sábado, 1 de novembro de 2025

O APITO DO TREM


Gostaria de escrever um artigo sobre o apito do trem, anunciando a sua chegada a Cuiabá.

 

Aos noventa anos, deixo esse desejo para a minha próxima reencarnação.

 

O sonho da ferrovia parece cada vez mais distante.

 

Falta vontade política dos nossos governantes.

 

Desde menino ouço promessas sobre a extensão da linha férrea do sul do Estado até a velha capital.

 

Enquanto isso o país avançou em muitas direções.

 

O nosso Estado foi dividido, o mar da Guanabara ganhou uma ponte ligando Rio de Janeiro e Niterói e Brasília ergueu-se no coração do Brasil para ser a nova capital.

 

As cidades construíram modernas arenas para shows e futebol, com jogadores estrangeiros e técnicos europeus e argentinos.

 

O Brasil tornou-se recordista em escolas de Medicina, formando médicos aos milhares.

 

Entretanto, ainda há 1.915 municípios sem serviços médicos privados, onde 15,7 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do SUS e de suas unidades básicas de saúde.

 

Houve um tempo em que se dizia que o melhor médico de Cuiabá era o aeroporto.

 

Hoje a realidade é outra: temos três universidades e faculdades de Medicina, que formam especialistas nas mais diversas áreas.

 

Eles atendem em consultórios, clínicas, hospitais universitários e particulares, além

 

dos Prontos-Atendimentos, Prontos-Socorros, PSFs e UPAs.

 

Mesmo assim, 35% dos brasileiros não concluíram o ensino fundamental — uma das razões que talvez expliquem porque o trem ainda não chegou.

 

O trem de Cuiabá já foi até enredo de escola de samba no Rio de Janeiro, patrocinado pela Prefeitura.

 

Desculpas para o atraso existem muitas.

 

Mas a verdade é que a capital do agronegócio não possui ferrovia, embora os trilhos passem pelas portas das fazendas, levando alimentos ao mundo e impostos ao Brasil.

 

O apito do trem, que nunca soou em Cuiabá, continua ecoando apenas na imaginação — como símbolo de um progresso que sempre promete chegar, mas nunca desembarca.

 

Gabriel Novis Neves

30-10-2025




sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A MALA DE PAPELÃO


Viajei para o Rio de Janeiro, em 1953, com uma mala simples, cheia de sonhos e saudades — símbolo das viagens que mudam a vida.

 

A pequena mala era de papelão.

 

Com o tempo fui esquecendo o que levava dentro, mas sabia que ali estava o essencial. Aquela frágil companheira não voltou comigo para Cuiabá.

 

Gostaria de saber o que aconteceu com ela.

 

Nas minhas mudanças pelas pensões da cidade onde estudei, a mala sempre me acompanhou fielmente.

 

No regresso vitorioso, com o diploma de médico debaixo do braço, pergunto-me: o que fiz da minha inseparável mala de papelão?

 

Talvez meus futuros sonhos estivessem guardados na casinha de oitenta metros quadrados, numa rua ainda sem pavimentação.

 

Lá nasceram meus três filhos.

 

Depois de cinco anos deixamos a casa.

 

Ela já não nos cabia mais.

 

Hoje, nem a saudade posso matar passando por lá — foi vendida e transformada em estacionamento de automóveis.

 

A casa onde o sonho começou, na rua do Campo, também foi vendida, demolida e virou estacionamento.

 

Minha história foi vivida quando os sonhos começaram a se tornar realidade, na rua Major Gama, no Porto.

 

Ali materializei ambições que até eu desconhecia: nenhum mato-grossense precisava mais comprar uma mala de papelão para viajar e estudar fora do Estado.

 

Era o tempo da implantação da Universidade Federal de Mato Grosso — a nossa Universidade da Selva — com seus cursos, inclusive os nobres: Direito, Engenharia Civil e Medicina, na Cidade Universitária, do Coxipó da Ponte.

 

Na mesma casa, celebrei o casamento da minha única filha, com recepção no dia do meu aniversário.

