terça-feira, 30 de setembro de 2025

CHAVES QUE NÃO ABREM MAIS NADA


Tenho hoje todo o tempo livre e o aproveito para escrever.

 

Foi a escolha que fiz para enfrentar a velhice.

 

No início temia a falta de assunto para escrever sobre o cotidiano.

 

Essa preocupação, felizmente, desapareceu.

 

As gavetas da minha casa estão cheias de inspiração — basta abri-las. 

 

Velhas chaves guardadas carregam mistérios: de que portas eram?

 

Que histórias terão trancado para sempre?

 

São chaves de portas, armários, malas, cofres, e até de um hotel, que veio parar na gaveta da cabeceira da minha cama.

 

Por que não me desfaço das que não uso mais?

 

Procuro a razão e não encontro: se nem sei a que portas pertenciam, por que guardá-las?

 

Talvez porque, em silêncio, ainda queiram me revelar as histórias que selaram.

 

De todas, apenas uma guarda lembranças lindas, e que permanecerão para sempre ocultas.

 

As outras poderiam ser esquecidas na lixeira.

 

Tenho até chaves de casas e apartamentos que já não são meus.

 

E tantas duplicatas sem dono, guardadas na esperança vã de que um dia se tornarem úteis.

 

Escrevo numa mesa de escritório que ganhei de presente de aniversário.

 

À sua esquerda, duas gavetinhas com uma fechadura e duas pequenas chaves presas por uma argola de metal.

 

Como só uso uma para abrir e fechar a gaveta superior, as duas juntas parecem, um convite ao destino: em breve, terei mais uma chave que não abrirá mais nada.

 

E a minha biblioteca?

 

Ali guardei boa parte da minha história em gavetas centenárias, herança do avô da minha mulher.

 

Tenho as chaves que as abrem, mas nunca sei em qual delas está o que procuro.

 

Meu pai descobriu uma maneira prática de se livrar dos problemas das chaves.

 

O bar tinha nove portas, e apenas uma precisava de chave.

 

As outras — bastavam trancas.

 

Gabriel Novis Neves

23-09-2025






APITO DO GUARDA DE TRÂNSITO


Com as obras nas principais ruas e avenidas de Cuiabá, a ordem no trânsito da cidade, especialmente em determinados trechos, depende do apito do guarda de trânsito.

 

O som que, entre buzinas e pressa, impõe ordem à cidade, já faz parte da paisagem sonora urbana.

 

O guarda de trânsito é uma categoria profissional pouco valorizada pela população, apesar dos seus serviços relevantes.

 

Sem ele a vida da cidade poderá entrar em colapso, além dos transtornos naturais causados pelos atrasos de pessoal em serviço, notadamente os especializados.

 

A autoridade policial é aquela que carrega uma arma em sua cintura.

 

A arma do guarda de trânsito é o apito, que já faz parte da paisagem sonora urbana.

 

Sua remuneração também é bem inferior à de outros profissionais que usam o apito como profissão: caso dos árbitros de futebol e regentes de bateria das escolas de samba.

 

Até os guardas noturnos, que com o apito dão tranquilidade aos moradores das suas residências, são melhores remunerados.

 

O som do apito se mistura aos sons da cidade em ebulição, compondo parte da paisagem sonora urbana.

 

Muitos sinaleiros têm guarda de trânsito, notadamente quando há obras por perto.

 

O apito do guarda de trânsito, assim como outros, é sinal de segurança e esperança.

 

Esperança da chegada, uma coisa gostosa para se curtir, como o apito do trem chegando a estação, ou do navio ao cais.

 

O apito é tão importante no cenário urbano, que foi tema de uma das obras musicais mais importantes do poeta da Vila, Noel Rosa.

 

Ele compôs a maravilha de samba — O Apito da Fábrica.

 

O som do apito está sempre presente em nossas vidas, sempre nos alertando para momentos melhores.

 

Gabriel Novis Neves

11-09-2025




domingo, 28 de setembro de 2025

SONS DAS CIDADES


Escrevo sobre os sons das cidades, que pouco a pouco desaparecem com o avanço científico e tecnológico.

 

Um deles, quase esquecido, é o som discreto do lápis riscando o papel, somando contas à mão — verdadeira música silenciosa do comércio.

 

Hoje, tudo é feito à distância por meio da tecnologia, e essa melodia cotidiana se perdeu.

