terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A CHUVA QUE SÓ MOLHOU A CALÇADA


Às vezes a chuva não vem para salvar do calor, apenas para lembrar que ainda existe.

 

A maioria das funcionárias da minha casa mora em Várzea Grande, cidade do outro lado do rio Cuiabá.

 

Quando chove lá, elas telefonam perguntando se está chovendo aqui, e vice-versa.

 

Parece que chove mais lá do que aqui.

 

Da janela do meu escritório, no vigésimo andar, vejo a chuva cair em Várzea Grande enquanto, deste lado, o tempo apenas se mantém nublado.

 

Talvez à noite apareça uma garoa com ventania, nada que melhore o calorão que nos castiga.

 

Quando criança chovia mais.

 

Tínhamos as quatro estações do ano.

 

Conversando com uma amiga de idade sobre o calor permanente que vivemos hoje, com apenas algumas pancadas de chuva, ela lembrou que antigamente era diferente: em abril, sua mãe comprava lã nas Casas Pernambucanas para fazer pijamas para as crianças, pois a temperatura começava a cair.

 

Eu só durmo coberto com cobertor de lã — o calor é tanto que mantenho o ar-condicionado do quarto nos dezenove graus.

 

Os aparelhos de refrigeração tornaram-se indispensáveis nas casas cuiabanas de agora.

 

E como fazem falta as chuvas!

 

Não apenas para amenizar o calor, mas para embelezar o jardim, trazendo de volta as flores e os verdes vivos.

 

Passamos longos períodos sem um pingo d´água, seguidos de ameaças barulhentas com raios e trovões.

 

E a chuva, quando vem, só molha a calçada.

 

Enquanto escrevo, chove torrencialmente em Várzea Grande e uma leve brisa entra pela janela do meu escritório.

 

Minha funcionária olhando para fora, confirma: está trovejando por lá.

 

A chuva que não chegou aqui ao menos aliviou o calor desta tarde de novembro.

 

E isso já basta para contentar o cuiabano.

 

Os antigos, acostumados a tomar banho de chuva e a mergulhar nos córregos da cidade — Prainha, Barbado, 8 de abril, entre tantos — sentem saudades do tempo que passou e que tudo mudou.

 

Gabriel Novis Neves

21-11-2025




domingo, 30 de novembro de 2025

CONFRATERNIZAÇÕES


Confraternizações, congratulações, presentes e abraços.

 

Banquetes, ceias, missa do Galo, rojões —agora silenciosos — saudando o Ano Novo.

 

Dezembro é o mês em que as lembranças ganham volume e são tratadas como joias raras.

 

Mas, confesso, desiludi-me com essa falação de ‘melhor de tudo’.

 

A Universidade completa 55 anos de criação neste mês, e realmente tem o que celebrar.

 

Cada curso faz questão absoluta de festejar sua data de fundação.

 

E aí que mora o perigo: dezembro costuma despertar interpretações apressadas.

 

Há anos decidi não mais comparecer a certas solenidades que, nem sempre, dialogam com a justiça e a verdadeira história.

 

Quantos heróis autênticos são esquecidos quando a ideologia ultrapassa os muros da racionalidade, produzindo pequenas injustiças silenciosas.

 

Sou muito procurado para entrevistas e depoimentos — afinal, sou o primeiro reitor ainda vivo daquele tempo em que tudo acontecia.

 

E percebo sempre um esforço em destacar personagens que, na época, estavam muito distantes da realidade que vivíamos.

 

Mencionam nomes quase apagados, e às vezes, atribuem-lhes papéis maiores do que tiveram, sobretudo quando falamos de figuras que realmente influenciaram aqueles momentos decisivos.

 

Talvez seja algo próprio deste mês.

 

Já considero cansativas essas entrevistas e homenagens que surgem apressadas no final do ano.

 

A maior homenagem que se presta a um homem público é cuidar do seu legado.