 

A casa também foi vendida e transformada em comércio.

 

Há trinta anos moro em meu último endereço —um espigão de concreto armado, no último andar.

 

Aqui vivo, com a dor silenciosa da viuvez, lembrando da mala de papelão que me acompanhou nessa grande aventura e das casas que um dia me abrigaram.

 

Gabriel Novis Neves

28-10-2025







quinta-feira, 30 de outubro de 2025

BORBOLETAS NO QUINTAL


O quintal da casa dos meus pais era um pequeno paraíso, onde as borboletas reinavam com leveza.

 

Nas manhãs de sol, elas surgiam entre as flores de maracujá e hibisco, dançando no ar como se o vento tocasse uma música invisível.

 

A vida parecia mais leve quando uma borboleta pousava num galho, abrindo suas asas coloridas como se mostrasse um segredo da natureza.

 

Minha mãe dizia que as borboletas eram almas de visita — parentes que vinham ver como estávamos.

 

Cresci acreditando nisso, e até hoje, quando uma delas aparece, fico em silêncio, respeitoso, como quem recebe uma benção.

 

As crianças corriam pelo quintal tentando pegá-las com as mãos, mas bastava um sopro para que escapassem.

 

Eram frágeis demais para o toque, mas fortes o suficiente para atravessar ventos e chuvas em busca de novas flores.

 

As borboletas vivem pouco, mas sua breve passagem deixa marcas de beleza.

 

Elas nos ensinam que a transformação é parte da vida: antes do voo, há o tempo do casulo, o recolhimento silencioso, a espera paciente.

 

Depois, o esplendor das asas — a liberdade conquistada pela metamorfose.

 

Nos dias de hoje, quase não se veem borboletas nos quintais das cidades.

 

As flores rarearam, o espaço se perdeu.

 

Mas quando uma delas aparece, dançando sobre uma planta do meu jardim, é como se o tempo parasse.

 

Vejo nela um recado da infância, um aceno do passado que insiste em me visitar.

 

As borboletas lembram que a vida, mesmo curta, pode ser leve e colorida.

 

E que, assim como elas, também passamos — deixando beleza por onde voamos.

 

Gabriel Novis Neves

28-10- 2025




quarta-feira, 29 de outubro de 2025

ABELHAS NO JARDIM


Nas manhãs ensolaradas, o jardim da cobertura do meu apartamento era o palco para as abelhas.

 

Vinham em revoada, atraídas pelas flores que se abriam em silêncio, espalhando perfume e cor.

 

O zumbido constante anunciava vida e movimento — um som que, desde sempre, fez parte da paisagem das casas cuiabanas.

 

Minha mãe dizia que as abelhas eram trabalhadoras incansáveis e respeitavam quem respeitasse o seu espaço.

 

Eu ficava observando, curioso aquele vai e vem disciplinado.

 

Cada abelha parecia saber exatamente o que fazer — nenhuma se perdia, nenhuma se atrasava.

 

Havia no jardim roseiras, jasmins e manacás.

 

As abelhas pousavam com leveza nas pétalas e, num instante, levantavam voo levando o pólen para outras flores.

 

Sem saber, realizavam o milagre da reprodução das plantas, garantindo que o jardim florescesse o ano inteiro.

 

De vez em quando, um grande enxame aparecia, formando uma nuvem no ar.

 

Era o sinal de que uma nova rainha havia nascido e parte da colmeia saía em busca de morada.

 

Esses enxames não são perigosos — apenas mudam de casa.

 

Em poucos dias, partem em silêncio, deixando para trás o perfume das flores e o susto dos curiosos.

 

As abelhas só atacam quando percebem ameaça à colmeia.

 

Defendem a rainha e o mel com coragem admirável, mesmo que o preço seja a própria vida.

 

Quando uma abelha ferroa, morre logo depois.

 

É o seu sacrifício pelo bem da comunidade — um exemplo de amor coletivo.

 

Na agricultura, são as grandes jardineiras do mundo.