 

Minha amiga jornalista e professora, especialista nos sons das ondas do Arpoador e nas baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro, certamente vai me repreender quando ler que o lápis deslizando no papel produzia um som suave, que, junto às contas somadas à mão, compunha a música do comércio — ainda com direito ao apito do guarda-livros.

 

Por muito menos já se estranhou comigo, quando comparei o som das teclas da máquina de escrever ao das teclas do computador.

 

Tudo produz som, e a beleza dele depende da nossa sensibilidade musical.

 

Eu, por exemplo, admiro o vento que faz as folhas de um mangueiral se tocarem.

 

Até o infinito tem um som, quando céu e terra parecem se encontrar numa explosão mágica de imaginação.

 

Cada objeto carrega o seu som, que sobe para a atmosfera transformando o mundo numa imensa orquestra sinfônica.

 

A máquina do dentista, ao tratar uma cárie, solta um som de terror que se espalha por todo o quarteirão.

 

Já as crianças, ao nascer, trazem um som alegre e contagiante, enchendo as maternidades de festa.

 

Os sons das cidades surpreendem pela beleza, com tons que não cabem nas partituras dos gênios da humanidade.

 

O mundo, acredito, é musical.

 

Até um rabisco na areia tem o seu som.

 

Hoje, a cuidadora abriu a janela do meu escritório para que eu pudesse ouvir o vento nas árvores do quartel.

 

Perguntei-lhe se já havia reparado no som de um comando de ‘armas ao ombro’ em um batalhão de infantaria.

 

É de uma musicalidade capaz de arrepiar nossos compositores!

 

A vida é bela.

 

Basta apenas um pouco de boa vontade para que possamos apreciar, ao menos, os seus sons.

 

Gabriel Novis Neves

22-09-2025





CARTAS QUE NINGUÉM MAIS ESCREVE


Durante os onze anos em que estudei no Rio de Janeiro, aos sábados, depois do almoço, eu escrevia e levava ao Correio uma carta para a minha mãe.

 

Na quarta-feira seguinte recebia a resposta dela.

 

Eu tinha dificuldade para escrever, a ponto de minhas dissertações escolares serem feitas pelo meu vizinho Rubens de Mendonça.

 

Já minha mãe, mesmo com pouca escolaridade, possuía uma caligrafia impecável e escrevia com clareza e elegância.

 

Não tivemos o hábito de guardar o que realmente importa, e perdi todas essas cartas carregadas de saudade e amor.

 

Hoje, com a internet, ninguém mais escreve cartas nem cultiva a caligrafia.

 

As mensagens são instantâneas e surgem em letras de teclados.

 

Um pequeno computador na palma da mão — o celular — envia recados para qualquer parte do mundo em segundos.

 

A própria Inteligência Artificial, pode escrever o texto!

 

Tudo se modernizou para melhor, é verdade, mas perdemos a espera.

 

E a espera era fonte de inspiração para poetas e compositores.

 

Sem lápis, papel e paciência, canções românticas como ‘Mensagem’ — mais conhecida como ‘Carteiro’ e imortalizada na voz de Isaurinha Garcia — já não nascem.

 

Às vezes precisamos da lentidão para resolver os problemas do coração.

 

Nada de pressa ou instantaneidade: só as cartas de antigamente carregavam esse sopro de calma.

 

O homem do campo sempre soube que a sabedoria nasce da compreensão da lentidão.

 

A tecnologia chegou para nos ajudar e nos inserir no mundo da competição, mas nos roubou o tempo de esperar, pensar e refletir.

 

Na floresta, uma das diversões do homem é a ‘caçada de espera’: o prazer não está apenas na presa, mas no momento da sua chegada, quando a adrenalina desperta no caçador.

 

E basta observar alguns animais, que ainda não aprenderam o que é pressa, para sentir a paz que eles transmitem ao homem.

 

E esses irracionais vivem plenamente sem nunca precisarem escrever.

 

Gabriel Novis Neves

26-05-2025




sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A XÍCARA ESQUECIDA


Com o passar dos anos percebo minha entrega total às coisas simples da vida.

 

Em outros tempos não daria a mínima atenção a uma xícara esquecida sobre a mesa da cozinha.

 

Um objeto aparentemente banal, entretanto, pode ser o fio da memória: quem a deixou ali? Em que circunstância? Que conversas se passaram em volta dela?