 

Ele sabe que o trabalho iniciado não terá fim.

 

Eu apenas estive presente no começo — na semente plantada com tanta esperança pela nossa cuiabania.

 

Outros têm o dever de acompanhar a evolução dos conhecimentos e devolvê-los à sociedade.

 

A ciência avança depressa.

 

O que era novidade quando me formei em Medicina, em 1960, virou história — e história precisa ser repassada com cuidado, sem invenções e sem vaidades.

 

Essas preocupações sempre retornam em dezembro, talvez porque o mês nos obriga a revisitar balanços pessoais e coletivos.

 

Enquanto isso, as comemorações seguem firmes, ocupando todos os segmentos da sociedade.

 

E o nascimento de Cristo e a chegada do Ano Novo... quantas vezes deixamos de lembrá-los, distraídos por um bom vinho.

 

Gabriel Novis Neves

24-11-2025




sábado, 29 de novembro de 2025

AS PESSOAS PRECISAM MORRER

 

O que seria da humanidade se as pessoas não morressem?

 

Com toda a tecnologia utilizada atualmente, aliada à inteligência artificial, a vida na Terra seria inviável por causa da superpopulação.

 

Faltariam alimentos e não teríamos onde morar.

 

A promiscuidade chegaria a tal ponto que, para sobreviver, teríamos de comer carne humana.

 

Não gosto nem de pensar nessas loucuras.

 

As empresas de tecnologia da China, a cada dia, colocam à disposição da medicina recursos para que a humanidade viva sempre mais.

 

Hoje já temos uma grande população com idade superior a cem anos.

 

Antes de encerrar este século, qual será a expectativa de vida?

 

O mundo passa fome, e países do continente africano não têm o que comer.

 

O Brasil abastece grande parte do mundo com proteínas animais e vegetais.

 

Mas, se não cuidarmos do nosso meio ambiente, isso poderá faltar para nós e para o mundo.

 

A morte faz parte do nosso ecossistema.

 

Não sou mestre na arte da futurologia, mas os fatos estão a mostrar o que escrevo.

 

Temo que venha a acontecer o que houve no desastre de um avião comercial na Cordilheira dos Andes, no século passado.

 

Essa tragédia, registrada em livros e retratada em filmes, mostra o que o homem é capaz de fazer para não morrer: alimentar-se do cadáver humano.

 

Ainda está vivo um sobrevivente dessa tragédia aérea, salvo pelas vísceras dos companheiros que morreram.

 

A ciência médica, aliada à inteligência artificial, é capaz de produzir situações impensáveis na tentativa de prorrogar a vida humana neste planeta Terra.

 

Novos espaços extraterrestres estão sendo estudados por cientistas, que especulam a presença de vida neles.

 

Os espaços terrestres estão todos ocupados pelo homem.

 

A Lua é explorada há anos e outros planetas estão em estudo.

 

O homem acredita que encontrará planetas com vida semelhante à nossa, talvez mais evoluída, já prevendo uma possível catástrofe na Terra.

 

Vamos aguardar o sucesso dessas conquistas, quando o homem se compara ao próprio Deus Todo-Poderoso, criador do Céu, da Terra e de todos os seres vivos.

 

Gabriel Novis Neves

05-06-2024



PALAVRAS MORRENDO


O excelente escritor e biógrafo de personalidades, Ruy Castro, escreveu uma crônica que é um primor de humor, sabedoria e didatismo sobre palavras que estão morrendo em nosso idioma, substituídas por modismos da moda.

 

Há dias publiquei um texto sobre “palavras modernosas” em alta no momento atual e foquei — veja só — na palavra “tóxica”, que passou a significar tudo de ruim que acontece conosco.

 

Hoje, “tóxica” serve para definir pessoas, ambientes, relações e até emoções que causam danos emocionais ou psicológicos.

 

O imortal da Academia Brasileira de Letras enumera algumas palavras que parecem ter sido condenadas ao desuso.