 

Ao transportarem o pólen de flor em flor, garantem frutos, sementes e fartura.

 

Mais de setenta por cento dos alimentos que chegam à mesa dependem desse trabalho silencioso.

 

Hoje, quase não se veem abelhas nos jardins das cidades.

 

Mas, quando uma surge sobre uma roseira, paro para escutar o seu zumbido.

 

É como ouvir a voz da natureza, ainda viva e paciente, lembrando que a vida floresce no silêncio.

 

Gabriel Novis Neves

27-10-2025















terça-feira, 28 de outubro de 2025

MÃE AUTODIDATA


Escrevo muito sobre minha mãe em minhas crônicas, revelando sua enorme sabedoria — o que às vezes causa espanto em alguns leitores, sabedores de sua baixa escolaridade.

 

Na verdade, cedo ela deixou de frequentar a escola tradicional, sem concluir o ensino primário, para ingressar na universidade da vida.

 

Inteligente, autodidata e órfã de mãe aos três anos, era de uma época em que as famílias cuiabanas adquiriam enciclopédias, dicionários e revistas para aprimorar seus conhecimentos.

 

Quando seus filhos entravam na escola, ela os acompanhava até o vestibular.

 

Seu forte era a gramática portuguesa, as redações e o francês.

 

Foi professora dos próprios filhos e possuía uma caligrafia belíssima.

 

Quando necessário, consultava a Enciclopédia Delta Larousse com seus vários volumes e nos ensinava com paciência e entusiasmo.

 

Foi nossa grande mestra — aquela que nos preparou para a vida.

 

Sabia de tudo, estudando em casa.

 

Nos meus textos, ela está sempre presente.

 

Muito do que sei, especialmente em redação, foi ela quem me ensinou.

 

Era craque em história natural e ciências.

 

Devorava as enciclopédias quando o assunto era desses.

 

Minha mãe foi minha professora e também dos meus irmãos.

 

Lembrar das coisas boas da vida não é saudosismo — é gratidão por terem acontecido.

 

Sou feliz pela educação que recebi em casa e por tudo que vivi e deu certo.

 

Quantos riscos corremos, quantas decisões tomamos e só depois de muitos anos é que sabemos se acertamos ou não.

 

Ainda hoje, às vezes me pergunto: será que foi a melhor decisão deixar um bom emprego concursado, com excelente salário, e a vida universitária no Rio de Janeiro para voltar a Cuiabá?

 

Não posso me queixar da carreia que aqui construí.

 

Fiz o que me foi possível.

 

E se tivesse permanecido por lá?

 

Meus professores diziam que meu futuro seria brilhante.

 

Todos me aconselharam a ficar.

 

Mas meu pai me trouxe de volta a Cuiabá — e ele teve razão.

 

Como é difícil adivinhar o futuro!

 

Gabriel Novis Neves

27-10-2025




segunda-feira, 27 de outubro de 2025

TODO EXCESSO FAZ MAL


Acordei desorientado sem saber o que fazer após cinco feriados consecutivos — e ainda vem outro na próxima sexta-feira, arrastando o sábado e o domingo.

 

É curioso como os feriados interferem em mim!

 

Estou aposentado, com filhos criados, não saio mais de casa, e o único compromisso que tenho é não fazer nada — a não ser escrever uma crônica para o meu blog.

 

Mesmo assim, sinto-me envolto nesse clima de feriado.

 

E como ele me afeta.

 

Assim como tudo passa, porquê não passa esse meu sentimento com relação aos feriados?

 

Feriado é um dia triste, quase melancólico.

 

Falta-lhe a pujança dos dias úteis, que nos trazem emoções e cobranças: da mensalidade da Academia de Medicina ao boleto do Instituto dos Cegos.

 

Com as funcionárias, comunico-me por campainhas eletrônicas — uma no meu escritório, outra na copa.

 

Nos feriados, bastam alguns decibéis a mais. O silêncio ajuda.

 

Até a sessão de fisioterapia feita num feriado é diferente. Sinto-me mais relaxado do que nos dias normais.