 

A xícara quase sempre está cercada de pessoas.

 

Convidar alguém para um cafezinho em casa não lhe concede o direito de abandonar a xícara na mesa da cozinha.

 

Afinal, a cozinha é um lugar íntimo da casa.

 

Nas cafeterias as xícaras ficam sobre as mesas e logo são recolhidas pelos garçons.

 

Mas que tipo de conversa terá levado os protagonistas até a cozinha?

 

A revelação de um segredo até então guardado?

 

Seria algo importante, ou apenas mais uma fofoca social?

 

Como médico, penso logo em uma confidência grave: a notícia de uma doença ou a confissão de uma paixão impossível.

 

Aquela xícara, esquecida, talvez guarde confidências de uma visita planejada.

 

Ao olhar para as coisas simples, percebo a grandeza que carregam —e a coloco no papel, para compartilhar.

 

Sei, pelas respostas que recebo, que há quem se interesse por esses detalhes aparentemente pequenos.

 

Os poetas e pensadores sempre estiveram atentos às miudezas da vida, transformando-as em arte.

 

Tom e Vinícius de Morais são exemplos luminosos.

 

Quem daria importância à garota que simplesmente ia à praia de Ipanema?

 

Eles a transformaram em poesia e música de alcance mundial.

 

Desde então, a ‘Garota de Ipanema’ passou a ser símbolo da adolescente carioca caminhando rumo ao mar.

 

Todas, a partir de então, despertaram olhares atentos em seus passos.

 

O Corcovado é apenas um morro — menos para o poeta, que nele encontra uma beleza infinita.

 

É quando a balada, sinônimo de alegria, se converte pela mão do artista, em tristeza de rara beleza.

 

E cantamos emocionados a ‘Balada Triste’.

 

Assim também a xícara esquecida na cozinha, pode não passar de um detalhe banal —ou, quem sabe, o motivo para esta crônica nascer.

 

Gabriel Novis Neves

24-09-2025




quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A BICICLETA ENCOSTADA NO POSTE


Nada me faz lembrar tanto a infância sem perigos quanto a imagem de uma bicicleta encostada a um poste.

 

Ela, que já foi símbolo de liberdade e de deslocamento simples, repousa hoje esquecida em meio à pressa da cidade moderna.

 

Bons tempos aqueles em que podíamos deixar a bicicleta na rua, assistir às aulas e voltar para encontrá-la no mesmo lugar.

 

Vivíamos em um verdadeiro paraíso, sem sequer perceber.

 

Hoje moro em um edifício de apartamentos, onde assaltantes rondam a entrada da garagem para espalhar o medo entre os moradores.

 

A polícia informa que parte dessa quadrilha foi presa esta madrugada.

 

Mesmo morando no vigésimo andar, não temos a liberdade daquela bicicleta encostada no poste.

 

Perdemos, na modernidade, a tranquilidade que ficou abandonada nas esquinas da cidade.

 

Os furtos ingênuos do século passado — como colher uma fruta do quintal da minha casa — foram substituídos pelas quadrilhas sofisticadas da internet.

 

Esses bandidos de hoje invadem nossas contas bancárias por aplicativos e fazem a festa.

 

Tudo é eletrônico: fechaduras residenciais, automóveis, senhas de bancos.

 

E, ainda assim, nada parece suficiente para conter os larápios.

 

Resta-nos a esperança de que a Inteligência Artificial possa ajudar quem a procura.

 

Mas, como já profetizava Chico Anísio, a roubalheira se tornou institucionalizada neste país.

 

Nossos cientistas precisariam inventar um antídoto contra o roubo.

 

Só assim poderíamos voltar a sonhar com aquela bicicleta da infância, encostada — e não acorrentada —a um poste.

 

Toda criança da minha geração teve uma infância feliz, em cidades tranquilas onde todos eram iguais.

 

Crescemos, mas hoje muitos não sabem mais viver na cidade em que nasceram.

 

E isso, para mim, é uma tragédia!

 

Termino este texto mais triste do que quando comecei a escrevê-lo.

 

Quero sonhar — e não ter pesadelos.

 

Gabriel Novis Neves

21-09-2025












quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O ECO DAS RUAS VAZIAS


Hoje já não existe mais ruas vazias, a não ser nos modernos condomínios bem afastados das cidades.

 

Noutros tempos, eram tantas as ruas desertas que produziam um eco —o eco das ruas vazias.