 

Ninguém mais vive: agora se tem vivência.

 

Não existe mais simpatia: só empatia.

 

Ninguém mais diz “perto”: está sempre próximo de sair, de conseguir emprego, de viajar.

 

Ninguém coloca nada em lugar algum: apenas posiciona.

 

Ninguém termina: finaliza.

 

Ninguém tem resistência física ou emocional: é resiliente.

 

Ninguém completa ou enriquece um texto: atualiza.

 

Ninguém acrescenta algo ou alguém: adiciona.

 

Ninguém entrega ou manda alguma coisa: encaminha.

 

Se for endereço, então direciona.

 

E não há mais respeito ou consideração: tudo virou empatia.

 

A empatia abunda — e virou sinônimo até de simpatia, embora sejam coisas bem diferentes.

 

Falar das palavras que estão sendo expulsas da língua portuguesa é coisa desagradável, polêmica e difícil de abordar, diz Ruy Castro.

 

A não ser que você seja contumaz no uso do “eu foco”, “tu focas”, “ele foca”, “nós focamos” e “eles focam” — e resolva focar nelas.

 

E ainda dizem que somos um país que fala a mesma língua desde o seu descobrimento pelo português Pedro Álvares Cabral, em 1500!

 

Sem contar os 279 povos indígenas, falantes de mais de 150 línguas diferentes, além do nosso vasto linguajar regional, onde a mesma palavra pode ter significados completamente distintos.

 

Gabriel Novis Neves

27-11-2025




quinta-feira, 27 de novembro de 2025

CURSO DE ESCUTAR


“A gente ama não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito”, ensinou Rubem Alves.


O pensamento de Caio Fernando Abreu tornou-se meu mantra:

“Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso e fui…”.


O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute com calma e tranquilidade.

Em silêncio.

Sem dar conselhos.

Sem dizer: “Se eu fosse você…”.


A gente ama não a pessoa que fala bonito.

Ama a pessoa que escuta bonito.

A fala só é bonita quando nasce de uma longa e silenciosa escuta.

É na escuta que o amor começa.

E é na não escuta que ele termina.


Aprendi que, em vez de curso de oratória, precisamos fazer um curso de escutatória.


Não aprendi isso nos livros.

Aprendi prestando atenção.


Todos reunidos alegremente num restaurante — pai, mãe, filhos — um falatório animado.

Na cabeceira da mesa, a avó.

Cabeça branca.

Silenciosa.

Como se não existisse.


Não era por não ter o que dizer.

Era por não ter quem quisesse ouvir.


O silêncio dos velhos.


No tempo de Freud, as pessoas procuravam terapeutas para se curar da dor das repressões sexuais.

Hoje, procuram terapeutas por causa da dor de não haver quem as escute.


Não pedem para ser curadas de alguma doença.

Pedem para ser escutadas.

Querem a cura para a dor da solidão.


Chocou-me aquela avó, com tanta sabedoria, sem que ninguém a ouvisse.


Que eu não continue surdo às vozes da experiência.

Vou tentar aprender a ouvir sem interferir.


Transcrevi quase por completo a crônica da antropóloga Mirian Goldenberg sobre a velhice.

Acredito que muitos se verão neste texto.


No mês do idoso, mais compreensão a eles — este é o meu objetivo.


Gabriel Novis Neves

08 de outubro de 2024




quarta-feira, 26 de novembro de 2025

LÂMPADA ACESA NO CORREDOR


Uma lâmpada indecisa revela segredos da noite e ilumina memórias que ninguém pediu.

 

Era comum nas casas cuiabanas deixar no corredor uma lâmpada que piscava.

 

As crianças tinham horror à escuridão, e minha mãe deixava essa luz trêmula acesa durante toda a noite.

 

Até hoje — e não sei o motivo — não consigo dormir no escuro breu.

 

Preciso ter um ponto luminoso como referência, mesmo que seja o do computador.