 

O fisioterapeuta me relata sobre o quadro sanitário da cidade: uma calamidade. Focos de pneumonia ocupam leitos hospitalares.

 

Enquanto isso, discute-se o nome para o novo Hospital Central do Estado. Esse debate voltará com certeza, no próximo feriadão.

 

Da entrega da obra física até a primeira internação, na melhor das hipóteses, levaremos dois anos.

 

Projeto de mobiliário, aquisição de equipamentos, contratação de profissionais da saúde e servidores — tudo isso leva tempo.

 

Sem falar nos recursos financeiros para o funcionamento adequado.

 

Hospital é uma empresa dentro de várias empresas, e a sua administração é altamente complexa — ainda mais sendo uma unidade de referência no Estado.

 

Enquanto isso, seguimos enfrentando feriados no nosso cotidiano.

 

Gabriel Novis Neves

21-10-2025








domingo, 26 de outubro de 2025

TARDES DE PREGUIÇA NAS REDES


Uma das coisas que eu mais gostava de fazer, antes de viajar para o Rio de Janeiro, era passar as tardes preguiçosas deitado na rede do meu quarto.

 

De olhos semicerrados, pensava no que me aguardava longe de casa: a difícil prova do vestibular, com candidatos vindos de todo o Brasil.

 

Naquela época existiam apenas catorze faculdades de Medicina, concentradas no Sul do país, e mais cinco espalhadas por Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraíba e Ceará.

 

Quase todas públicas — e de qualidade.

 

Hoje, são quatrocentas e quarenta e oito em funcionamento, a maioria particular.

 

Para esquecer o peso do futuro, buscava o balanço compassado da rede.

 

Ela embalava conversas, cochilos e pensamentos.

 

Muitas vezes chegava a adormecer, apesar da responsabilidade que me aguardava.

 

Aqui o ensino era fraco, mas o esforço dos alunos era tanto que superávamos os obstáculos.

 

Nas pensões em que morei nunca encontrei as redes cuiabanas; substituías por medicamentos que afastavam o sono.

 

Naquele tempo não se exigia receita médica para adquiri-los e muitos eram indicados pelos próprios balconistas das farmácias.

 

Foi assim com Anísio Silva, da Farmácia Jacy, no Catete — que mais tarde se tornaria cantor popular e ídolo nacional na Rádio Nacional, gravando sucessos perfeitos para se ouvir deitado numa rede.

 

A rede cuiabana, fabricada também em Várzea Grande, é até hoje símbolo da nossa cultura.

 

Quando reitor da UFMT, eu costumava presentear visitantes ilustres com uma bela rede confeccionada por famílias de artesãs várzea-grandenses.

 

Lembro-me de Jarbas Gonçalves Passarinho, ministro da Educação, nascido em Xapuri, no Acre, e educado em Belém do Pará.

 

Oficial do Exército e político versátil, foi governador do Pará, senador, ocupou vários ministérios e acabou fixando residência em Brasília.

 

A rede que lhe dei, ele mandou instalar na sacada do apartamento.

 

Ali repousava, recebia visitas para conversar e também curtia as suas tardes de preguiça.

 

Hoje, o cuiabano perdeu o hábito de ter redes em casa.

 

Prefere ir ao shopping para refrescar a cabeça e descansar.

 

Gabriel Novis Neves

09-09-2025



Tece Arte e o legado da Rede em Várzea Grande


sábado, 25 de outubro de 2025

A BENGALA DO VOVÔ


Mais que um simples apoio, a bengala do vovô era símbolo de sabedoria, respeito e, às vezes também de autoridade.

 

Meu avô era médico, surdo, otorrinolaringologista e viúvo duas vezes.

 

Morava na rua Voluntários da Pátria, quase na esquina com a rua de Cima.

 

Todas as noites, após o jantar, pegava a sua bengala e ia sentar-se num banco do Jardim — hoje Praça Alencastro.

 

Naquela época era comum as famílias cuiabanas, passearem pelo Jardim, acompanhando suas filhas adolescentes.

