suas babás, na mesa de seis lugares, na copa da cozinha.

 

Poderíamos usar o salão de festas da cobertura, mas meus joelhos não me permitem subir a escada.

 

Por enquanto, vamos mantendo a tradição.

 

Gabriel Novis Neves

20-04-2025




sexta-feira, 25 de abril de 2025

TODOS OS FERIADOS DE NOSSOS DIAS

 

Os feriados, esses respiros no calendário, sempre despertaram sentimentos variados nas pessoas. Para alguns são sinônimos de descanso merecido. Para outros, apenas uma pausa no corre-corre da rotina. Há ainda os que nem percebem que o dia é feriado — trabalhadores da saúde, segurança, do campo, do transporte, que seguem seu ofício como se nada houvesse. 

 

Quando eu era menino, feriado era quase um acontecimento solene. A cidade mudava de ritmo. As escolas fechavam os portões e as ruas se enchiam de crianças, pipas no céu e bicicletas no asfalto. Alguns feriados eram comemorados com desfiles e bandeiras — como o de Sete de Setembro. Outros, com silêncio e reverência — como a Sexta-feira Santa. 

 

Com o tempo, os feriados foram mudando de cor e de função. Tornaram-se mais oportunidades para viagens, festas, promoções comerciais, emendas e prolongamentos. A alma cívica de certas datas se dissolveu no apelo turístico. Hoje em dia muita gente descobre o significado do feriado só ao procurar no Google. “Por que é feriado hoje? ”, perguntam os curiosos, entre um clique e outro. 

 

Mas, mesmo assim, continuo vendo neles algo valioso. Os feriados nos lembram que a vida precisa de pausa. Que não somos máquinas. Que o trabalho é necessário, mas o descanso também é sagrado. Seja para rezar, dormir até mais tarde, visitar a família, ou simplesmente fazer nada. 

 

Há algo bonito em ver a cidade mais quieta, os carros em menor número, o comércio com as portas entreabertas. É como se o tempo se esticasse um pouco mais, nos permitindo observar o que normalmente passa correndo. 

 

Os feriados não são apenas folgas — são convites ao recolhimento, à contemplação, ou à simples arte de não fazer nada. E isso, no nosso mundo tão apressado, é um presente raro. 

 

E se o feriado cair numa segunda ou sexta, então… que sorte a nossa.

 

Gabriel Novis Neves

20-04-2025