 

Quantas lembranças um tiquinho de luz é capaz de despertar, mesmo as que tentamos esconder nas gavetas do tempo.   

 

A cuidadora cobre o moldem do computador que fica em seu dormitório para poder dormir.

 

Eu, ao contrário, só consigo adormecer com uma tênue claridade iluminando o meu quarto.

 

É como se aquela pequena luz piscando no corredor de antigamente continuasse me acompanhando, fiel guardiã das horas silenciosas.

 

A luz que pisca no corredor de um quarto de casal revela segredos que ninguém ousou pensar.

 

A noite é misteriosa, mesmo dentro de casa.

 

Ela traz medos antigos, vultos imaginários, diálogos interrompidos, sonhos que não chegaram a nascer.

 

E também faz aflorar lembranças que ninguém pediu: a infância na rua do Campo, o barulho do vento que não chegava, os passos da minha mãe indo verificar se estávamos cobertos.

 

É quando a noite espanta o sono e deixa a intranquilidade reinar.

 

E como é ruim não poder dormir!

 

Uma noite mal dormida é o outro dia quase perdido.

 

A cabeça pesa, o pensamento embaralha, e o humor se perde pelo caminho.

 

Com a idade, o corpo aprende a negociar com a escuridão.

 

Já não ouso desafiar o breu.

 

Aprendi que uma mínima claridade é companhia, quase uma conversa silenciosa que nos acalma.

 

Aquela mesma luz que piscava no corredor da minha infância continua piscando em mim.

 

E, por incrível que pareça, depois de tantos anos e tantas mudanças, o melhor remédio que conheço ainda é esse: a luz que pisca no corredor.

 

Gabriel Novis Neves

24-11-2025










terça-feira, 25 de novembro de 2025

CABIDEIROS


Atrás da porta do quarto havia sempre um cabide improvisado, que guardava chapéus, casacos e até lembranças.

 

Cada peça pendurada parecia contar a rotina silenciosa de quem chegava cansado e deixava ali um pouco de si.

 

Hoje não há mais espaço para esses cabides improvisados.

 

Os cabideiros modernos são uma mão na roda para pendurar a roupa recém-usada, o boné, ou o guarda-chuva.

 

O da minha casa está no closet do meu dormitório.

 

Está sempre ocupado com a roupa que acabei de usar, bonés, gorros, cinturões de uso diário.

 

Na casa do meu avô o cabideiro ficava no hall de entrada, na dos meus pais no dormitório.

 

É uma peça simples e vertical de madeira ou metálica que serve para organizar e guardar roupas, chapéus, bolsas e guarda-chuvas —um móvel prático que, ao mesmo tempo, decora e dá estilo ao ambiente.

 

Há algo de nostálgico nos cabideiros e nas histórias que eles guardam, especialmente quando ficam nas partes íntimas das casas.

 

O da minha casa é cúmplice de segredos entre mim e ele.

 

Chego a conversar com ele nos momentos de extrema solidão.

 

É um amigo de confiança, porque não fala.

 

Se falasse, muitos segredos seriam revelados.

 

Como é curioso perceber que certas roupas lembram momentos e lugares vividos com emoção!

 

Camisas, calças, ternos, gravatas — cada peça ligada a uma lembrança, a um instante.

 

Abro as portas do guarda-roupa e um filme antigo começa a passar na minha memória.

 

Isso acontece com fatos ocorridos há oitenta anos ou um pouco mais.

 

Minha mulher subiu para o andar de cima há dezenove anos, e ainda hoje sinto emoção ao abrir o seu guarda-roupa.

 

Alguns objetos de uso frequente parecem conservar a presença dos donos — e isso é uma realidade para muitos.

 

Minha casa é um museu de lembranças.

 

Cada cantinho provoca em mim doces recordações e, ao mesmo tempo, uma saudade que dói.

 

Gabriel Novis Neves

12-10-2025