 

Meu avô tinha enorme facilidade para desenhar e fazer caricaturas.

 

Levava de casa um dispositivo para se comunicar por escrito, embora dominasse a leitura labial.

 

Logo conquistava a meninada com seus desenhos e caricaturas, sempre rodeado de curiosos contando causos e espalhando simpatia.

 

Ao seu lado, a inseparável bengala — símbolo de sabedoria, respeito e autoridade.

 

Costumava sentar-se de costas para a rua de Cima.

 

Eu era moleque e me lembro bem dessa cena que tanto me encantava!

 

Antes das nove da noite, ele voltava para casa, apoiado na bengala, chapéu na cabeça e terno sem gravata.

 

Quis o destino que meu avô — padrinho, companheiro de xadrez, e colega de profissão — morresse em meus braços, na casa da filha Rosa, no Rio de Janeiro, após uma viagem frustrada à Salvador, em 1962.

 

Ele estudo Medicina na antiga Escola Imperial de Salvador, onde colou grau e defendeu tese antes de retornar a Cuiabá.

 

Durante os seis anos em que viveu na Bahia apaixonou-se por uma moça e propôs casamento.

 

Queria trazê-la para sua cidade natal, trabalhar ao lado do pai, também médico baiano.

 

Mas ela, filha única não podia deixar a mãe.

 

Meu bisavô, médico baiano, veio para Cuiabá por determinação do Imperador do Brasil, durante a Guerra do Paraguai.

 

Casou-se então com uma jovem cuiabana, que

 

faleceu antes de completar trinta anos, deixando-lhe oito filhos.

 

Acometido por surdez precoce e sempre apaixonado pela Medicina, especializou-se em Otorrinolaringologia no Rio de Janeiro.

 

Viúvo, tentou reatar o amor da juventude, mas já era tarde: a vida havia seguido outros rumos.

 

Em 1962, apoiado na velha bengala, viajou novamente a Salvador para uma última tentativa.

 

Soube que a mãe da namorada falecera — mas ouviu dela a resposta que o desarmou: ‘Agora nós estamos velhos’.

 

Ferido pela lembrança e pela recusa, parou no Rio de Janeiro, para se recompor.

 

Lá faleceu, e repousa no Cemitério São João Batista.

 

A bengala — fiel testemunha de sua vida e companheira de tantas caminhadas — ficou de herança para os netos cariocas.

 

Gabriel Novis Neves

22-10-2025




sexta-feira, 24 de outubro de 2025

CINZEIROS QUE FALTAM


Antigamente, quase todas as casas cuiabanas possuíam vários cinzeiros.

 

Alguns eram verdadeiras peças de arte, ocupando lugar de destaque nas salas de visita e nas varandas.

 

Os cuiabanos fumavam cigarros de palha, industrializados e charutos.

 

Uma campanha mundial, comprovando o alto índice de câncer do pulmão entre os fumantes, fez com que o vício — antes considerado elegante, principalmente com o uso das piteiras — diminuísse ao máximo.

 

O que era bonito tornou-se feio, a ponto de os fumantes passarem a ser alvos de reprovação.

 

Na minha geração, avós, pais e adolescentes fumavam.

 

Meu pai e muitos irmãos fumavam, assim como eu e minha mulher.

 

Meus três filhos e seis netos nunca fumaram.

 

Deixei o cigarro há quarenta e cinco anos, sem nenhum sacrifício.

 

Achei que havia chegado a hora de me libertar da dependência e parei — de um dia para o outro.

 

Comecei a fumar quando frequentava o Instituto Médico Legal, para as práticas cirúrgicas.

 

O odor das geladeiras com os cadáveres me incomodava profundamente.

 

Um colega fumante me ofereceu um cigarro Lincoln.

 

Nos primeiros meses sentia tonturas e só fumava à noite.

 

Com o tempo, o organismo se adaptou e, quando abri a quarta carteira de cigarros, decidi parar.