 

Palcos perfeitos para despertar o imponderável de situações irreais.

 

Quantas histórias de terror ouvi das babás nas noites depois do jantar!

 

O pavor daquelas narrativas ainda carrego na memória.

 

Uma das brincadeiras das crianças do meu tempo era gritar em uma rua vazia e esperar pelo eco.

 

Todos ouviam o eco, e logo surgia o comentário: seriam respostas de almas do outro mundo?

 

Como era fértil a imaginação das crianças de outrora!

 

Não sei se as de hoje ainda acreditam em almas do além a provocar o eco das ruas vazias.

 

Hoje temem os bandidos e agentes do mal, chorando e agarrando-se às saias das mães — quando não evitam por completo esses lugares.

 

Na infância eu costumava brincar no Beco Alto, na Prainha, gritando em voz alta e aguardando a resposta: o eco. 

 

Hoje reparo que o Beco Alto está todo habitado e não é tão alto assim que pudesse ser considerado uma rua vazia.

 

A Prainha, por sua vez, foi transformada em avenida para escoar o trânsito.

 

E assim as ilusões da infância vão desaparecendo, restando apenas as histórias para serem contadas.

 

Os colegas mais velhos nos ensinavam que, a certa distância de um muro, ou mesmo dentro de um cinema, o eco surgia com intensidade — sem necessidade de ruas vazias.

 

Gosto de ouvir histórias. E porquê não também contá-las?

 

Dia desses, assisti pela televisão à lembrança de um fato histórico importante, acontecido há sessenta anos.

 

Os presentes e oradores, em um pequeno auditório, se consideravam heróis, ouvindo o eco da glória.

 

Os ausentes, verdadeiros heróis de fato, ‘en passant’ foram lembrados no eco das palavras.

 

E a vida continua assim.

 

Gabriel Novis Neves

23-09-2025


Largo do 'Beco Alto'








terça-feira, 23 de setembro de 2025

O VENDEDOR DE PICOLÉ


O bar do meu pai tinha um salão reservado para a sorveteria, com duas janelas abertas para a Praça Alencastro e duas portas voltadas para a Praça da República.

 

Ali se fabricava uma grande variedade de sorvetes, servidos em taças, casquinhas e picolés.

 

O bar estava situado em um ponto estratégico, próximo ao Palácio da Instrução, ao Cine Teatro e as praças centrais da cidade.

 

Ao término das aulas, ou das sessões de cinema, os jovens ocupavam as mesas da sorveteria, onde muitos romances começaram. Outros saiam levando suas casquinhas ou picolés para saborear no caminho de casa.

 

Os sorvetes do bar do meu pai marcaram gerações e até hoje, são lembrados como um doce legado da infância.

 

Eu apreciava esse ofício, desde a compra da matéria-prima até a confecção na máquina da sorveteria, dos picolés e sorvetes.

 

À noite poucas pessoas se sentavam às mesas.

 

Os lugares eram ocupados por adultos que bebiam cerveja e, nos dias e retretas no Jardim, por mulheres do Beco do Candeeiro.

 

Chamavam atenção por fumarem cigarros comerciais e exibirem dentes de ouro, presentes de apaixonados clientes garimpeiros.

 

Até hoje encontro senhoras, já com mais de oitenta anos, que recordam com ternura as tardes na sorveteria: depois do cinema, iam tomar sorvete e namorar.

 

Eram tempos em que gerações misturavam sabores com memórias e juventude.

 

Na rua 13 de junho havia ainda uma fábrica de picolés de groselha, que abastecia as carrocinhas dos vendedores ambulantes.

 

Estes faziam ponto nas portas das escolas, nos estádios de futebol e em qualquer lugar onde houvesse gente reunida.

 

Quanta saudade tenho da inocência da minha infância, vivida sem complexos ou barreiras sociais.

 

Todas as crianças eram iguais: frequentavam a mesma escola, o mesmo postinho de saúde, a mesma igreja e a mesma sorveteria!

 

Hoje as crianças são escolarizadas por grupos sociais distintos, o que forma adultos separados uns dos outros.

 

E as sorveterias, antes cheias de vida, se transformaram em lojas de shopping com produtos industrializados — sem o encanto artesanal que moldava nossos encontros e lembranças.