 

A desculpa para fumar tanto era a insegurança que sentia ao exercer funções públicas para as quais não me sentia preparado.

 

Não fumei na adolescência por modismo e deixei o vício antes de completar cinquenta anos.

 

 O governo entrou firme na campanha contra a indústria do fumo, determinando locais públicos onde o seu uso seria permitido.

 

O glamour dos artistas de cinema, que apareciam nas telas em poses sensuais fumando, desapareceu.

 

O mesmo, porém, não ocorre com as campanhas institucionais contra o consumo de bebidas alcoólicas, que também fazem mal à saúde quando ingeridas em excesso.

 

Hoje é difícil encontrar um cinzeiro nas casas cuiabanas.

 

Os que ainda infringem a lei usam garrafas e latinhas vazias de bebidas alcoólicas como cinzeiros improvisados.

 

A taxa de mortalidade por câncer de pulmão tornou-se insignificante no mundo todo.

 

E os hospitais de tuberculosos deixaram de existir, e o tratamento é ambulatorial.

 

O nosso foi transformado em hospital universitário.

 

Gabriel Novis Neves

22-10-2025




quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A CAIXA DE BOTÕES


Um tesouro colorido, cheio de lembranças costuradas entre tecidos e histórias.

 

Quando criança brincávamos de jogar botões no corredor da minha casa da rua do Campo.

 

Cada botão representava um jogador de futebol do clube do nosso coração,

 

A exceção era o goleiro — uma caixa de fósforo cheia de areia.

 

O meu clube sempre foi o Botafogo, Pedro torcia para o Fluminense e Inon para o Flamengo.

 

Pegávamos sem autorização os botões da caixa de mamãe e, às vezes dos casacos do meu pai.

 

Para a defesa remontávamos os botões com piche — derivado do asfalto — deixando-os mais altos.

 

Para o ataque, o ideal eram os botões baixinhos, que faziam o biri — a bola do nosso jogo de botão caseiro — cobrir o goleiro.

 

Mamãe vivia reclamando do sumiço dos seus botões, guardados para confecção das roupas.

 

Meu pai, porém, nunca percebeu a falta dos botões arrancados de seus casacos antigos.

 

Na época das férias a jogatina tomava o dia inteiro.

 

O melhor jogador de botão daquele tempo era Edur Gomes Monteiro, médico, infelizmente falecido muito cedo.

 

Ele tinha um timaço de botões, verdadeiramente invencível.

 

Quando o jogo acontecia em sua casa, o placar era sempre de goleada.

 

Hoje, todos os brinquedos são industrializados — e logo as crianças os abandonam.

 

Naquele tempo, nós mesmos criávamos nossos brinquedos alguns com o auxílio de mamãe.

 

O jogo de botões me transporta ao passado, à caixa de botões da mamãe — verdadeiro tesouro colorido, cheio de lembranças costuradas entre tecidos e histórias.

 

Quantas vezes ela deixava seus afazeres para jogar botões conosco!

 

Assim foi até março de 1953, quando deixei aquele paraíso para estudar no Rio de Janeiro.

 

Quando voltei, tudo havia mudado — e senti que o meu mundo infantil não existia mais.

 

Gabriel Novis Neves

21-10-2025




quarta-feira, 22 de outubro de 2025

VENTILADORES DE TETO


Giravam preguiçosos nas tardes quentes de Cuiabá, espalhando o cheiro de café e conversa boa, há poucas décadas. 

 

Não me lembro de ventiladores de teto no bar do meu pai, tampouco nos bares e lares de Cuiabá, durante minha infância e juventude. 

 

Recordo deles apenas nos salões de bilhar do bar Pinheiro, na rua do Meio.

 

Na casa dos meus pais também nunca houve necessidade de ventiladores de teto. 

 

Todos nós dormíamos em camas cobertos com cobertores das Casas Pernambucanas — o ano todo.

 

É certo que o calor cuiabano era amenizado pelos grandes quintais arborizados, onde os raios solares mal tocavam no chão.

 

As ruas, igualmente sombreadas por árvores frutíferas e copas generosas, faziam de Cuiabá uma cidade respirável.

 

Com o desparecimento dos quintais, a falta de arborização nas calçadas e o asfalto tomando conta de tudo, o clima quente de Cuiabá transformou-se em insuportável.

 

Quando retornei à minha cidade natal, morei numa casa, cuja rua ainda não era asfaltada.

 

O lençol freático raso permitia o escoamento constante de água, formando lagoas, tanques e córregos espalhados pela cidade.

 

O primeiro aparelho de ar refrigerado comprei em 1968, quatro anos após a minha volta a Cuiabá.

 

Na época da implantação da Universidade Federal de Mato Grosso, contratei uma pesquisadora portuguesa.

 

A única exigência que ela me fez foi trabalhar em ambiente refrigerado — e que eu instalasse aparelhos de refrigeração em todos os cômodos do seu apartamento de noventa metros quadrados.

 

Hoje, tenho refrigeração em todas as dependências do meu apartamento.

 

Minha filha, mais moderna, colocou ar-condicionado inclusive nos banheiros de sua casa.

 

Minha afilhada, por sua vez, defende o projeto ‘Cuiabá Mais Verde’, que busca devolver à cidade o conforto da sombra e o equilíbrio do clima, através da arborização de ruas e avenidas da antiga Cidade Verde.

 

Esse projeto depende da aprovação da Câmara Municipal e sanção do Prefeito Municipal.

 

Mas, no meio do caminho, esbarram-se os interesses das grandes construtoras e seus espigões de concreto — afinal, nossa capital é ainda uma cidade em ocupação.

 

E são esses megaempresários que financiam as eleições.

 

Vamos rezar!

 

Gabriel Novis Neves

21-10-2025




terça-feira, 21 de outubro de 2025

A MÁQUINA DE COSTURA NA VARANDA


Um dos cenários das antigas casas cuiabanas, hoje desaparecido com a modernidade, era a presença da máquina de costura num canto da varanda.

 

Ali, minha mãe passava as tardes quentes costurando roupas, sonhos e lembranças, num vaivém de pedal que embalava a vida.

 

A criançada jogava botão no chão e, entre risos, admirava aquela cena inesquecível.

 

Mesmo quando estudei no Rio de Janeiro por longos anos, a imagem da minha mãe costurando na varanda da nossa casa nunca me deixou.

 

O som compassado das pedaladas completava o quadro de ternura e trabalho.

 

Mais tarde ela se dedicou ao crochê e ao tricô.

 

Suas mãos criavam presentes para a família numerosa que ajudou a construir.

 

Guardo com carinho especial seu último presente de aniversário: um casaco de tricô feito com lã branca, que me aqueceu em muitas madrugadas frias de plantão.

 

Minha mãe foi uma verdadeira poliartesã. Autodidata, tinha talento para transformar tudo com as mãos.

 

Órfã de mãe aos três anos, aprendeu cedo com a vida.

 

Não suportava depender de ninguém, nem mesmo dos filhos.

 

Viúva por vinte anos, preferiu morar sozinha em um apartamento alugado.

 

Só por muita insistência aceitava passar os finais de semana em minha casa.

 

No último ano de vida, contratou uma cuidadora para acompanhá-la à noite.

 

Ainda assim, preparava salgadinhos para receber quem fosse visitá-la.

 

Era sempre uma atração: alegre, sentada na cadeira de balanço da sala de visitas, com algo nas mãos — um livro, um tricô —, sempre produzindo.

 

Nunca admitiu passar procuração a ninguém.

 

Escolheu minha irmã Aracy para ser sua secretária e com ela ia ao INSS, ao banco e à farmácia.

 

Teve uma vida de sacrifícios, mas também de recompensas divinas.

 

Nos últimos anos acompanhava a missa pela televisão.

 

Partiu numa madrugada, serenamente, dormindo.

 

Seu último desejo foi simples e belo: jantar uma fatia de pizza.

 

Gabriel Novis Neves

08-10-2025