 

Gabriel Novis Neves

11-09-2025






segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O BADALAR DO RELÓGIO DA PRAÇA


O relógio da praça de Cuiabá erguia-se entre as torres da Catedral Metropolitana, em plena Praça da República.

 

Seu compasso sonoro alcançava todo o Centro Histórico da cidadezinha em que nasci.

 

Na rua de Baixo, onde vivi até os meus dez anos, ouvia-se com clareza o marcar das horas.

 

O badalar lembrava compromissos, encontros e despedidas.

 

Com a demolição da Catedral, em 1968, a população se uniu para custear a compra de um novo relógio.

 

Desde então, adquiri o hábito de, ao passar pela Praça da República, erguer os olhos para ele.

 

Quando, por algum defeito, silenciava, a frustração era coletiva: perdíamos um de nossos referenciais mais fiéis.

 

O badalar do relógio da praça, compunha a paisagem sonora do Brasil colonial.

 

Toda cidadezinha possuía o seu.

 

No Brasil de antigamente era sempre assim: praças, relógios, igrejas com torres e sinos.

 

Ao redor deles, crescia a população.

 

O progresso, porém, expulsou os moradores das praças.

 

Hoje, quem ali permanece são personagens solitários: o velho que lê um jornal esquecido, o taxista que descansa, a senhora que passeia com o cachorrinho, o chapéu de pano abandonado no banco.

 

E tudo isso sem o som do relógio para marcar as horas e lembrar compromissos.

 

Na juventude, da pensão onde morava no Rio, ouvia o relógio do Largo do Machado.

 

Mais tarde, senti falta de um relógio com quatro faces na Praça em frente ao Restaurante Universitário, da Cidade Universitária de Cuiabá, no Coxipó da Ponte.

 

Com mais de meio século de existência, quantas histórias teria ele a nos contar?  Quantas memórias adormecidas despertaria?

 

Ali, onde jovens, professores e alunos se encontravam, quantos compromissos nasceram à sua sombra e quantos terminaram em casamento!

 

Hoje vivemos sem a poesia dos sons do relógio da praça.

 

Gabriel Novis Neves

20-09-2025


 









domingo, 21 de setembro de 2025

O PERFUME QUE FICOU NO ELEVADOR


Quantas vezes entrei no elevador do meu edifício e senti aquele cheiro anônimo que acompanha passageiros desconhecidos e desperta lembranças em mim.

 

E esse aroma continua comigo sempre que estou em um elevador — mesmo que não seja do meu prédio.

 

Que maravilha é o nosso cérebro, com esse dom do não esquecimento!

 

Enquanto isso, procuro identificar a dona do perfume.

 

Mil suspeitas, nenhuma certeza.

 

Apenas a impressão de que é feminino, e nem sei se vem de alguma moradora.

 

Quantas histórias já ouvi sobre elevadores, inspirando humoristas de outros tempos em seus shows.

 

O homem, diferente dos demais animais, é o que menos desenvolveu o olfato.

 

Graças a ele, os bichos caçam, se defendem dos agressores e encontram parceiros.

 

Já o homem não utiliza o cheiro para suas necessidades vitais.

 

Muitas vezes, nem se lembra do perfume da mulher amada no dia seguinte.

 

O cheiro do corpo humano, depreciativamente chamado de ‘CC’, chega a causar repulsa em muitos.

 

E quantas pessoas são infelizes por esse motivo!

 

As lembranças, sim, são uma das maiores riquezas da vida.

 

Hoje mesmo ouvi um áudio de uma senhorinha relatando um episódio ocorrido há cinquenta e oito anos, do qual fui protagonista.

 

Ela não se esqueceu. E suas palavras despertaram em mim uma lembrança já encoberta pela poeira do tempo.

 

Fiquei feliz em poder confirmar que sempre fui assim: alguém disposto a ajudar o próximo quando possível.

 

O passado é um perfume muitas vezes esquecido e raramente lembrado.

 

O perfume não é apenas um cheiro anônimo que nos acompanha: é também o despertador de doces e suaves recordações.

 

E a lembrança é o oxigênio da vida.

 

Quem viveu e não guarda lembranças, não viveu.

 

Graças à lucidez e ao tempo que Deus me concedeu, guardo tantas lembranças que resolvi passar para o papel!

 

Gabriel Novis Neves

12-09-2025




sábado, 20 de setembro de 2025

O SINO DO BONDE


Quando nasci, já não havia bondes em Cuiabá, mas ainda conheci seus trilhos —parte deles na rua de Cima e nas proximidades da Casa Orlando, na rua de Baixo.

 

Eram bondes puxados por animais, retirados de

 

circulação em 1918.

 

Funcionaram entre 1891 e 1918, ligando o centro à região do Porto.

 

No Rio de Janeiro, porém, o bonde foi o meu transporte favorito.

 

Elétricos, espalhavam-se por todos os bairros, com passagens baratas.

 

Havia sempre o condutor e o cobrador, ambos uniformizados e com quepe.

 

O elo entre eles era o sino do bonde, cuja chamada alegre ainda guardo na memória, anunciando partidas e chegadas, conduzindo histórias pela cidade.

 

Os bondes cariocas traziam um número e o endereço do destino.

 

O mais charmoso para mim era o nº4 —Praia Vermelha — que tinha com ponto final a Faculdade Nacional de Medicina.

 

Certa vez a Light, concessionária do serviço, elevou o preço da passagem de cinquenta para setenta centavos.

 

Os estudantes do Rio reagiram com uma greve geral contra a ‘política imperialista da empresa americana’.

 

A paralisação só terminou quando o Presidente Juscelino Kubitscheck recebeu os líderes estudantis no Palácio do Catete.

 

Durante os seis anos em que cursei Medicina, o valor da passagem do bonde e a refeição no restaurante universitário permaneceram inalterados.

 

Em compensação, perdemos um semestre inteiro de aulas por causa da greve contra o aumento da tarifa, em 1955.

 

Havia outras linhas igualmente charmosas, como as que subiam para Santa Teresa, seguiam para o Corcovado ou para o Pão de Açúcar — inspiração para poetas e músicos.

 

Como os bondes viviam apinhados de passageiros, aprendi a viajar nos estribos e até saltar antes da parada final.

 

Tenho saudade dos pontos do Largo da Carioca, Machado e Posto 20, destinos tradicionais dos bondes da zona sul.

 

Quantas histórias esses bondes carregaram! Lembro das meninas suburbanas, que vinham com suas mães para as noites dançantes do Diretório Acadêmico de Medicina, aos sábados, iluminando a juventude de sonhos.

 

Gabriel Novis Neves

19-09-2025












sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O GUARDA-LIVROS


Toda segunda-feira, no horário do almoço, eu levava o livro-caixa do bar do meu pai até a casa do contador.

 

Ele morava próximo à minha casa, na rua do Campo.

 

A porta da frente estava sempre fechada, e ele só me atendia depois que eu batia levemente na janela do seu escritório.

 

Era chefe da repartição pública federal de contas, cujo expediente se iniciava à tarde.

 

Cuidava das finanças da União e, em Cuiabá, era reconhecido como guarda-livros de referência.

 

Foi também o responsável, por décadas, pela contabilidade do bar do meu pai, sempre firme nas auditorias dos fiscais do Tesouro Estadual.

 

Nunca um de seus balancetes foi reprovado pelo fisco.

 

Certa vez, porém, um fiscal inescrupuloso — que usava o cargo para extorquir vantagens pessoais — multou o comércio do meu pai, depois de mais de trinta anos de atividade correta.

 

Humilhado, ele atravessou a Praça Alencastro e foi direto ao gabinete do governador, à época um engenheiro civil para apresentar sua queixa.

 

O governador, que já havia sido deputado federal e presidira a comissão de orçamento do Congresso, conhecia profundamente o assunto.

 

Ao fim da audiência, chamou o fiscal e determinou que retirasse a multa.

 

Naquele tempo, Cuiabá não possuía faculdade de Ciências Contábeis.

 

O primeiro curso no Brasil foi criado apenas em 1945, pelo Presidente Getúlio Vargas.

 

Até então, quem cuidava das contas do comércio eram chamados de guarda-livros — nome que vinha dos grandes cadernos de capa preta e dura, onde se registravam as finanças.

 

Tive a sorte de fazer parte do grupo que, na década de 1970, fundou o primeiro curso de Ciências Contábeis em Mato Grosso.

 

Hoje, Cuiabá abriga escritórios de contabilidade em Cuiabá, como o que atende a mim e tantos comerciantes.

 

São profissões que a modernidade transformou, mas que deixaram em nossa memória o tempo em que as contas eram escritas a lápis e somadas à mão.

 

Gabriel Novis Neves

18-09-2025



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